A liberação de agrotóxicos e a incidência das doenças onco-hematológicas da criança e do adolescente. Entrevista especial com Silvia Regina Brandalise

Foto: GDStone- Flickr

Por: João Vitor Santos | 03 Dezembro 2019

A médica especialista em oncologia pediátrica Silvia Regina Brandalise é uma das referências no tratamento do câncer no Brasil. No entanto, ela prefere se definir como uma “profissional que vive no campo das doenças onco-hematológicas da criança e do adolescente, simplesmente inconformada com a crescente incidência destas enfermidades”. E não é à toa, pois Silvia, trabalhando nos tratamentos, parece materializar a metáfora de “enxugar gelo”. Ao mesmo passo em que a ciência avança na busca pelo combate a essa doença, na outra ponta, fatores que contribuem para o desenvolvimento de cânceres seguem em descontrole. É o caso dos agrotóxicos. “Estudos epidemiológicos internacionais, realizados durante décadas, já demonstraram, de maneira inequívoca, a associação entre exposição ambiental a uma série de poluentes, incluindo os agrotóxicos, e a ocorrência de câncer em crianças”, reitera, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Além disso, a médica destaca que as crianças são as mais vulneráveis a essas contaminações. O pior é que isso ocorre desde a gestação e segue nos primeiros meses de vida. “Há várias teses científicas defendidas no Brasil e que já demonstraram que no leite materno existem quantidades inimagináveis de resíduos químicos e mesmo de metais pesados. Frente a estes agravos, a criança não tem como se defender”, alerta. E Silvia não poupa: compreende a grande liberação de agrotóxicos no Brasil que são proibidos em outros países como verdadeiro atentado à saúde. “Ferem-se os princípios da precaução e da prevenção, quando é nosso dever constitucional o foco na Promoção da Saúde da população”, dispara. E acrescenta: “As irregularidades observadas no cenário nacional, quanto à liberação de agrotóxicos já sabidamente nocivos à saúde humana, possivelmente se relacionam aos altos dividendos financeiros oriundos do agronegócio e, secundariamente, aos divulgados financiamentos político-partidários”.

Para ela, o “maior desafio para o controle dos agrotóxicos é a educação da população brasileira, desde o ensino fundamental até às universidades, sobre a importância da preservação ambiental e da saúde humana”. Por aqui, por exemplo, investe-se pouco em saneamento e se apela para repelentes e inseticidas para combater mosquitos e outros vetores sem se levar em consideração a carga de veneno desses produtos. Realidade que, como conta a médica, é outra em países da Europa. “Recentemente, li num jornal internacional a reivindicação da população francesa para que a Johnson & Johnson retirasse um derivado do benzeno da composição do xampu das crianças. A empresa foi judicialmente obrigada a retirar esse produto dos ingredientes do xampu”, revela.

Silvia Brandalise (Foto: Unicamp)

Silvia Regina Brandalise é graduada em Medicina pela Escola Paulista de Medicina - Unifesp, com residência em Pediatria pela mesma instituição. Concluiu doutorado em Pediatria na Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. É membro fundador e presidente do Centro Infantil de Investigações Hematológicas Dr. Domingos A. Boldrini, hospital filantrópico e hospital de ensino, conveniado à Unicamp. Ainda atuou como professora do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Unicamp. Oncologista pediátrica, é engajada na luta pelo combate à doença.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Defensores do uso de agrotóxicos insistem que os efeitos sobre a saúde humana são pequenos. No entanto, o que as pesquisas mais recentes têm apontado acerca das relações entre agrotóxicos e o desenvolvimento de câncer?

Silvia Regina Brandalise – O câncer é uma doença multifatorial. Estudos epidemiológicos internacionais, realizados durante décadas, já demonstraram, de maneira inequívoca, a associação entre exposição ambiental a uma série de poluentes, incluindo os agrotóxicos, e a ocorrência de câncer em crianças. Pesquisas recentemente publicadas na Dinamarca e na Itália mostraram essas associações, assim como as pesquisas de outros países que integram o ICCCC, Consórcio Internacional do Coorte de Câncer em Crianças. Este último grupo, o ICCCC, é vinculado à Organização Mundial da Saúde.

IHU On-Line – Quais os maiores riscos de contaminação por agrotóxicos, manejo direto, indireto ou via contaminação de alimentos? E que tipo de doenças (ou cânceres) essas exposições podem causar?

Silvia Regina Brandalise – O maior risco da exposição aos agrotóxicos ocorre no lavrador e nas crianças que residem próximo às plantações. São vários os motivos elencados em recentes estudos, desde o despreparo e desconhecimento dos efeitos nocivos à saúde, equipamentos inadequados ou uso incorreto, falta de normas regulatórias, principalmente aquelas relacionadas à pulverização dos agrotóxicos – procedimento este já banido nos países desenvolvidos.

São várias as doenças secundárias à exposição de agrotóxicos, incluindo as imunodeficiências, distúrbios endócrinos, autismo e distúrbios neurológicos, distúrbios hematológicos como leucopenias, aplasia de medula óssea e mielodisplasias, além do câncer. Na faixa etária pediátrica (menores de 19 anos), os tumores do Sistema Nervoso Central e as leucemias são os mais citados.

IHU On-Line – Como avalia a qualidade do alimento produzido no Brasil, no que diz respeito à contaminação por agrotóxicos? Quais devem ser os efeitos no longo prazo?

Silvia Regina Brandalise – A avaliação da qualidade dos alimentos no Brasil é de competência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa. O Ministério Público do Trabalho divulgou recentemente uma tabela com todos os efeitos agudos, subagudos e crônicos, secundários aos diferentes grupos de agrotóxicos disponíveis no mercado nacional. Os efeitos a longo prazo sempre estarão relacionados à intensidade e à duração dessas exposições.

IHU On-Line – A senhora trabalha no tratamento de casos de câncer infantil. Que relações se pode estabelecer entre casos de câncer nas crianças e o uso e consumo de agrotóxicos? Podemos considerar que os pequenos são os mais vulneráveis?

Silvia Regina Brandalise – As crianças, quer na vida intraútero, quer após o nascimento, possuem seu organismo ainda imaturo, com células embrionárias, razão pela qual são mais sensíveis aos agravos ambientais e a doenças maternas. Há várias teses científicas defendidas no Brasil e que já demonstraram que no leite materno existem quantidades inimagináveis de resíduos químicos e mesmo de metais pesados. Frente a esses agravos, a criança não tem como se defender.

IHU On-Line – Qual a sua avaliação sobre a legislação brasileira no que diz respeito ao uso e manejo de agrotóxicos? E quanto ao controle e fiscalização?

Silvia Regina Brandalise – Sabemos que a legislação brasileira é altamente permissiva ao registro no país, inclusive de produtos já proibidos na União Europeia e outros países desenvolvidos. É de amplo conhecimento que os "níveis aceitáveis" detectados nos alimentos – incluindo a água potável – são significativamente maiores no Brasil, em relação aos países do primeiro mundo.

IHU On-Line – Como analisa a liberação de um grande número de agrotóxicos feita pelo atual governo nos últimos meses?

Silvia Regina Brandalise – Interpreto a liberação do uso abusivo dos agrotóxicos no Brasil – inclusive os já proibidos nos países desenvolvidos – como uma ameaça à Saúde Humana. Ferem-se os princípios da precaução e da prevenção, quando é nosso dever constitucional o foco na Promoção da Saúde da população.

IHU On-Line – Por que há agrotóxicos que são proibidos na Europa e nos Estados Unidos, mas que têm a comercialização liberada no Brasil? Quais as questões de fundo desse cenário?

Silvia Regina Brandalise – As irregularidades observadas no cenário nacional, quanto à liberação de agrotóxicos já sabidamente nocivos à saúde humana, possivelmente se relacionam aos altos dividendos financeiros oriundos do agronegócio e, secundariamente, aos divulgados financiamentos político-partidários.

IHU On-Line – Hoje, qual o pior (ou os piores) agrotóxico que tem sido usado no Brasil? Como é seu uso e quais os riscos para a saúde e o meio ambiente?

Silvia Regina Brandalise – São tantos os venenos que seria difícil dizer quais são os piores. É conhecida a lista dos agrotóxicos banidos, todavia o Brasil os ignora. Entretanto, atualmente, a literatura científica internacional tem ressaltado o glifosato no malefício à saúde humana.

IHU On-Line – Quais os desafios para intensificar o controle ao uso de agrotóxicos no Brasil?

Silvia Regina Brandalise – Vejo como o maior desafio para o controle dos agrotóxicos a educação da população brasileira, desde o ensino fundamental até às universidades, sobre a importância da preservação ambiental e da saúde humana. Recentemente, li num jornal internacional a reivindicação da população francesa para que a Johnson & Johnson retirasse um derivado do benzeno da composição do xampu das crianças. A empresa foi judicialmente obrigada a retirar esse produto dos ingredientes do xampu.

IHU On-Line – Como conceber alternativa para a produção de alimentos sem a dependência de produtos químicos? Qual o papel da sociedade civil nesta busca por alimentos de maior qualidade?

Silvia Regina Brandalise – O papel da sociedade civil é relevante, não somente no que se refere ao pleno conhecimento da importância do alimento e da água potável livres de resíduos de agrotóxicos ou de metais pesados ou de outros produtos químicos como os hormônios. Há teses científicas que demonstraram os altos níveis de hormônios na água do rio Atibaia. As desregulações endócrinas e câncer de órgãos endócrinos estão relacionados, nestas patologias em adolescentes e adultos jovens, com o excesso de hormônios.

Na cadeia de produção dos alimentos, seria importante seguir as Diretrizes Europeias e as da FDA (Estados Unidos) na busca da segurança alimentar ao cidadão.

IHU On-Line – Recentemente, pesquisas apontam alta incidência do herbicida 2,4-D, usado amplamente em lavouras de soja no Rio Grande do Sul e em outras culturas, como a fruticultura. O que esse caso revela?

Silvia Regina Brandalise – Lamentavelmente, o herbicida 2,4-D, banido dos países desenvolvidos, ainda circula em nosso país. Malformações congênitas e diversos tipos de câncer estão associados ao seu uso. Pesquisadoras, como a Prof. Dra Sonia Hess, possuem dados precisos que abordam esta catástrofe do uso do 2,4-D.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Silvia Regina Brandalise – Finalmente, gostaria de abordar o atual uso abusivo do Malathion (Fumacê da dengue) e dos repelentes, principalmente em gestantes e bebês. Num país onde ainda nos deparamos com a falta da infraestrutura da rede de esgoto, falta da coleta sistemática do lixo, é esperado ter mais insetos e parasitas no meio ambiente. Todavia, envenenando grosseiramente o meio ambiente, pagamos o preço de aumento das malformações congênitas de crianças, além do câncer e outras doenças que ameaçam a vida de milhares de jovens brasileiros.

 

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