Vozes que desafiam. Maria Madalena, a primeira testemunha da Ressurreição

"Maria Madalena se aproximando do sepulcro", de Giovanni Girolamo Savoldo, óleo sobre tela, 1535-1540. Fonte: L'arte di guardare l'Arte

Por: Cleusa Maria Andreatta, Susana Rocca, Wagner Fernandes de Azevedo | 15 Julho 2019

 

O dia de Maria Madalena, 22 de julho, foi elevado ao grau de festa pelo papa Francisco, em 2016. A memória de Madalena deve ser celebrada como a primeira testemunha da Ressurreição, a apóstola dos apóstolos.

Os mitos populares costumam relevar a posição de Maria Madalena. De acordo com o cardeal Gianfranco Ravasi, a apóstola foi "carnalmente abaixada a prostituta ou amante, espiritualmente elevada à Sabedoria transfigurada". Para a teóloga luterana Ivoni Richter Reimer, as transformações da imagem de Maria Madalena foram "usadas para justificar a criação de conventos para mulheres, para afirmação do celibato ou da abstinência sexual. Tirando-se o poder da Maria Madalena apóstola e companheira de Jesus, tirava-se também a força dos movimentos eclesiais madaleanos. A 'popularização' dessa “outra” Maria Madalena está intrinsecamente ligada com uma política eclesiástica patriarcal de desempoderamento das mulheres".

Na carta do teólogo Gonzáles Faus dirigida à Madalena, há passos de desculpas e justificativas. Faus reflete que esta atribuição "não era para te denegrir como uma mulher, mas para lembrar-nos que o amor de Deus é capaz de tirar do maior pecador uma santidade superior a de todos os bons, sempre tão ameaçados por essa tentação do farisaísmo".

 


Madalena e o Ressuscitado, de Marko I. Rupnik. Detalhe do mosaico da igreja Os Santos Primo e Feliciano, em Vrhpolje, Eslovênia.

Vinda de Magdala, um pequena cidade do Mar da Galileia, ela aparece no Evangelho de Lucas (8, 1-3), em uma lista de discípulos, descrita como aquela que possuía sete demônios. Ravasi explica que "O 'demônio', na linguagem do Evangelho, não é somente a raiz de um mal moral, mas também físico, que pode permear uma pessoa. O número de "sete", então, é o número simbólico da plenitude. Não sabemos muito, portanto, sobre o grave mal moral, psíquico ou físico que atingiu Maria e que Jesus eliminara".

No entanto, o Lucas não descreve quais eram os demônios, tampouco a forma do exorcismo, e saber quem era de fato Madalena exige uma pesquisa bíblica mais aprofundada. "Por essa interpretação problemática da bíblia sobre quem foi Madalena, ela passa para a ficção como um verdadeiro baú de histórias. É um mar de histórias em que os escritores mergulham e cada um constrói a sua Madalena", explica a professora Salma Ferraz.

Para Ferraz, as pesquisas mais recentes sobre Madalena apresentam uma outra mulher "não com o rosto de uma prostituta, mas de uma mulher livre, avante de seu tempo, para quem Jesus apareceu. Ela foi a anunciadora, a que primeiro viu que o túmulo estava vazio e para quem Jesus apareceu ressuscitado pela primeira vez.

Por isso, Antonieta Pottente destaca que "dentro do imaginário cristão, Maria Madalena é a que mais resgata a ousadia feminina". E por isso, o movimento feito por Francisco de elevar Madalena ao status de apóstola é uma leitura sensível e coerente do Evangelho, reconhecendo-a como "protótipo, ao lado de Maria, mãe de Jesus, das origens de movimentos de libertação. Seus atributos e suas funções de discípula, amada, diácona, testemunha dos feitos de Jesus e da sua morte e ressurreição".

Esse é o terceiro artigo da série promovida pelo programa de Teologia Pública do Instituto Humanitas Unisinos - IHU: Mulheres na Igreja. Vozes que nos desafiam.

Abaixo, compartilhamos artigos, entrevistas e a edição especial publicada em homenagem à Madalena.

 

Eis o que eu tenho pra lhe oferecer
A minha vida e a luz do meu ser!
Vê se existe alegria maior
Madalena ver-te nesse amanhecer!

Jorge Trevisol e Karla Fioravante 

 

Miriam de Magdala. Pregadora de uma nova fé e em pé de igualdade com os outros apóstolos. Entrevista especial com Katherine L. Jansen

Talvez uma das únicas testemunhas da ressurreição de Jesus Cristo, Maria Madalena “foi a primeira a ver o Cristo ressuscitado e a primeira a relatar esse evento para os/as demais”, afirma a teóloga Katherine L. Jansen, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Especula-se que ela foi uma “das primeiras e uma dedicada discípula de Cristo, que apoiou financeiramente o seu ministério”.

A pesquisadora adverte que “não se deve cometer o erro de pensar que Maria Madalena fosse quer símbolo do pecado, quer símbolo de evangelização. Ela era pecadora antes de sua conversão, mas depois da Ascensão de Cristo, foi pregadora da nova fé”. Antes de Cristo nada se sabe acerca da vida de Maria de Madalena, “exceto que ela parece ter vindo de uma família relativamente abastada e que ela era solteira. Seu status econômico é indicado pelo fato de o Novo Testamento nos dizer que ela e as outras mulheres que seguiam Cristo lhe serviam com seus próprios recursos.”

Katherine L. Jansen leciona no Departamento de História da Universidade Católica da América, em Washington, nos Estados Unidos. É Ph.D. pela Universidade de Princeton, especialista em Itália Medieval, gênero e mulheres da era medieval, religião e história cultural.

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‘Diga-nos, Maria Madalena, o que viste no caminho?’. Artigo de Gianfranco Ravasi

“Duas vezes a tradição popular encobriu as características pessoais a Maria Madalena, confundindo-a primeiro com uma prostituta - daqui, todas as representações "carnais" da santa na história da arte - e, em seguida, com a mais pura Maria de Betânia. Enquanto isso, porém, Maria Madalena chegou, de fato, em Jerusalém, na sequela de Jesus, para viver com ele e os discípulos, suas últimas horas trágicas. Todos os evangelistas, na verdade, concordam em registrar sua presença no momento da crucificação e do sepultamento de Cristo”, analisa o cardeal Ravasi.

Gianfranco Ravasi é cardeal, arcebispo católico e biblista italiano, teólogo e estudioso do hebraico. Desde 2007, é presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, da Pontifícia Comissão de Arqueologia Sacra e do Conselho de Coordenação das Academias Pontifícias, todos departamentos da cúria romana.

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O poder sob a égide do sagrado: manutenção do domínio religioso e normatização pela crença. Entrevista especial com Ivoni Richter Reimer

A produção de sentidos sobre a figura de Maria Madalena é fértil, dando origem a múltiplas interpretações sobre o papel que essa mulher desempenhou na trajetória da vida de Jesus Cristo e, consequentemente, na construção dos referenciais do cristianismo. De acordo com Ivoni Richter Reimer, a variedade de relatos tem relação com a existência de “diferentes vertentes cristãs nos primeiros séculos, que conclamam a repensarmos a concepção de cristianismo de forma plural e mais fluida”. No entanto, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, a teóloga alerta que, apesar de algumas nuances, a figura de Madalena que predomina originalmente nas escrituras sagradas é a de uma mulher que “é protótipo, ao lado de Maria, mãe de Jesus, de origens de movimentos de libertação. Seus atributos e suas funções de discípula, amada, diácona, testemunha dos feitos de Jesus e da sua morte e ressurreição, apóstola, líder eclesial etc., garantiram-lhe o título de isapóstolos, ‘igual a apóstolo’ na tradição da Igreja Oriental e apostola apostolorum “apóstola dos apóstolos”, na tradição da Igreja Ocidental”.

Todavia, essa imagem foi gradativamente recebendo conotações diferentes, com um intuito mais político do que pastoral, fundamentando-se nos processos de organização patriarcal e hierárquica da Igreja. “Num incisivo e simultâneo processo de ressignificação de Maria Madalena e de combate aos ‘hereges’, começou-se a transformar a apóstola, amada/amante, líder e mestra em pecadora, prostituta, penitente. No imaginário religioso, a Eva pecadora teve sua contraparte na Madalena arrependida”, afirma Ivoni Reimer. Segundo a pesquisadora, “esta foi a Maria Madalena usada para justificar a criação de conventos para mulheres, para afirmação do celibato ou da abstinência sexual. Tirando-se o poder da Maria Madalena apóstola e companheira de Jesus, tirava-se também a força dos movimentos eclesiais madaleanos. A ‘popularização’ dessa ‘outra’ Maria Madalena está intrinsecamente ligada com uma política eclesiástica patriarcal de desempoderamento das mulheres”.

Ivoni Richter Reimer, teóloga luterana, é doutora em Teologia/Filosofia pela Universidade de Kassel, Alemanha, com pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas, Interdisciplinar, da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.

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A testemunha ocular da Divina Misericórdia. Entrevista especial com Johan Konings

Para compreender o conceito de Misericórdia e relacionar com Madalena na história do cristianismo, é preciso focar nos relatos evangélicos acerca do instante em que Jesus se revela ressurreto. O cenário é narrado nos quatro Evangelhos, mas “é em João que temos a descrição mais ampla da aparição do Ressuscitado à Madalena (Jo 20,11-18)”, destaca Johan Konings. E o professor enfatiza: “a misericórdia não é apenas a condescendência para com os pecadores, mas a chésed, o amor-fidelidade de Deus que se comprova na Cruz, ‘enaltecimento’ de Cristo revelado como glorioso na ressurreição. E é disso que Maria Madalena é testemunha privilegiada”, explica.

Como entender o fato de ser ela, uma mulher entre os homens, a grande testemunha? Na entrevista, a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Konings reconhece essa como uma questão menor. Entretanto, salienta que em toda a caminhada de Jesus fica claro que viu “na igualdade de homem e mulher o ideal do ser humano segundo o projeto de Deus”. Mas, para o professor, a igualdade de gêneros não é a novidade em Jesus. “Faz parte da lei de Deus desde sempre. João, em sua carta, diz que o mandamento é antigo, porém novo em Cristo e em nós (1Jo 2,7-8), e então continua falando sobre o amor fraterno. Aí está a novidade cristã na relação homem-mulher, mais do que na igualdade de direito”.

Johan Konings é padre jesuíta nascido na Bélgica, professor titular da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - Faje, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Filósofo e filólogo, concluiu o doutorado em Teologia na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica.

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Os limites do reconhecimento masculino sobre a mulher. Entrevista especial com Antonietta Potente

Antonietta Potente reconhece que hoje há movimentos sensíveis a questões femininas. Porém, reitera que isso ainda se dá numa posição varonil, que desconsidera os espaços e caminhos abertos pelas próprias mulheres ao longo da história.

Não há quem negue que os movimentos feministas abriram espaços no espectro social para as mulheres, colocando-as no mesmo grau que os homens. Entretanto, há mais nuances que parecem ainda não terem sido compreendidas. Isso fica claro quando a teóloga Antonietta Potente analisa a figura da mulher na Igreja de hoje, inspirada pela imagem de Maria Madalena. Para ela, a sensibilidade do papa Francisco para com o outro abre as portas da Igreja para refletir sobre muitos temas, entre eles o feminino no catolicismo.

Antonietta ainda enfatiza: “Tenho a impressão de que [o papa, os homens] me trata sempre, e a minhas companheiras mulheres, como pobrezinhas, a não ser que reflitamos os paradigmas que eles têm em seu imaginário”. Ela chama atenção como esse detalhe ruidoso na relação entre o masculino e o feminino sempre existiu e se perpetua desde o anúncio feito por Madalena, quando os homens não compreendem a mensagem.

Antonietta Potente é doutora em teologia moral e religiosa da Congregação das Irmãs Dominicanas de São Tomás de Aquino. Lecionou em diferentes centros de estudos e universidades teológicas da Itália até 1994, quando foi viver na Bolívia. Lá, seguiu sua atividade de docência e escritora. Buscando uma integração maior, morou com uma família indígena nos arredores de Cochabamba. De volta à Itália, desde 2012, colabora com a Faculdade de Filosofia da Universidade Estatal de Verona.

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A história do mito e a falsificação. Entrevista especial com Lilia Sebastiani

Para a teóloga Lilia Sebastiani, não se pode falar apenas “na” história de Maria Madalena porque são várias as histórias que se criam em torno da personagem bíblica, embora muitas delas sejam interpretações – por que não dizer até misóginas – de quem não vai de fato na exegese do que está na escritura. “A história do mito da Madalena na Igreja ocidental é a história de uma grande falsificação, mantida por séculos”, dispara, ao se referir à associação de Madalena tanto com a pecadora quanto com a irmã de Lázaro. “A história da Madalena pré e pós-evangélica, popularizada pela Legenda Áurea de Jacopo da Varazze, completamente fantasiosa, cheia de elementos aventureiros e patéticos, obteve grande sucesso”.

Lilia comemora o resgate que vem tendo a essência da personagem. Entretanto, lamenta o fato de isso ocorrer ainda em poucos círculos, como apenas entre teólogos. “Hoje, o mal-entendido foi superado, na teoria, mas persiste ainda fortemente na mentalidade. Quem não tem conhecimento dos Evangelhos, e ouve falar de Maria Madalena, ainda pensa na mulher de vida fácil, que de alguma maneira se arrependeu, e não na discípula predileta, e não na apóstola da Ressurreição”, explica.

Lilia Sebastiani é formada em Literatura Moderna pela Universidade de Roma "La Sapienza", com doutorado em Teologia Moral pela Academia Alfonsiana, Instituto Superior de Teologia Moral na Universidade Lateranense.

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Maria Madalena, “a teóloga da Páscoa”. Artigo de Xabier Pikaza

“Com Jesus que sobe ao Pai, unidos a Maria Madalena, no centro da Igreja, devemos iniciar um caminho de ascensão salvadora, que nos conduz de verdade até o mistério de Deus. Maria é a primeira daqueles que fizeram esta experiência pascal”, escreve Xabier Pikaza, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 25-04-2019. A tradução é do Cepat.

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Maria de Magdala. Apóstola dos Apóstolos — Revista IHU On-Line Nº 489

 

A iniciativa do papa Francisco, de elevar a memória litúrgica de Maria Madalena, no dia 22 de julho, à festa, como um dos Apóstolos, é profética. Segundo Lilia Sebastiani, teóloga italiana, a decisão “inscreve-se na teologia dos gestos, mais do que das inovações doutrinais, e será lembrada como dos aspectos mais significativos de seu pontificado". Segundo ela, isto "não somente é importante para a história do culto de uma santa, mas para o devir do anúncio Pascal”. Miriam de Magdala é o tema de capa desta edição da IHU On-Line.

Confira a revista na íntegra.

 

Vozes que nos desafiam hoje

Compartilhamos abaixo reflexões e experiência de três mulheres que a partir da leitura histórica de Maria Madalena desafiam para se compreender o papel das mulheres na Igreja:


A ofensiva das religiosas. Entrevista com Sally Hodgdon e Veronica Adeshoa Openibo

"Devemos admitir: a Igreja não é democrática e ninguém pretende que o seja. E, no entanto, nós, como mulheres, podemos fazer a diferença: encontrar coragem para falar, pressionando por uma maior colegialidade, abrindo espaços para deixar entrar a luz”. Quem afirma isso, passando com facilidade do tema da "resiliência" e da liberdade feminina às hierarquias, e ao direito de denunciar todas as formas de abuso dentro da Igreja, são duas madres superiores: Sally Hodgdon, da congregação das Irmãs de São José de Chambéry e a Irmã Veronica Adeshoa Openibo, da Sociedade do Santo Menino Jesus.

A entrevista é de Ilaria De Bonis, publicada por Jesus, junho-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.

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Diaconato feminino não é feminismo, mas vontade de reencontrar a dignidade das origens. Artigo de Lucetta Scaraffia

A iniciativa das mulheres, sobretudo das religiosas, vai desempenhar um papel fundamental: se, como está acontecendo, elas começarem a se rebelar contra um papel subalterno, pedindo o seu lugar, todo o lugar que merecem na vida da Igreja, algo poderá mudar. Talvez até mesmo em breve, para elas e para todas as mulheres.

A opinião é da historiadora italiana Lucetta Scaraffia, membro do Comitê Italiano de Bioética e professora da Universidade de Roma "La Sapienza". O artigo foi publicado no jornal Il Messaggero, 13-05-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

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