Desigualdades, o maior problema das sociedades ocidentais. Entrevista com Emanuele Felice

Mais Lidos

  • “Os israelenses nunca terão verdadeira segurança, enquanto os palestinos não a tiverem”. Entrevista com Antony Loewenstein

    LER MAIS
  • Golpe de 1964 completa 60 anos insepulto. Entrevista com Dênis de Moraes

    LER MAIS
  • Quando a solidão é uma doença

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

Por: Patricia Fachin | Tradução de Moisés Sbardelotto | 04 Janeiro 2018

O aumento da pobreza e das desigualdades, especialmente nos países europeus, tem como consequência o crescimento de “um discurso político antielite e populista, que nunca foi tão forte na Europa desde os anos 1930”, diz o economista italiano Emanuele Felice à IHU On-Line.

Para ele, a ascensão da desigualdade é hoje o maior problema das sociedades ocidentais e pode ser explicada pelo desenvolvimento de “políticas neoliberais desviadas em favor dos ricos”. Além disso, frisa, a desigualdade se configura como um problema por “uma questão de justiça” e “precisamente porque ela nunca foi tão alta desde a era liberal e a primeira era da globalização”, e finalmente porque “ela é perigosa para a sobrevivência da democracia (da democracia de massa): esta se baseia em princípios igualitários, que colidem com fortes desigualdades”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Felice também reflete sobre a esquerda europeia e distingue entre dois tipos de esquerda: a radical e a moderada. A primeira, explica, “ficou presa em um estado de espírito focado no nacional, que tornou ineficazes as suas políticas”, enquanto que a segunda “aceitou muito otimistamente a visão neoliberal da globalização – ou seja, a doutrina do laissez-faire na economia nacional –, ignorando, assim, a questão das desigualdades crescentes e, no fim, abandonando (ou dando a impressão de abandonar) a sua própria base eleitoral; ela também abandonou aquilo que a fez grande, os princípios do Estado de bem-estar social”.

Para enfrentar o fenômeno das desigualdades nos dias de hoje, Felice sugere que “a esquerda deveria apostar na inovação tecnológica e no capital humano. Ou seja, na igualdade de oportunidades para uma sociedade altamente inovadora e progressista. Essa é a única maneira de permanecermos prósperos e relativamente iguais em um mundo globalizado”. Além disso, pontua, “há alguns objetivos globais que a esquerda, em todo o mundo, deve buscar. São essencialmente três: direitos humanos universais, uma agenda global sobre o ambiente e novas e melhores regras para a globalização”.

Emanuele Felice| Foto: noivastesi.blogspot

Emanuele Felice é doutor em História da Economia pela Universidade de Pisa, na Itália e atualmente é professor de Economia Aplicada na Universidade “G. D’Annunzio” Chieti-Pescara, Itália.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De modo geral, como o senhor descreve a situação financeira e econômica da Europa? Quais são os países que enfrentam maiores dificuldades?

Emanuele Felice – Nos últimos dois anos, as coisas melhoraram, a economia está em ascensão. Mas permanecem problemas nos países com as maiores dívidas públicas (Itália, Bélgica, Grécia) ou com alta instabilidade política (Itália, Reino Unido, mas a Espanha, em meio a sérias turbulências políticas, está se recuperando bem). Eu diria que os países com mais problemas hoje em dia são a Itália, a Grécia e, por causa do Brexit, o Reino Unido.

IHU On-Line – Alguns economistas afirmam que a Europa se tornou refém dos bancos e da austeridade. Concorda com esse diagnóstico? Qual tem sido o peso da austeridade na economia europeia?

Emanuele Felice – Para ser franco, os  bancos que enfrentam a falência geralmente são salvos ou, de algum modo, ajudados, ainda mais se forem importantes, mais ou menos em todo o mundo. No entanto, eu concordo com os críticos da austeridade. O Banco Central Europeu, liderado naquela época por Jean-Claude Trichet, elevou muito facilmente as taxas de juros em 2011: isso mergulhou a Zona do Euro em uma terceira fase da recessão mundial (na verdade, uma crise europeia). Além disso, a política de austeridade seguida pela Comissão Europeia de Barroso e pelos governos nacionais agravou ainda mais a situação. Mas, em nossos dias, a política monetária é muito mais expansiva, e a austeridade, embora ainda presente, tem sido consideravelmente suavizada.

IHU On-Line – Havia alternativas à política de austeridade? Quais?

Emanuele Felice – Eu acho que o grande erro foi aumentar muito cedo as taxas de juros de curto prazo, em abril e depois em julho de 2011. Em curto prazo, a alternativa era mais flexibilidade, como é hoje. Em longo prazo, existe apenas uma opção, se quisermos manter a moeda única: uma política e um ministério fiscais comuns europeus. Mas, para chegar lá, os países europeus, entre outras coisas, devem convergir nas finanças públicas (tanto nas dívidas quanto nos déficits públicos); e isso exigiria, inevitavelmente, alguma austeridade sobre os países endividados. Deveria haver alguma flexibilidade, é claro, mas alguns entendem que o caminho é estreito – uma vontade política forte em favor da união fiscal europeia ajudaria muito.

IHU On-Line – Quais são as consequências das medidas de austeridade na política? Que tipos de discursos políticos têm emergido desse tipo de política?

Emanuele Felice – Em termos gerais, a pobreza e a desigualdade aumentaram, embora com diferenças significativas entre os países. Isso ajudou um discurso político antielite e populista, que nunca foi tão forte na Europa desde os anos 1930: esse é um risco sério para a sobrevivência do euro e da própria União Europeia. Eu acrescentaria: na Europa ocidental, o país onde os populistas são mais fortes é a Itália, o país que menos cresceu nos últimos 20 anos.

IHU On-Line – Por que a desigualdade se configura, na sua avaliação, como o maior problema das sociedades ocidentais, e por que a desigualdade nos países ocidentais nunca foi tão alta? O que explica esse fenômeno?

Emanuele Felice – A desigualdade é o maior problema por uma questão de justiça, em primeiro lugar, e precisamente porque ela nunca foi tão alta desde a era liberal e a primeira era da globalização. Mas, não por último, porque ela é perigosa para a sobrevivência da democracia (da democracia de massa): esta se baseia em princípios igualitários, que colidem com fortes desigualdades. A razão pela qual a desigualdade está em ascensão, dentro das sociedades ocidentais, é simples: políticas neoliberais desviadas em favor dos ricos. Mas gostaria de salientar que a austeridade e as políticas liberais pró-ricos não são necessariamente sinônimos: elas podem até ser opostas umas às outras (veja a última reforma fiscal de Donald Trump).

IHU On-Line – Que tipo de políticas poderiam contribuir para reduzir as desigualdades sociais?

Emanuele Felice – É claro que podemos ter despesas de bem-estar social em favor dos pobres. Isso é bastante óbvio. Mas há um campo ainda mais importante, em longo prazo, que muitas vezes é negligenciado: políticas em favor da igualdade de acesso às oportunidades; aquelas para a educação pública, acima de tudo, que não são apenas despesas, mas também investimentos (e, entre outras coisas, essas políticas também favoreceriam o crescimento econômico).

IHU On-Line – Hoje há uma disputa entre aqueles que defendem a globalização e aqueles que apostam nos nacionalismos. Apostar numa dessas vias é suficiente para resolver os problemas econômicos e sociais dos países?

Emanuele Felice – A resposta negativa, provavelmente, pode ser deduzida pela própria pergunta. Com certeza, apostar em nacionalismos não resolveria nenhum problema, não em uma escala global – e, é claro, nós vivemos em um mundo global. Muito provavelmente, isso pioraria todos os problemas internacionais (políticos, sociais, econômicos), como sempre aconteceu no passado.

A razão pela qual a desigualdade está em ascensão, dentro das sociedades ocidentais, é simples: políticas neoliberais desviadas em favor dos ricos

IHU On-Line – O senhor já se manifestou contrário às duas teses gerais sobre a globalização, a saber, a) de que a globalização aumenta as desigualdades e os conflitos e, b) que ela deve ser aceita sem reservas. Como devemos entender o fenômeno da globalização?

Emanuele Felice – Bem, em certo sentido, a globalização é a “flecha da história”, como disse Yuval Harari. É o destino da humanidade, pelo menos no longo prazo.

Nos nossos tempos, se bem gerida, a globalização é a melhor maneira de ajudar os países mais pobres a melhorarem significativamente a sua situação, e assim ela pode contribuir para reduzir a desigualdade (e a injustiça) em uma escala global. No entanto, enquanto o capital e o empreendedorismo são globais, até agora, a política (e as culturas, os povos) ainda parece estar focada principalmente no nacional. Essa é a grande lacuna, que deveria ser superada. Esperançosamente, em favor das instituições e das políticas globais (e de uma cultura e weltanschauung globais).

IHU On-Line – O senhor também tem defendido que a globalização deve ser gerida com a política. Como isso deve ser feito?

Emanuele Felice – Deveríamos começar com algo relativamente fácil – e muito importante: uma luta coordenada contra os paraísos fiscais e o dumping fiscal. Depois, precisamos de um novo sistema monetário global, algo como o estilo Bretton Woods, mais algumas taxas Tobin, a fim de limitar os movimentos financeiros especulativos e de curto prazo, e, ao mesmo tempo, coordenar as taxas de câmbio.

IHU On-Line – Quais são as razões da crise da esquerda na Europa?

Emanuele Felice – Eu acho que deveríamos distinguir entre a esquerda radical e uma esquerda moderada, porque existem diferentes razões para cada uma das duas. A esquerda radical ficou presa em um estado de espírito focado no nacional, que tornou ineficazes as suas políticas (por exemplo, você não pode efetivamente aumentar impostos sobre lucros elevados em um único Estado, em um mundo globalizado); curiosamente, ela abandonou precisamente o internacionalismo, isto é, a abordagem que a tornou grande (basta pensar em Lenin).

A esquerda moderada aceitou muito otimisticamente a visão neoliberal da globalização – ou seja, a doutrina do laissez-faire na economia nacional –, ignorando, assim, a questão das desigualdades crescentes e, no fim, abandonando (ou dando a impressão de abandonar) a sua própria base eleitoral; ela também abandonou aquilo que a fez grande, os princípios do Estado de bem-estar social.

IHU On-Line – Que tipo de esquerda se faz necessária nos dias de hoje? Que pautas diria que devem compor uma agenda à esquerda?

Emanuele Felice – Pelo menos no mundo ocidental, eu acho que a esquerda deveria apostar na inovação tecnológica e no capital humano. Ou seja, na igualdade de oportunidades para uma sociedade altamente inovadora e progressista. Essa é a única maneira de permanecermos prósperos e relativamente iguais em um mundo globalizado.

Porém, eu acho que também há alguns objetivos globais que a esquerda, em todo o mundo, deve buscar. São essencialmente três: direitos humanos universais, uma agenda global sobre o ambiente e novas e melhores regras para a globalização.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Emanuele Felice – Podemos pensar em políticas, podemos desenhá-las no papel. Mas precisamos de atores políticos, movimentos e grupos sociais – isto é, de “interesses organizados” – capazes de promover e defender essas políticas. Elas estão faltando dramaticamente nos nossos tempos: talvez pela falta de uma cultura e de uma consciência apropriadas (e, portanto, de organização), não tanto pela falta de “interesses”.

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Desigualdades, o maior problema das sociedades ocidentais. Entrevista com Emanuele Felice - Instituto Humanitas Unisinos - IHU