Ao analisar currículos do novo Ensino Médio, professor constata que, na realidade, a proposta “converte as possibilidades de preparação para o trabalho em um mero catálogo de habilidades flexíveis”
Depois de dois anos de pandemia e de aulas tão instáveis quanto a conexão de internet na casa de muitas famílias, 2022 marca os secundaristas não só pela volta à sala de aula, mas também pela efetivação do chamado novo Ensino Médio. Sob o argumento de que a escola, especialmente nessa fase, não era atrativa aos adolescentes e não os preparava para o mundo do trabalho, o Ministério da Educação orquestrou uma reforma curricular que visa, teoricamente, mudar essa realidade. Teoricamente, pois a prática tem se mostrado diferente, como constata Roberto Rafael Dias da Silva, professor do PPG em Educação da Unisinos.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele lamenta que muitas dessas possibilidades de transformações não cheguem a todos os alunos. Assim, especialmente nas redes públicas, o medo é de que a desigualdade na formação, que ficou claríssima durante a pandemia, aumente. “Tal como podemos entrever nos movimentos iniciais desta implementação, os desenhos curriculares construídos pelas redes públicas de ensino sinalizam para uma intensificação das desigualdades, para uma responsabilização dos estudantes pelas suas escolhas formativas e para a afirmação de uma configuração subjetiva sintonizada com as expectativas das políticas neoliberais”, analisa.
O temor do professor Roberto fica mais evidente na história de Milena, uma de tantas jovens que ingressaram esse ano no Ensino Médio da rede pública no Rio Grande do Sul. “Seu entusiasmo era marcante, pois começaria com aulas presenciais, em uma nova escola, com novos amigos e amigas”, observa o professor. Os pais, conta Roberto, também ansiosos, acompanhavam com expectativa a novidade de que a filha ingressaria num Ensino Médio “reformado”, com a promessa de uma formação ampla e preparatória para a vida adulta da filha. Mas, de cara, se surpreenderam. “Milena precisaria de 17 cadernos, ou seja, estaria exposta a uma multiplicação de atividades formativas. A promessa de que haveria um currículo sintonizado com a vida, mais integrado e holístico, foi substituída por uma mochila pesada e por um currículo atomizado”, pontua Roberto.
Ao longo da entrevista, o professor ainda analisa o quanto nos aproximamos ou não da chamada educação utilitarista, bem conhecidas de gerações passadas. Além disso, discute o que está em jogo quando se fala de profissionalização de jovens hoje. Afinal, uma coisa são adolescentes da rede privada com muito mais capacidade de escolha. Outra, são jovens de escolas públicas que, em muitos casos, sequer ofertam todas as possibilidades formativas. “Adolescentes e jovens provenientes das camadas populares terão seus percursos formativos individualizados e poderão ser responsabilizados pelas suas boas ou pelas suas más escolhas. A questão da responsabilização dos indivíduos contribuirá muito pouco para a inclusão e a redução das desigualdades e, mais que isso, colocará em evidência a crise do projeto democratizador da escola moderna”, alerta Roberto.
Roberto Rafael Dias Da Silva (Foto: Arquivo pessoal)
Roberto Rafael Dias Da Silva é doutor e mestre em Educação pela Unisinos, licenciado em Pedagogia pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS. Atua como professor da Escola de Humanidades e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos, no qual atua na linha de pesquisa "Educação, desigualdades e inclusão". Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Currículo, Ensino Médio e Juventudes Contemporâneas - GEPCEM (Unisinos/CNPq). Investiga principalmente os seguintes temas: Ensino Médio, políticas de escolarização, currículo e conhecimento escolar, constituição da docência e relações entre educação e capitalismo contemporâneo.
IHU – Do ponto de vista do currículo, como avalia essa chamada “reforma” do Ensino Médio?
Roberto Rafael Dias Da Silva – A nomeada reforma do Ensino Médio brasileiro, em curso nos últimos cinco anos, efetivamente começa a sua implementação nas redes públicas e privadas de ensino neste início de ano letivo. O ano de 2022 marca o começo desta proposta nas escolas brasileiras e somente daqui para a frente teremos condições efetivas para descrever e analisar os seus regimes de implementação.
O que temos feito – e isso é absolutamente fundamental – é descrever as racionalidades políticas que são mobilizadas nos documentos publicados pelo Ministério da Educação, pelas secretarias estaduais e pelos atores públicos e privados interessados no tema. Tenho assumido uma leitura crítica dos princípios orientadores da reforma, sem abdicar da responsabilidade pedagógica de pensar, junto com os colegas professores e professoras, alternativas possíveis para uma construção criativa de espaços de resistência. As escolas e seus profissionais são agentes ativos neste processo de conduzir uma reforma curricular e, na condição de pesquisador interessado na escolarização juvenil, preciso estar atento ao que acontece nos cotidianos das escolas brasileiras.
Feita essa ressalva inicial, importante para sinalizar a leitura crítica que venho realizando, o primeiro aspecto que precisa ser enfatizado é o deslocamento de um currículo único para todos para um currículo diversificado, em que uma porcentagem significativa da carga horária está vinculada ao itinerário formativo escolhido pelo estudante. Estes itinerários precisam dialogar com as áreas do conhecimento e com as temáticas contemporâneas.
Outro aspecto que podemos destacar é a concepção de educação integral que se estabelece neste currículo e que foi enunciada na Base Nacional Comum Curricular – BNCC. Trata-se de uma concepção holística que entende por integral a combinação entre competências cognitivas e socioemocionais. Por fim, para uma análise global daquilo que a reforma ambiciona – desde seus documentos precursores – precisamos lembrar do compromisso de reconhecer as juventudes como legítimas interlocutoras, incorporando nessa gramática curricular noções como protagonismo juvenil e projetos de vida.
Cada um destes aspectos precisa ser analisado detalhadamente, o que tentarei fazer no decorrer desta entrevista. Reconheço que a escolarização juvenil demandava por processos de renovação pedagógica, atualizando-se às exigências do século XXI. Todavia, tal como podemos entrever nos movimentos iniciais desta implementação, os desenhos curriculares construídos pelas redes públicas de ensino sinalizam para uma intensificação das desigualdades, para uma responsabilização dos estudantes pelas suas escolhas formativas e para a afirmação de uma configuração subjetiva sintonizada com as expectativas das políticas neoliberais.
IHU – Acompanhando as publicações sobre o tema, há um foco na multiplicação de atividades curriculares, muitas delas com foco na subjetividade dos estudantes. Como isso impacta a vida e a formação destes jovens?
Roberto Rafael Dias Da Silva – Trago o relato de Milena, uma estudante do Ensino Médio que começou as aulas na rede estadual do Rio Grande do Sul, na última segunda-feira. Trata-se de uma estudante inteligente e com boas capacidades argumentativas; mas que teve uma escolarização intermitente: marcada por uma greve e pelos dois anos da pandemia com aulas pelo Google Meet.
Seu entusiasmo era marcante na segunda-feira, pois começaria com aulas presenciais, em uma nova escola, com novos amigos e amigas. Certamente que sua família já conhecia a estrutura do novo Ensino Médio, o que não deixou de lhes surpreender que Milena precisaria de 17 cadernos, ou seja, estaria exposta a uma multiplicação de atividades formativas. A promessa de que haveria um currículo sintonizado com a vida, mais integrado e holístico, foi substituída por uma mochila pesada e por um currículo atomizado.
Vale a pena destacar essa situação com que me deparei nos últimos dias porque ela é exemplar de uma nuance específica desta arquitetura curricular. A despeito de uma retórica centrada nos aspectos socioemocionais e sua ênfase nas demandas requeridas pelo novo século, tenho a impressão de que esta reforma tem sido engendrada sem a mobilização de conhecimentos especializados sobre adolescência e juventudes contemporâneas. Aliás, tenho desafiado as redes de ensino com que dialogo a manterem assessorias especializadas nesta temática, com pesquisas e formações permanentes.
IHU – De outro lado, especialistas também apontam a redução do protagonismo juvenil à capacidade de escolha. Como o senhor avalia esse ponto?
Roberto Rafael Dias Da Silva – De fato, esse é um aspecto central na proposta curricular do novo Ensino Médio. O conceito de protagonismo juvenil acompanha as bandeiras dos movimentos juvenis, pastorais e organizações estudantis desde a década de 1980, tendo adquirido vitalidade nas lutas pela redemocratização. Com isso, quero chamar atenção para a visão empobrecida de protagonismo que circula nos documentos e nas práticas curriculares de nosso país neste momento, uma vez que seu potencial educativo é reduzido a uma mera capacidade de escolha.
Basta lembrar as campanhas publicitárias do Ministério da Educação que, desde o final de 2016, buscam seduzir os estudantes com a afirmativa de que “de hoje em diante poderemos escolher o nosso futuro”. Não quero desabilitar conceitualmente o protagonismo juvenil, mas junto com os colegas – professores e professoras – precisamos reingressar na luta política em torno dos seus significados.
Assim, no decorrer dos últimos semestres, quando sou convidado a participar de encontros de formação continuada nas escolas, coloco em discussão três pontos de problematização que considero emblemáticos para pensar este conceito nas políticas de currículo.
1) Costumo chamar à atenção que o protagonismo é uma construção pedagógica e não poderia ser confundido com um atributo político, uma condição do amadurecimento biológico ou uma dádiva divina. Com isso quero dizer que o protagonismo é lugar de chegada e não ponto de partida para o desenvolvimento de uma proposta formativa. Por meio de uma ambiência dialógica, oferecemos aos recém-chegados no mundo (lembrando da filósofa Hannah Arendt) situações para que conquistem a sua autonomia intelectual.
2) Outro aspecto que precisamos conversar se refere aos riscos de um empobrecimento curricular, pois esta gramática formativa, levada aos seus limites, assenta-se nas escolhas autorreferenciadas dos estudantes. As escolhas individuais são fundamentais; certamente sabemos que a liberdade é a primeira condição para uma educação democrática. O problema é que basear o currículo somente nas escolhas dos estudantes pode nos colocar diante da ausência de um repertório compartilhado de experiências – derivado das ciências, da arte, da cultura e da tecnologia.
3) Por fim, o terceiro aspecto a que costumo chamar a atenção dos colegas professores é o risco destas escolhas individuais servirem para a responsabilização dos mais fracos. Também trabalho muito esse aspecto na assessoria de políticas de juventude de algumas redes de ensino. A promessa de um mundo construído através das escolhas individuais pode nos conduzir a uma crença no mérito como dispositivo organizador de nossa educação. O filósofo Michael Sandel e muitos outros pensadores sociais nos alertam para as complexas desigualdades aqui presentes e, mais que isso, advertem que sob esse princípio podemos nos distanciar das obrigações de um “projeto democrático compartilhado”.
IHU – Defensores do novo Ensino Médio argumentam que haverá uma maior profissionalização dos jovens. Como analisas esse argumento?
Roberto Rafael Dias Da Silva – Esta questão é bastante oportuna e vale a pena explorar algumas de suas nuances, mesmo que rapidamente. É importante afirmar, em um momento preliminar, que a questão da profissionalização precisa ser levada em consideração no desenvolvimento de uma proposta curricular para adolescentes e jovens. Aprendi recentemente com o professor Mariano Enguita que não podemos deixar de considerar o valor que a educação possui para os estudantes na garantia do acesso a oportunidades de vida e recursos econômicos. É um direito dos adolescentes e jovens, sobretudo aqueles provenientes das camadas mais pobres da população, ser economicamente independente. Com isso, tenho defendido que as dinâmicas de inserção socioprofissional precisam ser planejadas como um requisito fundamental dos currículos escolares.
Todavia, isso não é a mesma coisa que tornar todas as turmas regulares de Ensino Médio em cursos profissionalizantes de curta duração ou validar somente itinerários formativos para as áreas técnicas e tecnológicas. Essa ressalva que realizei – reconhecendo a pertinência de incorporar no debate curricular as dinâmicas socioprofissionais – auxilia para colocar sob problematização os modos como temos pensado as relações entre educação e trabalho nas políticas educacionais de nosso país.
O tipo de tratamento atribuído à profissionalização no novo Ensino Médio, no entanto, vai em outra direção. A inserção nos itinerários formativos de questões concernentes ao empreendedorismo, a projetos de vida e às competências socioemocionais revelam, em minha percepção, uma sintonia ou um alinhamento destas unidades curriculares com a dimensão subjetiva exigida pelo novo capitalismo.
São inúmeros os pensadores sociais contemporâneos que se debruçaram sobre os efeitos subjetivos das mudanças no capitalismo. Richard Sennett, autor sobre o qual escrevi um livro comentando as suas contribuições para a formação humana (“Sennett & a Educação”), no início deste século alertava-nos sobre o advento de um capitalismo flexível em que necessitávamos planejar nossas carreiras a curto prazo.
Sennett & a Educação, de autoria de Roberto Rafael Dias Da Silva (São Paulo: Autêntica, 2015) | Imagem: divulgação
Relatava o sociólogo que, sob o fantasma da inutilidade, os trabalhadores buscavam permanentemente por novas capacitações, uma vez que seria necessário que mudassem seu catálogo de competências muitas vezes ao longo da vida. Era demandado que tivessem mais persistência, maior dinamismo, capacidade para resistir e se adaptar a mudanças, comunicabilidade e capacidade/vontade de competir. Talvez não precisasse rememorar que, nos estudos sennettianos, a pressão pelo desempenho nesta sociedade das capacitações vem acompanhada pelo declínio do prestígio moral do trabalho, aumentando os níveis de estresse e de ansiedade.
Assim sendo, de modo ambivalente, reconheço que a profissionalização é uma questão fundamental na escola dos jovens. Porém, como vem sendo delineada nesta e em outras reformas pelo mundo, converte as possibilidades de preparação para o trabalho em um mero catálogo de habilidades flexíveis que pouco contribuem para uma formação humana integral.
IHU – Em que medida esse ‘novo’ Ensino Médio pode contribuir para a inclusão e a redução das desigualdades?
Roberto Rafael Dias Da Silva – Para responder a esta questão precisamos recorrer a algumas digressões histórias que, de certa maneira, podem alimentar um gesto otimista em nossa compreensão deste tema. Ao longo do século XX, nosso país experimentou um grande crescimento na demanda social por escolarização. Sobretudo a partir da década de 1930, podemos encontrar relações significativas entre o crescimento demográfico, nossas taxas de urbanização e o acesso à escolarização. Retomando os dados da historiadora Otaíza Romanelli, em um texto originalmente publicado no ano de 1978, “esses dois fatores – crescimento demográfico e urbanização – acabaram por provocar um aumento de demanda potencial e da procura efetiva por educação escolar”.
Certamente que a questão do analfabetismo era emblemática. Porém, o crescimento da taxa de matrícula no Ensino Médio foi muito significativo. Seja na síntese de Romanelli, seja nas compilações do professor Celso Beisigel, encontramos que a taxa de matrícula era 2,16% no ano de 1940, passou para 18,49% em 1970 e hoje, na segunda década do século XX, aproximou-se a 80%.
No exercício de analisar a questão com maior amplitude, poderíamos afirmar que nosso país se esforçou para reduzir as desigualdades no acesso ao Ensino Médio. No entanto, novos desafios são colocados em cena: a oferta insuficiente, os altos índices de abandono e reprovação escolares, as diferenças regionais e a discriminação social. As lutas pelo acesso, ao longo do século em que democratizamos o acesso à escola dos adolescentes e jovens, dirigiram-se para a permanência, para as oportunidades, para os resultados acadêmicos ou mesmo para a economia dos diplomas. O português Rui Canário, em texto publicado na revista Educação Unisinos há quase duas décadas, afirmava que havíamos migrado da “escola das promessas” para a “escola das incertezas”.
Responder sobre as possibilidades de inclusão e a redução das desigualdades requer um cotejamento com um leque variado de dimensões e uma reflexão sobre como os próprios indivíduos têm experimentado as situações de injustiça. O sociólogo François Dubet, na obra “Tempo das paixões tristes”, lançada recentemente no Brasil, ajuda-nos a pensar que a própria instituição escolar “extrai uma parte da sua legitimidade da sua capacidade de ser conforme a justiça”. Assim, poderíamos sintetizar que o Brasil avançou muito na garantia de acesso, na busca pela igualdade de resultados e no próprio reconhecimento dos direitos culturais ao longo do século XX. Neste momento, precisamos avançar na direção da justiça devida aos indivíduos e ao conjunto de provações a que estão expostos.
Tempo das Paixões Tristes, de François Dubet (São Paulo: Vertígio Editora, 2020) | Foto: divulgação
Aqui encontra-se, em minha percepção, a principal questão concernente ao novo Ensino Médio nas escolas públicas. Adolescentes e jovens provenientes das camadas populares terão seus percursos formativos individualizados e poderão ser responsabilizados pelas suas boas ou pelas suas más escolhas. A questão da responsabilização dos indivíduos contribuirá muito pouco para a inclusão e a redução das desigualdades e, mais que isso, colocará em evidência a crise do projeto democratizador da escola moderna.
IHU – Corremos o risco de cair numa educação tecnicista? Quais as implicações disso e, diante da implementação do “novo” Ensino Médio, como construir linhas de fuga dessa lógica?
Roberto Rafael Dias Da Silva – Em meu último livro, intitulado “Customização curricular no Ensino Médio”, publicado pela Cortez no final de 2019, procurei diagnosticar uma tendência bastante contemporânea da pedagogia: a tendência à customização. Estava percebendo, desde o início da década – ou seja, antes da atual reforma -, a ampliação nos debates públicos sobre a inovação educativa, dimensionando-a junto aos interesses e às demandas subjetivas dos estudantes.
Customização curricular no Ensino Médio, de Roberto Rafael Dias da Silva (São Paulo: Cortez, 2019) | Foto: divulgação
Falava-se muito em “customizar” as experiências escolares, o que me levou a mapear como funcionam estes novos dispositivos. Realizando entrevistas episódicas, analisando documentos curriculares e publicações midiáticas para professores, pude evidenciar que os dispositivos de customização curricular são movidos pela emocionalização pedagógica, pela algoritmização subjetiva e pela personalização dos itinerários formativos. Não deixo de considerar a importância da subjetividade dos estudantes nos processos pedagógicos, interessa-me descrever os seus excessos.
Com isso, afirmo que não retornaremos a nenhuma forma de tecnicismo, uma vez que este servia como uma tecnologia normativa. Atuava coletivamente com exercícios esquemáticos, baseados na memorização, para serem aplicados em larga escala.
O que vemos hoje são tecnologias pedagógicas individualizantes que traçam como horizonte formativo as possibilidades de diferenciação e visam a capitalização dos indivíduos. Construa seu próprio percurso, defina seu projeto de vida, seja protagonista, busque seus diferenciais, seja sua própria marca, invista em seus conhecimentos, seja sua melhor versão! Não é difícil constatar que se trata de um novo tipo de investimento formativo na educação de nossos adolescentes e jovens.
IHU – Além de disciplinas técnicas propriamente ditas, os novos currículos do Ensino Médio têm aberto espaço para uma disciplina chamada “projeto de vida”. Que disciplina é essa? Quais deveriam ser as suas bases e o quanto isso está presente nesse “novo” Ensino Médio?
Roberto Rafael Dias Da Silva – É importante afirmar neste momento que a possibilidade de coadunar os currículos escolares às demandas juvenis é uma exigência histórica dos movimentos estudantis. Articular o projeto formativo da instituição com o conjunto das preocupações e anseios das juventudes, então, não se configura como uma novidade. A educação dos adolescentes e jovens carece de maior aproximação, construção de vínculos ou mesmo de iniciativas voltadas a dialogar sobre as incertezas ligadas ao futuro, em especial aquelas concernentes ao mundo do trabalho.
O que se apresenta como peculiaridade do debate contemporâneo é a vinculação dos projetos de vida às perspectivas de personalização curricular. Construir caminhos formativos se tornou sinônimo de customização ou, ainda, aos moldes do sonho claparediano [no sentido do pensamento do psicólogo escolanovista Edouard Claparède, que sonhava com uma "escola sob medida" para cada estudante], construir uma escola sob medida para os estudantes.
O caminho que tem sido oferecido aos variados sistemas de ensino passa pelo trabalho pelas competências do século XXI ou as competências socioemocionais. Nessa direção, as mudanças curriculares realizadas pelo Estado de São Paulo a partir do final de 2019 com o projeto Inova Educação serviram de modelo para os demais estados e para as redes de ensino. Nesta proposta, os estudantes terão duas aulas semanais sobre projetos de vida. A disciplina versará sobre ética e cidadania, projetos na comunidade, mundo do trabalho, gestão do tempo, organização pessoal, sonhos e perspectivas para o futuro. Educar para a construção de projetos de vida, na lógica que tem predominado, implica em uma aposta em um modelo de desenvolvimento humano que focaliza a dimensão das emoções.
Para desestabilizar este consenso, ou mesmo para alargar a compreensão de projetos de vida, tenho levado para o estudo nas escolas que me convidam para encontros de formação continuada vários autores contemporâneos, e um deles é o historiador Yuval Harari. Em sua última obra publicada no Brasil – 21 lições para o século 21 – o autor inquieta-se com as questões educacionais e, ao dirigir-se aos jovens, faz uma provocação bem interessante: “[...] não confie demais nos adultos. A maioria deles tem boas intenções, mas eles não compreendem o mundo”.
21 lições para o século 21 (São Paulo: Companhia das Letras, 2018) | Foto: divulgação
Podemos aceitar os desafios apresentados pelo historiador acerca das incertezas que atravessarão as vidas humanas no século que se inicia, bem como podemos defender a centralidade da autonomia – das vozes – dos estudantes. Porém, quero insistir em um ponto que mencionei anteriormente, não podemos confundir protagonismo com responsabilização. A construção de projetos de vida na escola é tarefa muito importante para ser encaixada em duas horas semanais com foco em uma retórica emocional. A construção de projetos de vida é tarefa muito importante para ser delegada a futurólogos decifradores de soft skills. Nossas propostas curriculares podem construir novos desenhos para a inserção dos projetos de vida, este é o nosso desafio!
IHU – Outra queixa de jovens e alguns analistas era de que a escola não estava alinhada com as transformações tecnológicas do mundo e suas implicações sociais, a chamada Revolução 4.0. E agora, com esse novo Ensino Médio, a construção do ensino e da aprendizagem é capaz de responder aos problemas da Revolução 4.0?
Roberto Rafael Dias Da Silva – A escola, ao longo do tempo, recorrentemente é acusada de não acompanhar os avanços tecnológicos do seu tempo, de selecionar conhecimentos e experiências pouco sintonizadas com as novas exigências e por preparar estudantes distanciados das demandas do mundo do trabalho. No que se refere à educação de nível médio em nosso país, costumo lembrar da obra “A educação na encruzilhada”, escrita por Fernando de Azevedo e publicada originalmente no ano de 1926.
Obra de Fernando de Azevedo, de 1926, lembrada pelo professor Roberto Rafael | Imagem: divulgação
Em sua pesquisa para a composição da obra, Azevedo entrevistou personalidades de diversas áreas e vertentes de pensamento que anunciavam o século XX como o período propício para a reflexão e a implementação de uma agenda modernizadora no Brasil. Suas preocupações envolviam as questões da ciência, da industrialização e da democracia, temáticas que também marcavam a reflexão de outros pioneiros da Escola Nova no país. Neste livro, quando comentava os variados níveis de ensino de sua época, Azevedo afirmou que “não há problema de ensino que, entre nós, tenha custado tanto a encontrar uma solução exata como o do ensino secundário”.
Retomo a obra de Fernando de Azevedo para evidenciar que no ano de 1926, entre os pensadores e administradores educacionais, já imperava um sentimento de que o ensino secundário não conseguia preparar as camadas médias para os cargos dirigentes, muito menos alargava sua esfera de atuação abrindo oportunidades para os mais pobres. Transcorre quase um século desta publicação, o contexto é bastante diferente, mas ainda preservamos as dúvidas sobre o potencial de contribuição da escola, dúvidas estas que se intensificaram no advento das tecnologias 4.0. Sou otimista com relação aos desafios tecnológicos, porém assumo uma atitude cautelosa para evitar o que tenho nomeado como “compulsão modernizadora”.
Com a emergência do neoliberalismo e as novas demandas formativas dele derivadas, a vontade de modernizar se tornou cada vez mais impaciente e pouco afeita à negociação de significados com os professores e com as juventudes contemporâneas. A compulsão modernizadora nos conduziu a uma interdição do futuro e ao advento de uma incapacidade de responder crítica e criativamente aos desafios da escola das juventudes neste início de século.
IHU – Ao mesmo tempo, as disciplinas ligadas às ciências humanas têm suas cargas horárias reduzidas. Que lógica está por trás desse movimento? Que consequências isso pode ter no longo prazo, na formação de futuros adultos?
Roberto Rafael Dias Da Silva – O declínio das Humanidades nos currículos das escolas e das universidades está situado no âmbito de uma gramática escolar caracterizada pelo utilitarismo. Cada vez encontramos menos espaço para conversar sobre as artes, as culturas, a história e as filosofias nos espaços formais de escolarização. Essa diminuição de espaços curriculares para as Humanidades aumentou nas primeiras décadas de nosso século quando os currículos escolares passaram a ser modelados pelas avaliações de larga escala, globalmente instituídas, e pelos padrões de desempenho que lhes são correlatos. A gestão curricular e os modos de ser docente são conduzidos por uma lógica eficientista. Nossos colegas professores ficaram espremidos entre a pressão por desempenho e o impulso permanente à inovação.
As ciências humanas, que tomam as narrativas humanas sobre a vida e sobre o mundo como objetos centrais, são percebidas, neste contexto, como incapazes de contribuir para essa gestão impaciente dos tempos de aprendizagem. Aliás, sobre este tópico, vou recomendar a obra de Byung-Chul Han – “O desaparecimento dos rituais” – como uma análise exemplar para pensarmos sobre o recuo do pensamento e das possibilidades de reflexão mais lentas sobre o passado.
O desaparecimento dos rituais, de Byung-Chul Han (Petrópolis: Vozes, 2021)
Argumenta o filósofo que “a repetição é a característica essencial do ritual. Ela se distingue da rotina pela sua capacidade de produzir uma intensidade”. As aulas de história ou de filosofia, por exemplo, são os últimos recantos do currículo escolar em que o convite ao pensamento ainda ocorre com intensidade. Nestas aulas ainda temos espaço para repetir narrativas, engendrar outros olhares ou construir reclames sobre a sociedade atual. Por causa dos estímulos, excitações e vivências da sociedade que aceleradamente procura pela inovação, explica Han, perdemos a capacidade de repetição.
Somos coagidos a buscar por novos métodos, novas práticas ou novos saberes todos os dias esquecendo que são as repetições (os rituais, diria o filósofo) que estabilizam a nossa vida. Defendo as ciências humanas nos currículos escolares para os nossos estudantes porque elas ainda nos oferecem a oportunidade de construir comunidades de ressonância.
IHU – Que escola sai da experiência da pandemia? E como o senhor considera que deveria sair dessa experiência?
Roberto Rafael Dias Da Silva – Para concluir, vou fazer uso de uma possibilidade literária para pensar sobre os desafios da educação pós-pandêmica por meio da seguinte interrogação: Quais arquivos compartilharemos com o futuro? Kazuo Ishiguro é daqueles escritores que nos envolvem, nos encantam e permitem com que possamos ultrapassar os limites de sua narrativa de modos variados.
Em seu livro “O gigante enterrado”, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, deparamo-nos com uma literatura de fantasia recheada de mistérios, desafios, mitologias e uma trama envolvente, contextualizada nas lendárias guerras entre bretões e saxões. Conta a história de um casal de idosos – Axl e Beatrice – que resolve abandonar a sua aldeia e iniciar uma jornada em busca de seu filho. A narrativa vai se complexificando à medida que Ishiguro – com muita imaginação e uma riqueza de detalhes – vai nos explicitando como as pessoas estão vivendo em um mundo sem memórias, em que sabem que determinados acontecimentos ocorreram e não alcançam a sua efetiva lembrança.
A aventura de Axl e Beatrice – em uma longa caminhada em que personagens cada vez mais interessantes vão aparecendo e enriquecendo a trama – é marcada por pequenas lembranças e grandes dúvidas, por confissões de amor e crises de fidelidade. Os lapsos coletivos de memória se devem a uma névoa que atinge a região. A névoa decorre do hálito de uma dragoa – Querig – que avança por todos os cantos levando suas ondas de esquecimento. Aqui eu encerro minha narrativa do livro – evitando um detalhamento excessivo e estimulado a leitura da obra– e ingresso naquele que se torna o principal dilema político do livro. A névoa do esquecimento impede as lembranças dos afetos do passado e, ao mesmo tempo, bloqueia momentaneamente as guerras e as vinganças entre povos inimigos.
Os melhores diálogos do livro, construídos brilhantemente na sensível narrativa de Ishiguro, levam-nos a um grande dilema: matar ou não Querig. Traduzindo essa questão para o contexto desta pergunta: como lidaremos com o passado na construção de uma educação pós-pandêmica?
O modo como lidaremos com o passado precisa ser colocado sob debate em uma sociedade que parece habitar um presente permanente. Quando o futuro parece estar interditado, precisamos reinventar nossas narrativas sobre a formação humana no século XXI. Para finalizar, e evitando quaisquer atitudes proféticas, vale a pena retomar o romance de Ishiguro.
O gigante enterrado, de Kazuo Ishiguro (São Paulo: Companhia das Letras, 2015)
Interrogada pelo padre Jonus sobre como reagiriam com a volta das memórias, Beatrice oferece-nos uma resposta para nos acompanhar a novas reflexões: “Nós aceitaremos as más lembranças de volta também, mesmo que elas nos façam chorar ou tremer de raiva. Afinal, elas não são a vida que compartilhamos?”.