Vozes que desafiam. A fogueira e a alma aniquilada de Marguerite Porete

Por: Cleusa Maria Andreatta, Susana Rocca, Wagner Fernandes de Azevedo | 16 Agosto 2019

Para fazer o resgate das vidas apagadas, é necessário encontrar traços em outros relatos, em fontes indiretas. A teologia feminista reforça um método de reflexão bíblica para se perguntar: "O que não está escrito no texto?". Para isso, é preciso compreender um cenário maior que a própria escrita e constituir aquilo que mais se aproxima da verdade que foi escondida. E então, compreender porque a História foi alterada. Com Marguerite Porete aqueles que detinham o poder de escrever e apagar vidas, alma e história, falharam. 


Arte: Rebel Women | Instagram

Marguerite Porete, uma beguina do século XIII, nasceu no condado de Hainaut, entre os atuais território da Bélgica e Holanda. Como beguina fez o serviço em comunidade com outras mulheres, que viviam do seu próprio trabalho, como relata a professora Ceci Maria Baptista, professora da PUC-Campinas. As beguinas superavam os limites impostos pelo clero, cultivando uma mística própria de encontro com o divino.

Beguinas como Mechthild de MagdeburgoBeatriz de NazaréHadewijch e Marguerite Porote propuseram-se a escrever suas reflexões sobre a fé, com obras à mão, escritas em diferentes idiomas, para além do latim. "O amor era a categoria central das obras dessas mulheres místicas, mas a compreensão dele variava de acordo com suas visões sobre a união com o divino. Muitas delas se apropriaram tanto do discurso da mística nupcial como do discurso do amor cortês. Todas ao menos indicavam a existência de alguma parte incriada da alma que partilha uma profunda e total união com o divino", explica Silvia Schwartz, psicanalista e doutora em Ciências da Religião.

A mística de Marguerite Porete ensina o caminho ao amor divino com forma e conteúdo subversivos aos padrões medievais. A beguina escreveu sua grande obra Le Miroir des âmes simples anéanties et qui seulement demeurent en vouloir et désir d'amour, na língua vernácula, francês antigo — em português é conhecida como O Espelho das Almas Simples e Aniquiladas e que Permanecem Somente na Vontade e no Desejo do Amor. No entanto, que a obra logo foi escrita e escondida em outros idiomas. Seu tema central, aponta Ceci Baptisa, era o aniquilamento da alma: "a alma aniquilada, amorosa de Deus lançando-se ao nada, recebe tudo, mais saber do que o contido nas Escrituras, mais compreensão do que a que está ao alcance da razão, ganha a liberdade perfeita e torna-se capaz de experimentar a 'paz de caridade'. Sendo transformada por Amor em Amor, a alma que acolheu a maior humilhação adquiriu alta nobreza. Ela não procura mais a Deus porque se encontra transformada em Deus".

A transgressão aos padrões fez de Marguerite Porete uma perseguida da Igreja da França. Aos 60 anos, em 1310, já advertida pelos bispos que era vista como herege. Faustino Teixeira, doutor em Teologia e professor de Ciências da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora, relata enfaticamente sobre Marguerite e sua obra: "seu livro foi objeto de grande celeuma, de grande polêmica, ela morreu por causa deste livro e das perseguições da inquisição, em função do livro levantar uma polêmica viva com respeito à voz feminina, à expressão feminina em uma sociedade marcada pela voz masculina".


Capa do livro Le Miroir des âmes simples anéanties et qui seulement demeurent en vouloir et désir d'amour, publicado pela editora francesa Albin Michel, em 2011.

"Uma mulher, cristã, leiga, atuante, extremamente mística, condenada por um dos inquisidores mais violentos que se conhece, forçada a rever seu pensamento. Mas ela manteve o seu pensamento, e foi para a fogueira carregando a sua convicção. Marguerite não sabia negar a expressão de sua voz", descreve Faustino Teixeira. A mística foi queimada com seu livro em mãos. A história, no entanto, esteve sempre viva, posta a ser "desnudada", tal qual a alma, para encontrar-se na sua eternidade. Se a inquisição tentou aniquilar Marguerite Porete, chegou tarde, pois sua alma e sua história, já aniquilidas, encontraram antes a Deus.

 

Ao cuidado de Deus

“Quando um homem possui uma terra
e a necessidade faz com que dessa terra tire o seu sustento,
ele ara, cultiva e escava essa terra,
da forma que pensa ser a mais eficaz
para que ela renda mais ao produzir o trigo que nela devemos semear.
Assim deve viver quem trabalhou a terra
e nela plantou o trigo.
Essas duas coisas são imperativas que ele faça
antes que possa ter os frutos de sua terra para viver.
Mas quando o sábio trabalhador cultivou e cavou sua terra
e dentro dela colocou o trigo,
todo o seu poder não pode mais ajudar.
É preciso que ele deixe o resto
ao CUIDADO DE DEUS,
se quer ter um bom resultado em seu trabalho.
Por si ele não pode fazer mais nada”

Fonte: Marguerite Porete. O espelho das almas simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo do Amor. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 205 (cap. 124).

Marguerite Porete na oração inter-religiosa desta semana, confira.

 

A série Vozes que Desafiam. Mulheres na Igreja produzida pela equipe de Teologia Pública do Instituto Humanitas Unisinos tem como objetivo recuperar e visibilizar figuras de mulheres e contribuir no reconhecimento do lugar delas na vida da Igreja. Abaixo compartilhamos vídeos, artigos e entrevistas que contam sobre a vida e a mística de Marguerite Porete.

Vídeo de Ceci Maria Baptista sobre a história de Marguerite Porete



Confira o vídeo sobre Marguerite Porete, do blog Paz e Bem, como parte do curso de Teologia e Espiritualidade, com Faustino Teixeira e Mauro Lopes

 

Marguerite Porete e a “teologia” do feminino divino. Entrevista especial com Silvia Schwartz

A “teologia” do feminino divino de Porete provém da utilização do “topos da fraqueza feminina: Deus escolhe as coisas fracas – as mulheres – para confundir os fortes – os homens”, explica Sílvia Schwartz

Marguerite Porete foi primeiro caso de condenação por heresia na França, em meio à cultura e à espiritualidade europeia cristã do final da Idade Média. Sua morte foi desencadeada pelo seu livro, Le mirouer de âmes simples et anientis et que seulement demeurent em vouloir et desir d’amour, uma das primeiras obras escritas em francês. “Em seu diálogo duplo com a literatura sagrada e profana, Porete mistura a exegese dos textos sagrados com uma reapropriação original dos principais elementos da tradição cortês, utilizando o canto e o romance cortês para ilustrar sua definição do Amor, cuja supremacia no Mirouer é incontestável”, afirma.

Nesta entrevista, Sílvia Schwartz analisa a vida, a obra e a espiritualidade de Marguerite Porete, “que representa um chamado à liberdade”, ao criticar as “formas medievais de piedade monástica – a vida de orações, jejuns, devoções, sacramentos, práticas ascéticas e martírios – que Porete chama de ‘vida infeliz’”. “O verdadeiro progresso espiritual – continua – está centrado na total aniquilação ontológica, quando a alma cai na certeza de nada saber e nada querer, de viver sem um porquê”.

Sílvia Schwartz é mestre, doutora e pós-doutora em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF

Leia na íntegra.

 

Marguerite Porete: a alma entre aniquilamento e nobreza. Entrevista especial com Ceci Baptista Mariani

A nobreza, para Marguerite Porete, é a condição que nos vem do aniquilamento. Mais vale à alma, ela diz, o nada querer em Deus que o bem querer por Deus. A alma aniquilada é nobre porque, pelo aniquilamento, acolhe a obra de Deus nela.

Para Ceci Baptista Mariani, Marguerite Porete, mística francesa do século XII, manifesta bem a “imediatez mediada” que caracteriza a mística cristã. “A mulher no mundo medieval, não tendo voz entre os doutores, vai encontrar o caminho da arte para expressão da experiência de Deus. Poesia, teatro, música serão maneiras encontradas para narrar o caminho de encontro com o Amado”, afirma Ceci à IHU On-Line. Em Marguerite, o aniquilamento é seu grande tema. É “fruto de um processo que implica várias mortes”: para o pecado, para a natureza, para o espírito. “A alma aniquilada, amorosa de Deus. lançando-se ao nada, recebe tudo, mais saber do que o contido nas Escrituras, mais compreensão do que a que está ao alcance da razão, ganha a liberdade perfeita e torna-se capaz de experimentar a ‘paz de caridade’”, explica a teóloga. E “a nobreza, para Marguerite Porete, é também a condição que nos vem do aniquilamento. Mais vale à alma, ela diz, o nada querer em Deus que o bem querer por Deus. A alma aniquilada é nobre porque, pelo aniquilamento, acolhe a obra de Deus nela”.

Ceci Baptista Mariani, mestre em Teologia Dogmática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção e doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.

Leia na íntegra.

 

“A experiência do espírito vai muito além das distinções espaço-temporais e de gênero”. Entrevista especial com Marco Vannini

Para se entender a mística, é preciso partir da antropologia clássica e cristã: “Não bipartida em corpo e alma, mas tripartida: corpo, alma, espírito”. Só assim podemos entendê-la como “experiência, experiência do espírito”, como “uma contínua e constante realidade de vida espiritual, que não consiste em ‘eventos’ particulares”.

Por isso, defende Marco Vannini, um dos maiores estudiosos italianos de mística especulativa, embora haja “modos de se relacionar com o divino psicologicamente diferentes por parte de uma mulher com relação aos de um homem”, no que concerne ao espírito, não há diferença de sexo, “como também não há distinções de caráter cultural, social, ambiental: ele é universal”. E brinca: “Falar de mística feminina tem tanto sentido como falar de matemática feminina”.

Contudo, explica, “devemos às mulheres uma contribuição essencial à história da espiritualidade, da mística, muito mais significativo para aqueles séculos passados em que as mulheres, normalmente, não tinham acesso à instrução”. Nesta entrevista, Vannini comenta as experiências místicas de Angela de Foligno e de Marguerite Porete, cujas palavras, afirma, “falam não como palavras de mulheres, mas como palavras magistrais de espiritualidade”.

Marco Vannini é um dos maiores estudiosos italianos de mística especulativa

Leia na íntegra.

 

Beguinas, mulheres que conduziam o ministério feminino. Artigo de Phyllis Zagano

Estas mulheres não faziam votos, ainda que, em muitos aspectos, suas vidas ecoavaram o diaconato feminino que diminuiu durante a Idade Média e pressagiaram a vida religiosa apostólica ativa, como ela se desenvolveu no século XVII.

O ímpeto para realizar os trabalhos diaconais então abandonados da Igreja sobreviveu nos ministérios destas mulheres contemplativas ativas, que frequentemente provocaram a ira dos bispos. A representação do ministério apostólico feminino feita pela autora ao longo dos séculos e países demonstra as formas como as mulheres encontraram para servir.

Phyllis Zagano tem doutorado em Teologia na State University of New York at Stony Brook, é pesquisadora sênior e professora de Religião na Universidade Hofstra, em Hempstead, NY, EUA. Em agosto de 2016, papa Francisco nomeou-a para a Comissão Papal sobre Mulheres no Diaconato.

Leia na íntegra.

 

Resistências femininas na Inquisição. Entrevista com Jaqueline Vassallo

Recuperar a história das mulheres que eram consideradas adúlteras, criminosas e feiticeiras no período colonial, é um exercício saudável para compreender como eram os processos de negociação e as formas de resistência desenvolvidas pelas mulheres. É útil saber como a Inquisição agiu com aquelas que eram acusadas do que se supunha serem crimes e de que maneira, em alguns casos, até mesmo as mulatas mais marginalizadas desenvolviam vias de fuga, desde que se dedicassem à magia e às curas para se relacionarem com as elites políticas como forma de ascensão social.

Nesta entrevista, Jaqueline Vassallo – pesquisadora independente do Conicet no Centro de Pesquisas e Estudos sobre Cultura e Sociedade da Universidade Nacional de Córdoba – ressalta que os exemplos de resistência não eram isolados e mostra que aquelas outras mulheres, as silenciadas (mas não mudas) e invisibilizadas (mas de carne e osso), também construíram a história.

Leia na íntegra.

 

O feminino e o Mistério. A contribuição das mulheres para a Mística. Revista IHU On-Line Nº 385

Mística, segundo o professor do programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, Faustino Teixeira, “é uma experiência que integra, em reciprocidade fundamental, as dimensões de anima (feminilidade) e animus (masculinidade) que habitam cada pessoa humana”. “Há uma ‘lógica do coração’ que transborda a ‘lógica da razão’”. A contribuição de mulheres como Hildegard de Bingen, Marguerite Porete, Teresa de Ávila, Maria Madalena, Rabi’a al-’Adawiyya, entre outras, para uma compreensão mais profunda do que é a Mística é o tema de capa desta edição da IHU On-Line.

Leia na íntegra.

 

Confira os outros artigos da série Vozes que Desafiam.

 

Veja também