Em 22 de novembro de 2022, cinco representantes da grupo America Media, dos jesuítas estadunidenses, entrevistaram o Papa Francisco em sua residência, Casa Santa Marta, no Vaticano.
Eles discutiram uma ampla gama de tópicos com o papa, incluindo a polarização na Igreja dos Estados Unidos, o racismo, a guerra na Ucrânia, as relações do Vaticano com a China e o ensino da Igreja sobre a ordenação de mulheres. A entrevista foi realizada em espanhol com o auxílio da intérprete Elisabetta Piqué.
A entrevista foi feita pelo jesuíta Matt Malone, editor-chefe que está saindo do grupo America; o jesuíta Sam Sawyer, novo editor-chefe; Kerry Weber, editor-executivo; o correspondente vaticano Gerard O'Connell; e a jornalista e apresentador de podcast Gloria Purvis.
A publicação é da revista America, 28-11-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Matt Malone – Santo Padre, a revista America foi fundada pelos jesuítas em 1909, e continuamente a estamos publicando desde então. Esta é a nossa primeira oportunidade de falar pessoalmente com um papa, e estamos muito gratos. A primeira coisa que passa pela cabeça dos nossos leitores, que os surpreende, é que você sempre parece alegre, feliz, mesmo em meio a crises e angústias. O que o torna tão alegre, tão pacífico e feliz em seu ministério?
Não sabia que sou sempre assim. Fico feliz quando estou com as pessoas – sempre. Uma das coisas que acho mais difícil como Papa é não poder andar na rua com o povo, porque aqui não se pode sair; é impossível andar na rua. Mas eu não diria que sou feliz porque tenho saúde, ou porque me alimento bem, ou porque durmo bem, ou porque rezo muito. Estou feliz porque me sinto feliz, Deus me faz feliz. Não tenho nada para culpar o Senhor, nem mesmo quando coisas ruins acontecem comigo. Nada. Ao longo da minha vida, ele sempre me guiou em seu caminho, às vezes em momentos difíceis, mas sempre com a certeza de que não se caminha sozinho. Eu tenho essa garantia. Ele está sempre ao meu lado. A pessoa tem suas falhas, também seus pecados. Eu me confesso a cada 15 dias, mas não sei, eu sou assim mesmo.
Sam Sawyer – Santo Padre, em seu discurso ao Congresso dos Estados Unidos, há sete anos, o senhor advertiu contra “o reducionismo simplista que vê apenas o bem ou o mal, ou os justos e os pecadores” e também pediu “um renovado espírito de fraternidade e solidariedade, cooperando generosamente para o bem comum”. No entanto, desde seu discurso ao Congresso, vimos não apenas a polarização política se aprofundar, mas também a polarização dentro da vida da Igreja. Como a Igreja pode responder à polarização dentro de sua própria vida e ajudar a responder à polarização na sociedade?
A polarização não é católica. Um católico não pode pensar é isso ou aquilo (aut-aut) e reduzir tudo à polarização. A essência do que é católico é isso e aquilo (et-et). O católico une o bom e o “não tão bom”. Só existe um povo de Deus. Quando há polarização, surge uma mentalidade divisiva, que privilegia alguns e deixa outros para trás. O católico sempre harmoniza as diferenças. Se vemos como o Espírito Santo age; primeiro, causa desordem: pense na manhã de Pentecostes, e na confusão e na bagunça (lío) que se criou ali, e então traz harmonia. O Espírito Santo na Igreja não reduz tudo a um só valor; ao contrário, harmoniza diferenças opostas. Esse é o espírito católico. Quanto mais harmonia houver entre as diferenças e os opostos, mais católico ele é. Quanto mais polarização houver, mais se perde o espírito católico e cai no espírito sectário. Este ditado não é meu, mas repito: o que é católico não é um ou outro, mas é ambos e combinando diferenças. E é assim que entendemos o modo católico de lidar com o pecado, que não é puritano: santos e pecadores, ambos juntos.
É interessante buscar as raízes do que é católico nas escolhas que Jesus fez. Jesus tinha quatro possibilidades: ou ser fariseu, ou ser saduceu, ou ser essênio, ou ser zelota. Esses eram os quatro partidos, as quatro opções naquele momento. E Jesus não era fariseu, nem saduceu, nem essênio, nem zelota. Ele era algo diferente. E se olharmos para os desvios na história da Igreja, podemos ver que eles estão sempre do lado dos fariseus, dos saduceus, dos essênios ou dos zelotas. Jesus foi além de tudo isso ao propor as bem-aventuranças, que também são algo diferente.
A tentação na Igreja sempre foi seguir esses quatro caminhos. Nos Estados Unidos se tem um catolicismo que é próprio dos Estados Unidos – isso é normal. Mas também tem alguns grupos católicos ideológicos.
Kerry Weber – Santo Padre, em 2021, realizamos uma pesquisa perguntando aos católicos nos Estados Unidos em quem eles confiavam para serem seus líderes e guias em questões de fé e moral. De todos os grupos que listamos, a Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos foi considerada a menos confiável; apenas 20% o consideraram “muito confiável”. Os católicos classificaram seu próprio bispo local com percentual mais elevado; cerca de 29% os descreveram como “muito confiáveis”. Mas a maioria dos católicos parece ter perdido a fé na capacidade da conferência dos bispos de oferecer orientação moral. Como os bispos católicos dos Estados Unidos podem reconquistar a confiança dos católicos americanos?
A pergunta é boa porque fala dos bispos. Mas acho que é enganoso falar da relação entre os católicos e a conferência episcopal. A conferência dos bispos não é o pároco; o pároco é o bispo. Assim, corre-se o risco de diminuir a autoridade do bispo quando se olha apenas para a conferência dos bispos. A conferência episcopal existe para reunir os bispos, para trabalhar juntos, para discutir questões, para fazer planos pastorais. Mas cada bispo é um pastor. Não dissolvamos o poder do bispo reduzindo-o ao poder da conferência episcopal. Porque nesse nível competem essas tendências, mais à direita, mais à esquerda, mais aqui, mais ali. Enfim, a conferência episcopal não tem a responsabilidade de carne e osso como a de um bispo com seu povo, um pastor com seu povo.
Jesus não criou as conferências episcopais. Jesus criou os bispos, e cada bispo é pastor do seu povo. Sobre isso, lembro-me de um autor do século V que, a meu ver, escreveu o melhor perfil de um bispo. É Santo Agostinho em seu tratado De Pastoribus.
Portanto, a pergunta é: qual é a relação do bispo com seu povo? Permita-me mencionar um bispo sobre o qual não sei se é conservador, se é progressista, se é de direita ou de esquerda, mas é um bom pastor: dom Mark Seitz, bispo de El Paso, Texas, na fronteira com o México. É um homem que capta todas as contradições daquele lugar e as leva adiante como pastor. Não digo que os outros não sejam bons, mas este é um que conheço. Você tem alguns bons bispos que estão mais à direita, alguns bons bispos que estão mais à esquerda, mas são mais bispos do que ideólogos; eles são mais pastores do que ideólogos. Essa é a chave.
A resposta à sua pergunta é: a conferência episcopal é uma organização destinada a ajudar e unir, um símbolo de unidade. Mas a graça de Jesus Cristo está na relação do bispo com seu povo, sua diocese.
Gloria Purvis – Santo Padre, o aborto é uma questão fortemente politizada nos Estados Unidos. Nós sabemos que está errado. E a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu recentemente que não há direito constitucional ao aborto. No entanto, ainda parece atormentar a Igreja no sentido de nos separar. Os bispos deveriam priorizar o aborto em relação a outras questões de justiça social?
Sobre o aborto, posso dizer essas coisas, que já disse antes. Em qualquer livro de embriologia é dito que pouco antes de um mês após a concepção os órgãos e o DNA já estão delineados no pequenino feto, antes mesmo que a mãe se dê conta. Portanto, há um ser humano vivo. Não digo uma pessoa, porque isso se debate, mas um ser humano vivo. E levanto duas questões: é correto se desfazer de um ser humano para resolver um problema? Segunda pergunta: é correto contratar um “assassino” para resolver um problema? O problema surge quando essa realidade de matar um ser humano é transformada em questão política, ou quando um pastor da Igreja usa categorias políticas.
Cada vez que um problema perde a pastoralidade, esse problema se torna um problema político e se torna mais político do que pastoral. Quer dizer, que ninguém sequestre essa verdade, que é universal. Não pertence a um partido ou a outro. É universal. Quando vejo um problema como esse, que é crime, tornar-se forte, intensamente político, há uma falha da pastoral em abordar esse problema. Seja nesta questão do aborto ou em outros problemas, não se pode perder de vista a pastoralidade: um bispo é um pastor, uma diocese é o santo Povo de Deus com o seu pastor. Não podemos tratar o aborto como se fosse apenas uma questão civil.
Gerard O'Connell – A questão era se a conferência dos bispos deveria apresentar a luta contra o aborto como o problema número um, enquanto todo o resto é secundário.
Minha resposta é que este é um problema que a conferência episcopal deve resolver dentro de si mesma. O que me interessa é a relação do bispo com o povo, que é sacramental. A outra questão é organizacional, e as conferências episcopais às vezes se equivocam. Basta olhar para a Segunda Guerra Mundial e para algumas escolhas feitas por algumas conferências episcopais, erradas do ponto de vista político ou social. Às vezes, a maioria vence, mas talvez a maioria não esteja certa.
Em outras palavras, que fique bem claro: uma conferência episcopal deve, ordinariamente, opinar sobre a fé e as tradições, mas sobretudo sobre a administração diocesana e assim por diante. A parte sacramental do ministério pastoral está na relação entre o pároco e o povo de Deus, entre o bispo e o seu povo. E isso não pode ser delegado à conferência dos bispos. A conferência ajuda a organizar os encontros, e estes são muito importantes; mas, para um bispo, ser pastor é o mais importante. O mais importante, diria essencial, é o sacramental. Obviamente, cada bispo deve buscar a fraternidade com os outros bispos, isso é importante. Mas o essencial é a relação com o seu povo.
Sam Sawyer – Santo Padre, a crise dos abusos sexuais prejudicou muito a credibilidade da Igreja e seu esforço de evangelização. Revelações recentes de abusos cometidos por bispos, que foram autorizados a se aposentar discretamente, aumentaram as preocupações sobre a transparência da Igreja no tratamento de casos de abuso, especialmente quando envolvem bispos. O que mais o Vaticano pode fazer para melhorar neste aspecto da transparência?
Um pouco de história. Até a crise de Boston, quando se revelou, a Igreja agiu removendo um agressor de seu lugar; encobrir, como costuma acontecer nas famílias hoje. O problema do abuso sexual é extremamente grave na sociedade. Quando realizei a reunião dos presidentes das conferências episcopais, três anos e meio atrás, em fevereiro de 2019, pedi estatísticas oficiais e descobri que 42% a 46% dos abusos ocorrem na casa da família ou na vizinhança. Depois disso, prevalece o mundo do esporte, depois o da educação, e 3% dos abusadores são padres católicos. Alguém poderia dizer: “Isso é bom, somos poucos”. Não! Se houvesse apenas um caso, teria sido monstruoso. O abuso de menores é uma das coisas mais monstruosas. A prática, que ainda hoje se mantém em algumas famílias e instituições, era encobri-la. A Igreja tomou a decisão de não encobrir mais. A partir daí avançou -se nos processos judiciais, a criação da Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores.
Um grande exemplo é o cardeal Sean O'Malley, de Boston, que teve a mentalidade de institucionalizar a proteção de menores dentro da Igreja. Quando as pessoas honestas veem como a Igreja está assumindo a responsabilidade por essa monstruosidade, elas entendem que a igreja é uma coisa, enquanto os abusadores que estão sendo punidos pela Igreja são outra. O líder na tomada dessas decisões foi Bento XVI. É um problema “novo” na sua manifestação, mas eterno no sentido de que sempre existiu. No mundo pagão, eles comumente usavam crianças por prazer. Uma das coisas que mais me preocupa é a pornografia infantil. Estes são filmados ao vivo. Em que país esses filmes são feitos? O que as autoridades desses países estão fazendo para permitir que isso aconteça? É criminoso. Criminoso!
A Igreja assume a responsabilidade pelo seu próprio pecado, e nós vamos em frente, pecadores, confiando na misericórdia de Deus. Quando viajo, geralmente recebo uma delegação de vítimas de abuso. Uma anedota sobre isso: quando eu estava na Irlanda, vítimas de abusos pediam uma audiência. Havia seis ou sete deles. No começo, eles ficaram um pouco enojados e estavam certos. Eu disse a eles: “Olha, vamos fazer alguma coisa. Amanhã devo fazer uma homilia; por que não preparamos juntos, sobre esse problema?”. E isso deu origem a um belo fenômeno porque o que começou como um protesto se transformou em algo positivo e, juntos, criamos a homilia para o dia seguinte. Isso que aconteceu foi positivo, na Irlanda, uma das situações mais acaloradas que já enfrentei. O que a Igreja deve fazer, então? Seguir em frente com seriedade e com vergonha. Eu respondi sua pergunta?
Sam Sawyer – A única coisa que eu gostaria de acrescentar é o seguinte: a Igreja dos Estados Unidos fez um grande avanço ao lidar com o abuso quando ele acontece com os padres. No entanto, parece haver menos transparência quando um bispo é acusado, e isso é preocupante.
Sim, e acredito que devemos avançar com igual transparência. Se houver menos transparência, é um erro.
Gerard O'Connell – Santo Padre, sobre a Ucrânia: muitos nos Estados Unidos ficaram confusos com sua aparente falta de vontade de criticar diretamente a Rússia por sua agressão contra a Ucrânia, preferindo falar de forma mais geral sobre a necessidade de um fim para a guerra, um fim à atividade mercenária em vez de ataques russos e ao tráfico de armas. Como você explicaria sua posição sobre esta guerra para os ucranianos, ou americanos e outros que apoiam a Ucrânia?
Quando falo da Ucrânia, falo de um povo martirizado. Se você tem um povo martirizado, você tem alguém que o martiriza. Quando falo da Ucrânia, falo da crueldade porque tenho muita informação sobre a crueldade das tropas que chegam. Geralmente, os mais cruéis talvez sejam os povos que são da Rússia, mas não são da tradição russa, como os chechenos, os buriatas e assim por diante. Certamente, quem invade é o Estado russo. Isso é muito claro. Às vezes tento não especificar para não ofender e sim condenar em geral, embora seja bem conhecido quem estou condenando. Não é necessário que eu coloque nome e sobrenome.
No segundo dia da guerra, fui à embaixada russa na Santa Sé, um gesto inusitado porque o papa nunca vai a uma embaixada. E lá eu disse ao embaixador para dizer a Vladimir Putin que estava disposto a viajar com a condição de que ele me desse uma pequena janela para negociar. Sergey Lavrov, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, respondeu com uma carta muito bonita da qual entendi que por enquanto não era necessário.
Falei com o presidente Zelensky três vezes por telefone. E eu trabalho em geral recebendo listas de presos, tanto civis quanto militares, e mando essas listas para o governo russo, e a resposta sempre foi muito positiva.
Também pensei em viajar, mas tomei a decisão: se viajo, vou para Moscou e para Kiev, para os dois, não para um lugar só. E nunca dei a impressão de estar encobrindo a agressão. Recebi aqui nesta sala, três ou quatro vezes, uma delegação do governo ucraniano. E nós trabalhamos juntos.
Por que não menciono Putin? Porque não é necessário; já é conhecido. No entanto, às vezes as pessoas se prendem a um detalhe. Todos conhecem minha posição, com Putin ou sem Putin, sem nomeá-lo.
Alguns cardeais foram à Ucrânia: o cardeal jesuíta Michael Czerny foi duas vezes; dom Paul Gallagher, responsável pelas relações com os Estados, passou quatro dias na Ucrânia e recebi um relatório do que ele viu; e o cardeal Konrad Krajewski foi quatro vezes. Ele vai com sua van carregada de coisas e passou a última Semana Santa na Ucrânia. Quero dizer que a presença da Santa Sé com os cardeais é muito forte e estou em contato contínuo com pessoas em cargos de responsabilidade.
E gostaria de mencionar que nestes dias é comemorado o aniversário do Holodomor, o genocídio que Stalin cometeu contra os ucranianos (em 1932-1933). Acredito que seja apropriado mencioná-lo como um antecedente histórico do atual conflito.
A posição da Santa Sé é buscar a paz e buscar um entendimento. A diplomacia da Santa Sé caminha nessa direção e, claro, está sempre disposta a mediar.
Gloria Purvis – Na história da Igreja nos Estados Unidos, os católicos negros foram amplamente negligenciados. É a nossa experiência na Igreja, mas permanecemos porque temos fé. Agora, uma pesquisa recente mostrou que um grande número de católicos negros está deixando a Igreja. O racismo é importante para nós, mas outros católicos não o veem como uma prioridade. Após o assassinato de George Floyd mais pessoas deixaram a Igreja por causa do descaso desta em torno do tema do racismo. O que você diria agora aos católicos negros nos Estados Unidos que vivenciaram o racismo e ao mesmo tempo não tem seus apelos por justiça social escutados dentro da Igreja? Como você pode incentivá-los?
Eu diria a eles que estou próximo do sofrimento que eles estão vivendo, que é um sofrimento racial. E, nessa situação, quem deveria de alguma forma estar próximo a eles são os bispos locais. A Igreja tem bispos descendentes de afro-americanos.
Gloria Purvis – Sim, mas a maioria de nós vai a paróquias onde os padres não são afro-americanos, e a maioria das outras pessoas não é afro-americana, e eles parecem não ter sensibilidade para o nosso sofrimento. Muitas vezes ignoram nosso sofrimento. Então, como podemos encorajar os católicos negros a ficar?
Creio que o importante aqui é o desenvolvimento pastoral, seja dos bispos, seja dos leigos, um amadurecimento pastoral. Sim, vemos a discriminação e entendo que eles não querem ir. Às vezes, em outros países, o mesmo acontece nesse tipo de situação. Mas isso tem uma história muito antiga, muito mais antiga que a sua história nos EUA, e não foi resolvida. Os bispos e os agentes pastorais devem ajudar a resolvê-lo de maneira evangélica.
Eu diria aos católicos afro-americanos que o papa está ciente de seu sofrimento, que os ama muito e que eles devem resistir e não se afastar. O racismo é um pecado intolerável contra Deus. A Igreja, os pastores e leigos devem continuar lutando para erradicá-la e por um mundo mais justo.
Aproveito para dizer que também amo muito os povos indígenas dos Estados Unidos. E não me esqueço dos latinos, que são muitos agora.
Kerry Weber – Santo Padre, como o senhor sabe, as mulheres contribuíram e podem contribuir muito para a vida da Igreja. Você nomeou muitas mulheres no Vaticano, o que é ótimo. No entanto, muitas mulheres sentem dor porque não podem ser ordenadas sacerdotes. O que você diria a uma mulher que já está servindo na vida da Igreja, mas que ainda se sente chamada ao ministério sacerdotal?
É um problema teológico. Acho que amputamos o ser da Igreja se considerarmos apenas o caminho da ministerialidade da vida da Igreja. O caminho não é apenas o ministério ordenado. A Igreja é mulher. A Igreja é uma esposa. Não desenvolvemos uma teologia da mulher que reflita isso. A ministerialidade, podemos dizer, é a da Igreja petrina. Estou usando uma categoria de teólogos. O princípio petrino é o do ministério. Mas há outro princípio ainda mais importante, do qual não falamos, que é o princípio mariano, que é o princípio da feminilidade na Igreja, da mulher na Igreja, onde a Igreja vê um espelho de si mesma porque é mulher e esposa. Uma Igreja com apenas o princípio petrino seria uma Igreja que se pensaria reduzida à sua dimensão ministerial, nada mais. Mas a Igreja é mais do que um ministério. É todo o povo de Deus. A Igreja é mulher. A Igreja é uma esposa. Portanto, a dignidade da mulher é espelhada dessa maneira.
Existe uma terceira via: a via administrativa. A via ministerial, a via eclesial, digamos, mariana, e a via administrativa, que não é uma coisa teológica, é algo da administração normal. E, nesse aspecto, acho que temos que dar mais espaço para as mulheres. Aqui no Vaticano, os lugares onde colocamos as mulheres estão funcionando melhor. Por exemplo, no Conselho para a Economia, onde há seis cardeais e seis leigos. Há dois anos, indiquei cinco mulheres entre os seis leigos, e isso foi uma revolução. A vice-governadora do Vaticano é uma mulher. Quando uma mulher entra na política ou administra as coisas, geralmente ela se sai melhor. Muitas economistas mulheres estão renovando a economia de forma construtiva.
Portanto, há três princípios, dois teológicos e um administrativo. O princípio petrino, que é a dimensão ministerial, mas a Igreja não pode funcionar só com ela. O princípio mariano, que é o da Igreja como esposa, a Igreja como mulher. E o princípio administrativo, que não é teológico, mas sim de administração, sobre o que se faz.
E por que uma mulher não pode entrar no ministério ordenado? É porque o princípio petrino não tem lugar para isso. Sim, é preciso estar no princípio mariano, o que é mais importante. Mulher é mais, ela se parece mais com a Igreja, que é mãe e esposa. Acredito que muitas vezes falhamos em nossa catequese ao explicar essas coisas. Confiamos demais no princípio administrativo para explicá-lo, o que a longo prazo não funciona.
Esta é uma explicação abreviada, mas queria destacar os dois princípios teológicos; o princípio petrino e o princípio mariano que compõem a Igreja. Portanto, a mulher não entrar na vida ministerial não é uma privação. Não. Seu lugar é aquele muito mais importante e que ainda temos que desenvolver, a catequese sobre a mulher no caminho do princípio mariano.
E sobre o carisma da mulher, permita-me compartilhar uma experiência pessoal. Para ordenar um sacerdote solicita-se informação a pessoas que conheçam o candidato. A melhor informação que recebi, a informação certa, foram de irmãos coadjutores, bispos, ou dos irmãos leigos que não são padres, ou de mulheres. Elas têm um olfato, um senso eclesial para ver se este homem é ou não adequado para o sacerdócio.
Outra anedota: uma vez pedi informações sobre um candidato muito brilhante ao sacerdócio. Perguntei aos seus professores, companheiros e também às pessoas da paróquia onde ele ia. E estes me deram um relato muito negativo, escrito por uma mulher, dizendo: “Ele é um perigo, esse jovem não vai dar certo”. Então, liguei para ela e perguntei: “por que você diz isso?”. E ela respondeu: “não sei por que, mas se ele fosse meu filho, eu não o deixaria ser ordenado; falta alguma coisa a ele”. Então segui o conselho dela e avisei ao candidato: “olha, este ano você não vai ser ordenado, vamos esperar”. Três meses depois, esse homem teve uma crise e foi embora. A mulher é mãe e vê o mistério da Igreja com mais clareza do que nós homens. Por esse motivo, o conselho de uma mulher é muito importante e a decisão de uma mulher é melhor.
Matt Malone – Nos Estados Unidos, há quem interprete suas críticas ao capitalismo de mercado como críticas aos Estados Unidos. Há até alguns que pensam que você pode ser um socialista, ou o chamam de comunista, ou o chamam de marxista. Você, é claro, sempre disse que está seguindo o Evangelho. Mas como você responde àqueles que dizem que o que a Igreja e você têm a dizer sobre economia não é importante?
Eu sempre me pergunto, de onde vem essa rotulagem? Por exemplo, quando estávamos voltando da Irlanda no avião, surgiu uma carta de um prelado americano que dizia todo tipo de coisas sobre mim. Eu tento seguir o Evangelho. Estou muito iluminado pelas bem-aventuranças, mas sobretudo pelo padrão pelo qual seremos julgados: Mateus 25. “Pois eu estava com fome, e vocês me deram de comer; eu estava com sede, e me deram de beber; eu era estrangeiro, e me receberam em sua casa; eu estava sem roupa, e me vestiram; eu estava doente, e cuidaram de mim; eu estava na prisão, e vocês foram me visitar”. Jesus é um comunista, então? O problema que está por trás disso, que você justamente tocou, é a redução sociopolítica da mensagem do Evangelho. Se vejo o Evangelho apenas de maneira sociológica, sim, sou comunista, e Jesus também. Por trás dessas bem-aventuranças e de Mateus 25 há uma mensagem que é do próprio Jesus. E isso é ser cristão. Os comunistas roubaram alguns de nossos valores cristãos (risos). Com alguns outros, fazem um desastre.
Gerard O'Connell – Falando sobre o comunismo, você foi criticado por causa da China. Você assinou um acordo com a China sobre a nomeação de bispos. Algumas pessoas, e você mesmo, disseram que o resultado não é ótimo, mas é um resultado. Algumas pessoas na Igreja e na política dizem que você está pagando um preço alto por manter o silêncio sobre os direitos humanos na China.
Não é uma questão de falar ou silenciar. Essa não é a realidade. A realidade é dialogar ou não dialogar. E se dialoga até onde for possível.
Para mim, o maior modelo que encontro no período moderno da Igreja é o cardeal Agostino Casaroli. Existe um livro chamado “O martírio da paciência” que fala sobre o trabalho que ele fez na Europa Oriental. Os papas – refiro-me a Paulo VI e João XXIII – o enviaram sobretudo aos países da Europa Central para tentar restabelecer as relações durante o período do comunismo, durante a Guerra Fria. E este homem dialogou com os governos, lentamente, e fez o que pôde e lentamente conseguiu restabelecer a hierarquia católica naqueles países. Por exemplo – penso em um caso – nem sempre era possível nomear o melhor arcebispo da capital, mas sim o que era possível segundo o governo.
O diálogo é o caminho da melhor diplomacia. Com a China, optei pela via do diálogo. É lento, tem seus fracassos, tem seus acertos, mas não encontro outro caminho. E quero sublinhar isto: o povo chinês é um povo de grande sabedoria e merece o meu respeito e a minha admiração. Eu tiro meu chapéu para eles. E por isso procuro dialogar, porque não é que vamos conquistar as pessoas. Não! Há cristãos lá. Eles devem ser cuidados, para que sejam bons chineses e bons cristãos.
Há outra bela história sobre como a Igreja realiza esse apostolado. Foi uma das últimas vezes que o então arcebispo Casaroli via João XXIII. Ele fez um relatório sobre como estavam as negociações nesses países. Casaroli costumava ir nos fins de semana ao presídio de menores de Casal del Marmo para visitar os jovens. Na audiência com João XXIII falaram do problema deste país, daquele país e do outro. Decisões difíceis tiveram que ser tomadas, por exemplo, para conseguir que o cardeal József Mindszenty viesse a Roma; ele estava então na Embaixada dos Estados Unidos em Budapeste. Foi um problema, uma decisão difícil, mas Casaroli tinha preparado a transferência. E quando estava para sair, João XXIII perguntou-lhe: “Eminência, uma coisinha: ainda vais aos fins-de-semana a esta prisão de menores?”. Casaroli respondeu: “Sim”. E o papa lhe disse: “Dê-lhes minhas saudações e não os abandone!”. No coração destes dois grandes homens, era tão importante ir à prisão e visitar os jovens como era importante estabelecer relações com Praga, Budapeste ou Viena. Estes são os grandes. Isso dá uma imagem completa deles.
Gerard O'Connell – Última pergunta. Você já é papa há 10 anos.
Sim! (risos).
O'Connell – Se você olhar para trás, há três coisas que você teria feito diferente ou das quais se arrepende?
All! All! (disse em inglês, rindo). Tudo diferente! No entanto, fiz o que o Espírito Santo estava me dizendo que eu tinha que fazer. E quando não o fiz, cometi um erro.