Aprovação automática de agrotóxicos em 60 dias visa aumentar o lucro e a produtividade. Entrevista especial com Wanderlei Pignati

Segundo o médico, política de liberação de agrotóxicos está voltada para o desenvolvimento econômico e desconsidera as implicações dessas substâncias na saúde

Foto: Reprodução/Internet

Por: Patricia Fachin | 11 Março 2020

A Portaria nº 43 instituída pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - Mapa, que determina a aprovação do registro para a comercialização de agrotóxicos em 60 dias a partir de 1º de abril deste ano, “está passando por cima da Lei dos Agrotóxicos” com o objetivo de “aumentar” a produtividade e o lucro, diz o médico Wanderlei Pignati, que estuda os impactos dos agrotóxicos na saúde. “Será que não existe mais lei neste país? Elas funcionaram somente até um ano atrás? A ministra do Mapa tem que obedecer à lei”, reage.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Pignati diz que a portaria do Mapa é “proposital” para acelerar a aprovação do registro de comercialização dos agrotóxicos. “Será que para atender a essa demanda de comercializar os agrotóxicos em 60 dias, a ministra ampliou o quadro de funcionários dos órgãos responsáveis? Pelo contrário, os órgãos estão esvaziados e parece que essa portaria é premeditada: sabe-se que em 60 dias não será possível fazer um parecer técnico – analisar as pesquisas que as indústrias fornecem sobre o agrotóxico e as pesquisas internacionais – porque não tem funcionários para isso”, garante. E dispara: “Se o governo quer que as análises sejam feitas em 60 dias, é preciso multiplicar por dez o número de funcionários dos órgãos que fazem as análises para liberação de agrotóxicos”.

Wanderlei Pignati (Foto: ABRASCO)

Wanderlei Pignati é graduado pela Universidade de Brasília - UnB, especialista em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo - USP, mestre em Saúde e Meio Ambiente pela Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT e doutor em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz, com a tese “Os riscos, agravos e vigilância em saúde no espaço de desenvolvimento do agronegócio no Mato Grosso”. Estuda a contaminação das águas e das bacias, além de participar de uma pesquisa no município de Lucas do Rio Verde, em Mato Grosso do Sul, onde há cinco anos houve um grande acidente de contaminação por agrotóxicos por pulverização. Atualmente, leciona na UFMT.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Como o senhor reage à portaria publicada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - Mapa, a qual determina a autorização automática de agrotóxicos pela Secretaria de Defesa Agropecuária caso os produtos não sejam avaliados pelo órgão em 60 dias?

Wanderlei Pignati – Mais uma vez o Mapa está passando por cima da lei. A Lei dos Agrotóxicos, nº 7.802/89, ou a própria regulamentação, Decreto 4.074, de 2002, determinam que o registro, a autorização e a modificação de um agrotóxico, isto é, se ele pode ser utilizado em uma planta ou em outra, depende do parecer dos três ministérios: o Ministério da Saúde, via Anvisa, o Ministério do Meio Ambiente, via Ibama e o Ministério da Agricultura, através da Secretaria de Defesa Agropecuária. Portanto, essa portaria está extrapolando a lei, assim como extrapolou-se a lei entre o ano passado e este ano, autorizando-se a liberação de mais de 500 tipos de agrotóxicos somente com parecer do Mapa.

Quem determinou este prazo de 60 dias? A lei não determina prazo de 60 dias; é o Mapa que está dando este prazo. Além de extrapolar a lei, o Mapa está estabelecendo um prazo para que o agrotóxico seja vendido no comércio independentemente de ser cancerígeno, neurotóxico, causar problemas de imunidade, problemas em animais, como estamos observando no caso das abelhas no Rio Grande do Sul, problemas para os micro-organismos do solo etc. Isso é um crime ambiental e um crime em relação à saúde humana.

Será que não existe mais lei neste país? Elas funcionaram somente até um ano atrás? A ministra do Mapa tem que obedecer à lei. Será que para atender a essa demanda de comercializar os agrotóxicos em 60 dias, a ministra ampliou o quadro de funcionários dos órgãos responsáveis? Pelo contrário, os órgãos estão esvaziados e parece que essa portaria é premeditada: sabe-se que em 60 dias não será possível fazer um parecer técnico – analisar as pesquisas que as indústrias fornecem sobre o agrotóxico e as pesquisas internacionais – porque não tem funcionários para isso. Dois terços dos agrotóxicos que são liberados no Brasil são proibidos na União Europeia porque causam câncer, má-formação e são prejudiciais à saúde humana e ambiental. Então, será que liberar a comercialização desses produtos pode fazer bem para a agricultura ou estão pensando somente no aumento da produtividade e no lucro? Se é só isso, que valor tem a vida humana, a vida ambiental? Nenhum.

IHU On-Line – Com essa portaria, o Ministério da Agricultura passa a mensagem de que a última fase de avaliação dos agrotóxicos – a que libera a comercialização dos produtos – não necessita de uma análise tão detalhada quanto as fases anteriores, que são responsabilidade da Anvisa e do Ibama. Pode nos explicar qual é a importância da análise feita pelo Mapa antes da liberação da comercialização de agrotóxicos?

Wanderlei Pignati – Primeiro, é necessário manter a análise do Mapa, porque os agrotóxicos são tóxicos não somente para insetos e ervas daninhas que crescem na monocultura, mas são tóxicos para os humanos. A reclassificação dos agrotóxicos, feita no ano passado, parece estar acompanhando um autoritarismo, e agora vem esta medida do Mapa.

Muitos agrotóxicos foram cancelados por causa da toxidade humana, mas muitos ainda são comercializados, apesar de serem proibidos, como é o caso do paraquat. Ele foi proibido em 2017, mas a sua retirada do mercado está acontecendo progressivamente: foi retirado 1/3 em 2018, 1/3 em 2019 e 1/3 em 2020, e será proibido definitivamente somente em 2021. Por que a proibição e sua retirada do mercado se deram dessa maneira, se ele causa lesão pulmonar, lesão renal e doença de Parkinson, conforme está escrito na resolução assinada pelos três ministérios? Além disso, outros agrotóxicos prejudiciais poderão ser liberados nesse período de 60 dias. Nos EUA, por exemplo, 600 funcionários fazem parte do órgão ambiental responsável por fazer esse tipo de estudo, enquanto no Brasil temos uma dúzia de profissionais. Como uma dúzia de funcionários vai analisar centenas de pedidos em 60 dias? Como eu disse, parece que a resolução é proposital.

As regiões que mais usam agrotóxicos são as que mais registram casos de intoxicação aguda, que é a ponta do iceberg: registram o maior número de pacientes que mais fazem hemodiálise, casos de câncer infanto-juvenil até 18 anos de idade e má-formação congênita. Faça um levantamento nos centros de hemodiálise no Rio Grande do Sul e verá que ou os pacientes trabalharam com agrotóxicos ou moram em regiões onde há uso de agrotóxicos e bebem água contaminada. Quando o agrotóxico é utilizado, ele não atinge somente a erva daninha, mas o ambiente como um todo; uma parte desses resíduos fica no fruto, desce para o lençol freático e outra parte evapora para o ar, que condensa e gera a chuva. Ou seja, é um ciclo de destruição.

IHU On-Line - A que o senhor atribui a portaria do Mapa? Em que contexto surge essa mudança?

Wanderlei Pignati – A portaria só tem o sentido de aumentar a produtividade, mas esse aumento é passageiro, porque os fungos, as pragas e as ervas daninhas passam a ter resistência. Com isso, em pouco tempo vamos precisar de agrotóxicos mais fortes, como já temos visto. O glifosato hoje quase não faz mais efeito. Estão objetivando o lucro e a produtividade a custo de quê e de quem? Para aumentar o passivo ambiental e as doenças humanas?

IHU On-Line - Como a portaria está repercutindo entre aqueles que questionam o uso de agrotóxicos no país? Estão organizando movimentações de oposição à medida?

Wanderlei Pignati – A portaria está repercutindo muito mal entre os pesquisadores nacionais e internacionais. A Campanha Nacional contra os Agrotóxicos e pela Vida e o Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos estão se mobilizando e vamos fazer uma mobilização nacional. Além disso, tem a ação do Ministério Público, porque não se pode instituir uma portaria que vá prejudicar a vida humana, animal e ambiental sem ter uma estrutura de trabalho para dar conta da demanda. Se o governo quer que as análises sejam feitas em 60 dias, é preciso multiplicar por dez o número de funcionários dos órgãos que fazem as análises para liberação de agrotóxicos.

IHU On-Line - A portaria pode abrir uma prerrogativa para que o prazo de liberação dos agrotóxicos possa ser reduzido nas duas fases anteriores, a da Anvisa e a do Ibama? Fala-se nos bastidores sobre isso?

Wanderlei Pignati – Sim. Essa possibilidade existe, porque o governo não está prezando pela democracia e por ouvir os pesquisadores. O governo deveria ouvir os pesquisadores e não somente as indústrias de agrotóxicos, porque elas estão interessadas no lucro e na produtividade, assim como os fazendeiros e o agronegócio. A portaria pode abrir uma janela para uma série de outras arbitrariedades como essa.

IHU On-Line - Como as pesquisas da área da saúde sobre os impactos dos agrotóxicos têm repercutido entre os órgãos que são responsáveis pelo registro e liberação de agrotóxicos? Há um diálogo entre os pesquisadores e os técnicos dos órgãos regulatórios?

Wanderlei Pignati – Anos atrás participei de audiências públicas no Congresso e alguns deputados são sensíveis à causa, inclusive conseguimos proibir uma série de agrotóxicos a partir de uma resolução da Anvisa de 2008, que tinha como objetivo proibir 14 agrotóxicos – conseguimos proibir dez deles. Isso foi feito com base em pesquisas internacionais e nacionais acerca da contaminação da água por agrotóxicos.

Será que os agrotóxicos que serão liberados vão ser mais persistentes e poluir mais ainda a água? Em governos passados, tínhamos condições de fazer essas análises, de discutir, e os órgãos ao menos escutavam o que tínhamos a dizer. Agora, parece que isso não existe mais e a política está totalmente voltada para o desenvolvimento econômico. Nós também queremos o desenvolvimento econômico, mas ele também tem que ser social, ambiental, democrático, e ter em vista a saúde e não a doença. Um dos fatores que está gerando muitos casos de câncer no país é o uso de agrotóxicos. Daqui a pouco teremos que ter um hospital para tratamento de câncer em cada município. Então, temos que fazer um movimento em direção a isto: queremos saúde e não somente combater a doença.

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