05 Março 2020
Era noite. A madrugada do dia 3 de março. Ao menos um pistoleiro entrou na casa de Berta Cáceres. “Quem está aí?”, perguntou na escuridão. Já se passaram quatro anos daquele assassinato que colocou fim à vida da ativista hondurenha, uma indomável ecologista. Este não foi o primeiro crime político contra uma defensora da Terra, tampouco o último. O crime serviu, não em vão, para colocar no centro da mídia a realidade em que vivem as comunidades indígenas da América Latina, cujas terras ancestrais são assediadas por megaprojetos industriais e urbanístico.
A reportagem é de Alejandro Tena, publicada por Público, 02-03-2020. A tradução é do Cepat.
“O assassinato de Berta Cáceres permitiu visibilizar o problema dos povos latino-americanos. Seu caso transcendeu em nível mundial”, argumenta Marina Díaz, porta-voz da Plataforma por Honduras. “Ela foi assassinada por defender os recursos naturais de um modelo extrativista em que o capital nacional e internacional tem grandes implicações”, acrescenta. Os meios de comunicação do ocidente, normalmente alheios aos conflitos do sul global, denunciaram a morte e os envolvimentos empresariais que se escondiam por trás desse homicídio. Tanto é assim, que tiraram a vida de Cáceres por se opor ao projeto hidrelétrico de Agua Zarca, segundo um relatório elaborado pelo Grupo Internacional de Pessoas Especialistas (GAIPE), em 2017.
Apesar das evidências e provas apresentadas pela defesa da família e do COPINH - organização à qual pertencia Cáceres -, a Justiça hondurenha não acusou os diretores da empresa DESA, supostos autores intelectuais do crime. Em certa medida, o assassinato da ativista evidencia outra realidade por trás dos crimes do extrativismo: a impunidade. Esse é o entendimento de Miguel Ángel Soto, especialista em Direitos Humanos do Greenpeace, que ressalta que a falta de condenações é a nota dominante nos vários assassinatos de defensores da Terra.
Em certa medida, Berta Cáceres deixa um legado de luta, para o bem e para o mal. “Quando morreu, multiplicou-se e sua semente se tornou milhões”, expõe Díaz, de uma maneira um tanto bíblica. Seu sangue derramado se converteu em uma espécie de movimento social do qual brotaram milhares de defensores ambientalistas. Embora seja verdade que as balas que a mataram não conseguiram calar os povos indígenas, o barulho midiático também não conseguiu, apesar de tudo, frear os assassinatos de líderes indígenas.
Os assassinatos não pararam desde então. Tanto, que a média fala em três defensoras da Terra assassinadas por semana, a cada ano, de acordo com o último relatório da organização Global Witness. Sendo assim, em 2019, foram assassinadas em todo o mundo - a maioria delas na América Latina - 304 defensores dos direitos humanos, dos quais 40% eram ativistas ligados à Terra e ao meio ambiente, segundo dados da ONG Front Line Defenders. No caso de Honduras, país de Berta Cáceres, os números falam de 31 crimes, durante o último ano.
Isso se deve, principalmente, ao fato de as máquinas do crescimento capitalista não terem parado desde o homicídio de Cáceres. “Longe dos discursos neoliberais de buscar novas tecnologias e alternativas de negócios, a verdade é que a roleta de consumo continua girando, o que se traduz em uma maior demanda por matérias-primas e energia”, argumenta Erika González Briz, porta-voz do Observatório de Multinacionais na América Latina (OMAL). “Os megaprojetos extrativistas não cessarão, pelo contrário, e os conflitos sociais permanecerão lá”.
“As coisas não mudaram desde então, porque os povos indígenas continuam correndo alto risco pelas atividades extrativistas”, denuncia Díaz, que reivindica a figura da ativista hondurenha para além do perfil popular esculpido pelos meios de comunicação: “Não era apenas uma ativista feminista e uma defensora da Terra, Berta Cáceres era uma líder social revolucionária, o que sempre se quis esconder”.
“Hoje, nas lutas territoriais, as mulheres estão presentes. Não apenas parimos a vida, também parimos movimentos, parimos ideias ... Por isso, estão nos assassinando”, resumia em uma entrevista recente Miriam Miranda, ativista hondurenha e companheira de luta de Berta Cáceres, cujo homicídio simboliza esse duplo conflito que centenas de mulheres defensoras da Terra enfrentam diariamente. Por um lado, a batalha com os poderes externos, que usurpam sementes e devastam florestas ancestrais. Por outro, a estigmatização interna que supõe levantar a voz em sociedades com uma acentuada estrutura patriarcal.
“Cáceres conseguiu fazer uma síntese muito poderosa entre feminismo, Terra e justiça social”, acrescenta Soto. Em certa medida, essa união de conceitos responde ao papel de cuidados que as mulheres têm nessas comunidades, cujos trabalhos, devido à divisão sexual do trabalho, ficam unidos ao ambiente natural e à defesa dos companheiros e da família.
É por isso que os projetos extrativistas acabam afetando, sobretudo, as mulheres. Quando se propõe a construção de uma barragem que seca os rios mais próximos de um povoado, são as mulheres – responsáveis em prover os lares com água - que devem dobrar os quilômetros para encher os baldes em outros rios e córregos mais distantes. Não apenas isso, o extrativismo também “aumenta a presença militar e masculina associada à mão de obra desses projetos, o que deixa as mulheres expostas a maiores riscos de violência sexual”, afirma González Briz.
Após quatro anos de assassinato, tudo permanece o mesmo. Contudo, a imagem de Cáceres - presente em camisetas, cartazes e murais coloridos que decoram as ruas de Tegucigalpa - serve como símbolo popular contra um sistema que coloca os interesses econômicos à frente dos direitos humanos e os limites da Terra. O legado deixado pela hondurenha é algo que transcende as fronteiras do Estado centro-americano e chega a todos os cantos do planeta onde se reproduzem as mesmas dinâmicas de exploração, pilhagem e violência.
“Estamos em um mundo cheio”, avalia González Briz. “Já não há áreas exclusivas para serem exploradas e o poder capitalista busca novos territórios para aumentar seu crescimento material”. Esses lugares estão, segundo o especialista, nas periferias do sul global - América Latina, África e Ásia -, mas também em territórios ocidentais, onde outras populações resistem às tentativas corporativas de extrair recursos em seus territórios. “Na Europa, existem práticas de perseguição de ativistas semelhantes, ainda que não se chegue ao assassinato, como, por exemplo, aconteceu na mina de volfrâmio de Salamanca. O caso da luta de Berta Cáceres é uma realidade que se repete sistematicamente em todo mundo”, acrescenta.
Com quatro anos contados, o incentivo de Cáceres continua sendo um impulso ao ativismo global, que exige um mecanismo internacional vinculante para garantir que as atividades econômicas das grandes corporações não atentem contra os direitos humanos, nem contra o meio ambiente e os direitos dos povos indígenas.
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A semente de Berta Cáceres e outros 300 assassinatos de defensores da Terra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU