Dos senhores da guerra afegãos aos “coletes amarelos”. A visão de mundo de Gilles Dorronsoro

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30 Agosto 2019

O professor de Ciências Políticas descobriu, no seu retorno à França, as mesmas paixões identitárias e as mesmas desigualdades existentes em terras distantes, Afeganistão e Síria, das quais ele é especialista.

A reportagem é de Christophe Ayad, publicada por Le Monde, 27-08-2019. A tradução é de André Langer.

E se a economia fosse apenas a continuação da guerra por outros meios? Não é necessariamente obrigatório ter feito uma tese sobre Clausewitz (“A guerra é a continuação da política por outros meios”) ou reler tudo o que Foucault escreveu (a política é a continuação da guerra por outros meios) para chegar a este axioma. Mas quando um especialista reconhecido no Afeganistão e nas guerras civis, um interlocutor regular com quem discutimos o conflito sírio, a estratégia do Estado Islâmico ou a do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), publica um livro sobre as desigualdades sociais na França e o perigo que representam para a democracia, somos compelidos a lançar um novo olhar sobre o país em que vivemos.

Com Le Reniement démocratique. Néolibéralisme et injustice sociale (A negação democrática. Neoliberalismo e injustiça social, Fayard, 192 p., 18 euros), publicado na primavera, Gilles Dorronsoro assina seu Retour à Reims [Retorno a Reims, obra autobiográfica de Didier Eribon, publicada em 1999]. Assim como o livro de Didier Eribon, o trabalho de Dorronsoro inicia com uma dedicação ao pai com apenas duas datas: 1928-2017. Nós não lhe perguntamos se sua abordagem estava enraizada neste luto, porque ele não é do tipo de se derramar. Mas chega uma idade, 56 neste caso, em que, após ter viajado muito, estudado e refletido sobre o que estava acontecendo em outras partes do mundo, se permite lançar um olhar sobre o que está acontecendo em sua própria casa. E aí a surpresa: descobre um país estranho para ele, e que estranhamente se assemelha àquelas terras distantes e em guerra, nas quais trabalha como pesquisador.

A eleição de Emmanuel Macron vivida como um “choque”

A bibliografia de Gilles Dorronsoro tem trinta entradas, artigos, livros, coletivos ou indivíduos, mas A negação democrática é a única obra dedicada à França ou mesmo a um país ocidental. O que motivou esse professor de Ciências Políticas na Universidade de Paris I, regularmente convidado para os Estados Unidos por sua experiência afegã e à frente de um megaprojeto de pesquisa sobre guerras civis financiado por fundos europeus? Para Gilles Dorronsoro, o gatilho foi a eleição de Emmanuel Macron em 2017, que ele viveu como “um choque” e no qual viu o espectro de um “desaparecimento da esquerda”, ele que alega ser de uma esquerda não-populista. Segunda razão, já evocada: “O reconhecimento de uma forma de enraizamento e o desejo de tentar entender a própria sociedade”.
Finalmente, havia o desejo de corrigir uma característica de sua geração de pesquisadores: a que consistia em tomar o oposto da figura do intelectual comprometido, que, de Sartre a Bernard-Henry Lévy, foi repulsiva por causa de seus erros e aproximações, para preferir a perícia do especialista. “O campo midiático funciona de maneira que eu seja audível sobre o Afeganistão ou a Turquia, diz. Ao mesmo tempo, tenho a impressão de que tenho coisas a dizer, mais gerais, mais políticas”. Najat Vallaud-Belkacem, que dirige a coleção Raison de Plus na Editora Fayard, incentivou Gilles Dorronsoro a escrever e publicar seu breve ensaio sem demora.

“Eu percebi que não havia mais um alhures, nem exotismo”

Este livro é também o resultado de uma globalização que embaralha as fronteiras. “Aos 20 anos, quando fui para terras exóticas, primeiro a Angola e depois o Afeganistão, elas estavam por natureza longe da França. Eu não tinha telefone celular ou internet. Eu ia para casa e ficava tranquilo. Mas agora, não consigo mais manter a distância com a minha terra. Eu percebi que as pessoas que vi no Afeganistão ou na Síria eram as mesmas que eu encontrava perto da minha casa. As ONGs que trabalham nestes países são as mesmas que trabalham com os migrantes. Percebi que não havia mais um alhures, nem exotismo”.

A originalidade da sua abordagem está em descrever processos que, como as pessoas, os capitais ou as armas, circulam nas duas direções. As receitas neoliberais do Norte puderam ser aplicadas no Sul, como no caso da reconstrução do Estado iraquiano em 2003 pelos Estados Unidos, que transformou o mais jacobino dos países árabes em um caos capitalista e selvagem onde a educação, a saúde e até a segurança foram privatizadas. Aconteceu também que os países do Sul, como o Afeganistão após a invasão ocidental de 2001, longe de serem terras distantes da modernidade como poderíamos pensar, foram usados como campos de experimentação de uma acumulação capitalista sem limites graças à constituição de monopólios e à privatização quase total do Estado. Com, por corolário, o desencadeamento de paixões identitárias, sejam étnicas, confessionais ou tribais.

De agora em diante, não é mais preciso pegar o avião. Basta a Gilles Dorronsoro descer ao pé do seu prédio, no norte de Paris. Um dia, uma jovem muçulmana é expulsa do clube esportivo por estar usando um véu; no outro, é o início do pogrom contra famílias ciganas acusadas pelo boato público e notícias veiculadas pelas redes sociais para remover as crianças. Em um terceiro, é uma amiga que lhe confia que lamenta ter dado um nome hebraico à filha em tal contexto.

Como grandes desigualdades levam à exacerbação das paixões identitárias? “A partir do momento em que pensamos que existe apenas uma maneira de administrar a economia, é automático, passamos à identidade, responde Gilles Dorronsoro. Isso funciona dessa maneira em todos os lugares, mesmo que não haja imigrantes”. Para ele, o ponto de virada remonta aos anos 1980: a revolução de (Ronald) Reagan nos Estados Unidos, o choque de (Margaret) Thatcher no Reino Unido, o plano rigoroso de 1983 na França, em retrospectiva, o cenário é o mesmo em toda parte. “Foi lá que nós entramos em um sistema de demolição sistemática dos ganhos sociais e do Estado como agente regulador e sua captura pelas elites econômicas. O plano rigoroso e a ascensão da Frente Nacional são concomitantes, é automático, todo o resto é poesia”.

No entanto, as receitas neoliberais continuam a ser aplicadas com constância e até se imiscuíram na intimidade, no corpo e nas relações amorosas. Desde então, há uma ruptura da representação nos sistemas políticos que não funcionam mais para a maioria da população, mas para uma elite. A crise dos “coletes amarelos”, que eclodiu enquanto estava escrevendo este livro, não surpreendeu o cientista político, mas preferiu não tratar tanto do assunto por falta de distância em relação ao fenômeno.

Hoje, até bilionários como Warren Buffett pedem mais impostos...

Se o estudo da economia dos senhores da guerra afegãos permitiu ao pesquisador descobrir lógicas de acumulação bastante aplicáveis nas economias ocidentais, é nos Estados Unidos que Gilles Dorronsoro “redescobriu” o marxismo como ferramenta de análise. Convidado pela Fundação Carnegie de Washington, de 2008 a 2011, ele assistiu de camarote a crise financeira de 2008 e logo percebeu que Barack Obama havia decidido ser apenas “um presidente de centro que procura reparar um maldito sistema. Foi quando comecei a olhar para as estatísticas e reler Marx. Percebi que uma tal taxa de acumulação de capital só poderia explodir o sistema. Hoje, até mesmo bilionários como Warren Buffett estão pedindo mais impostos...”.

De volta à França, encontrou um mundo universitário em plena decadência. “Mantemos a ideia romântica de que estamos fazendo um trabalho formidável e único, mas a universidade funciona como o resto da sociedade, com um terço de precários e uma privatização cujos efeitos veremos na próxima geração. O ensino superior na França é um mercado não tão diferente dos outros”. Hoje, sua carreira como filho de operário de Clermont que se tornou uma “eminência” do ensino e da pesquisa, provavelmente não seria mais possível. Surpreendente retorno das coisas para o cientista político que, jovem, havia fugido da França por causa do esnobismo dos discípulos de Pierre Bourdieu na universidade.

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