Por: Patricia Fachin | 15 Setembro 2016
O movimento político que se convencionou chamar de a “nova direita” no Brasil vem se constituindo desde o início dos anos 2000, em fóruns de discussão na internet, nas antigas comunidades do Orkut e, hoje, nas redes sociais, e, “eventualmente, desses fóruns da internet é que saem novos militantes que participarão ou fundarão novas organizações e que participarão de partidos”, diz Camila Rocha, à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone.
Camila Rocha está desenvolvendo sua pesquisa de doutorado na USP, que tem como mote analisar a direita liberal dos anos 1980, sua militância e de que modo elas atuam na sociedade civil e na política nos dias atuais e a partir disso faz uma comparação entre o modo de atuação nos anos 80 e nos dias de hoje. Neste cenário, ela acaba acompanhando a militância da nova direita que, “um pouco antes de junho de 2013”, passou a ter mais “capacidade de atração”. “Várias das lideranças e militantes da nova direita viram junho com bons olhos” porque essas manifestações foram “uma oportunidade para eles poderem aparecer mais para o grande público, para atrair militâncias”, relata.
De acordo com Camila, a nova direita é constituída de grupos heterogêneos, que se esforçam para não serem identificados com a velha direita brasileira, que tem origens na Ditadura Militar, no PFL e no PP. “O grosso das pessoas que se identificam como nova direita, ou que pelo menos fariam parte dessa nova direita, tem como novidade negar esse aspecto; eles não querem se identificar, de jeito nenhum, com os governos militares e, mais do que isso, querem se diferenciar, também, alegando que esses governos, para eles, atuavam em moldes estatistas e desenvolvimentistas, o que eles negam em absoluto. Boa parte dos militantes da nova direita diriam que, na verdade, o que eles querem é um modelo de livre mercado e privatizações, que é o oposto do que existia na ditadura militar. Esse corte é importante”, explica.
Na entrevista a seguir, Camila apresenta alguns dos elementos que diferenciam a nova direita da velha direita e da esquerda, e um deles é justamente a não adesão à intervenção estatal nas diferentes esferas da vida pública e privada. No campo da economia, diz, “todos eles, basicamente, se autodenominam liberais” e “não querem que o Estado faça leis que regulem esses assuntos da vida íntima das pessoas. (...) Eles acreditam que todos os problemas da sociedade civil têm que ser resolvidos no interior da própria sociedade civil e que o Estado não teria que regular nada, nem teria que fazer lei nenhuma para reconhecer violações de direitos humanos ou mesmo uma lei que regulasse o aborto ou a descriminalização do uso de drogas”.
A pesquisadora destaca também que as ideias da nova direita têm chamado a atenção dos jovens, especialmente dos universitários, mas não está mais vinculada à classe média alta ou ao empresariado. Na avaliação dela, esse fenômeno pode ser explicado a partir do “modo operandi dos governos do PT”, que “prescinde de politização” e “de mobilização política”, já que programas sociais “simplesmente são feitos a despeito das pessoas que participam deles terem algum tipo de conselho para discutir o resultado dessas políticas, de como elas impactam suas vidas”.
Apesar das tensões políticas que caracterizam a atual conjuntura, Camila Rocha frisa “que quando esses movimentos passam a se tornar públicos, isso facilita, inclusive, para o público refletir sobre o que é, afinal, a nova direita e analisar se se identifica com ela ou com a esquerda”. E acrescenta: “Isso também torna mais claras as posições dos atores no jogo político. É muito difícil quando existe um jogo político muito nebuloso, principalmente no Brasil, em que temos partidos de direita fazendo alianças com partidos de esquerda e, às vezes, partidos que são formados com objetivos clientelistas e que não têm nenhum tipo de compromisso ideológico”.
Camila Rocha é graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP e mestra em Ciência Política pela mesma universidade.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que consiste sua pesquisa sobre a militância da direita? Quem são os militantes de direita hoje no Brasil? Há um perfil hegemônico ou há diferentes vertentes de direita hoje no país?
Camila Rocha – Minha pesquisa de doutorado é mais especificamente sobre a direita liberal dos anos 1980, que se mantém até hoje, mas atualmente existem vários grupos que formam o que se chama de nova direita, os quais têm relações entre si, mas também têm tensões; eles estão longe de ser um movimento homogêneo.
Simplificando um pouco, é possível dizer que existem desde grupos – geralmente menores – que chamamos de ultraliberais, que se autodenominam libertários ou libertarianos, até grupos que são bastante conservadores, mais na linha das pessoas que militam, por exemplo, no Partido Social Cristão – PSC, que é o partido do Jair Bolsonaro e do Pastor Everaldo. O mais interessante é que entre esses dois extremos – libertários e os militantes do PSC – todos obviamente são anti-PT e contra a esquerda de forma geral, mas também compartilham, em maior grau para os ultraliberais e libertários e em menor grau no partido do Bolsonaro, o mesmo “ar” no que diz respeito a posições sobre livre mercado e menos Estado. Ou seja, defendem privatizações de empresas públicas, privatização de serviços como educação e saúde e o pagamento de mensalidades em universidades públicas.
Muitos desses militantes que se autodenominam libertários, como são partidários, geralmente se organizam em vários partidos, mas se concentram em um partido menor, que é o Partido Social Liberal – PSL, que agora tem uma tendência chamada Livres, e também no Partido Novo, que foi recém-criado por um executivo do Banco Itaú. Esses militantes, normalmente, são favoráveis à descriminalização do aborto, e vários deles foram à marcha da maconha, pois são a favor da liberação das drogas, logo, eles têm posições mais progressistas no que tange a costumes.
IHU On-Line - Então, na pauta sobre moralidade, a esquerda hoje converge com esses grupos de direita?
Camila Rocha - Sim. Por exemplo, às vezes a militância mais conservadora é favorável ou simplesmente não é contrária a pautas como a liberação do casamento homossexual ou a possibilidade de os homossexuais adotarem crianças. Então, se pensarmos na “nova direita”, existe, sim, uma onda geracional - estou falando isso com base em entrevistas que fiz com militantes e com lideranças desse campo que são pessoas que têm entre 16 e, no máximo, 40 anos e que já têm uma visão diferente em várias pautas no campo da moral. Isso acaba fazendo, às vezes, com que eles sejam menos conservadores a despeito de serem de direita.
Outro ponto interessante é que nem todos esses militantes se afirmam de direita; isso é algo controverso. Alguns, sim, falam que são de direita ou que são conservadores ou conservadores liberais, mas outros acreditam que essa divisão entre direita e esquerda está superada, que isso não faria mais sentido e que, na verdade, existem pessoas que são mais liberais e mais estatistas, então, eles não gostam de se autodefinir dentro desse espectro de direita e esquerda.
IHU On-Line - Quais são as distinções que percebe entre a nova e a velha direita?
Camila Rocha – Antes de responder a sua pergunta, gostaria de ressaltar que estou sempre falando de grupos que são razoavelmente institucionalizados, ou seja, eles fazem parte de organizações formais da sociedade civil ou partidárias, ou têm pelo menos uma expressão partidária. Não estou falando de grupos que sejam, eventualmente, fascistas de fato ou nazifascistas ou que se organizam em determinadas manifestações e passeatas de forma menos orgânica e depois se dispersam.
Então, para responder à questão, nos anos 1980, o partido que melhor expressava a direita, ideologicamente, a despeito de ter uma face clientelista, era o Partido da Frente Liberal - PFL, hoje DEM, e, com menor ênfase, o partido do Maluf, o PP. Isso foi se modificando com o tempo, mas as diferenças dos anos 1980 para cá – agora estou falando mais da direita liberal – é que nos anos 1980 e 1990 esse era um campo majoritariamente ocupado por segmentos de elites empresariais, acadêmicas e tecnocratas, que eventualmente faziam parte dos governos em vários níveis. Hoje, ao contrário, principalmente por conta da internet e das redes sociais, esse campo acabou se democratizando e por isso é possível encontrar muita gente de classe média e pessoas com grau universitário fazendo parte da militância tanto da direita liberal quanto da direita mais conservadora.
Com a internet surgiu a possibilidade de as pessoas trocarem informações, passarem a se reconhecer entre si, formarem grupos de discussão etc. Enfim, esse é um fenômeno que deve ser considerado para pensarmos, inclusive, porque nós os chamamos de “nova direita”. A interação dessas pessoas nas redes sociais, a criação de fóruns e a possibilidade de qualquer pessoa fazer um site, se tornar um youtuber e ter um alcance razoável de público, têm sido um fenômeno importante. E, eventualmente, desses fóruns da internet é que saem novos militantes que participarão ou fundarão novas organizações e que participarão de partidos. Por exemplo, quando o Bolsonaro mudou de partido e foi para o PSC, segundo uma entrevista que fiz com uma liderança da juventude do partido, muitos jovens passaram a se filiar ao partido e, provavelmente, esses jovens fizeram uma associação com o nome do político. Esses jovens tinham uma socialização, sobretudo, no on-line e não tinham aquele tipo antigo de socialização política, seja partidária ou em movimento social. Ao contrário, eram pessoas que se conheciam pela internet, que tinham algumas referências em comum na rede e que decidiram se filiar ao partido. Esses são alguns dos aspectos que separariam, por exemplo, o que seria a nova da antiga direita, pois esses recursos não existiam antes.
IHU On-Line – Então, você associa o crescimento da militância de direita ao uso da internet? Mais recentemente, o momento político do país também tem favorecido esse movimento? A que outras razões atribui esse fenômeno?
Camila Rocha – Com certeza. Mas quando o ex-presidente Lula foi eleito, já era possível verificar pequenos grupos de direita – bem pequenos mesmo – se formando na internet, antes mesmo de o Facebook entrar no Brasil. À época existia o Orkut, que foi criado em 2004 e já era muito usado no país. Hoje ainda é possível fazer pesquisas nas comunidades que existiam no Orkut, porque o Google fez o backup das comunidades, e é possível ver que desde aquela época existiam comunidades em que as pessoas falavam que o Brasil precisava de uma nova direita.
Naquela época a conjuntura política estava longe de parecer o que vivemos hoje, mas as sementes da nova direita já estavam ali. Esses grupos foram crescendo, ganhando organicidade, foram sendo fundadas novas organizações, essas pessoas começaram a se conhecer, inclusive fora do ambiente da internet, e esse processo começou a se desenrolar mais um pouco antes de junho de 2013, quando esses grupos foram ganhando maior capacidade de atração.
Para dar um exemplo mais concreto, vou citar o caso do Rodrigo Constantino. Em 2005 e 2006, ele participava dessas comunidades do Orkut, discutia ideias liberais, tinha uma inserção nesse campo, mas era recém-formado em Economia pela PUC, trabalhava no mercado financeiro e esse espaço de discussão era uma espécie de hobby. Com o passar do tempo, ele foi conhecendo as pessoas, foi ficando mais conhecido naquele meio específico e em 2013 ele decidiu fazer da sua militância algo mais profissional, quando se tornou colunista em vários meios de comunicação. Ele já escrevia alguns livros e uma das suas obras mais recentes, Esquerda Caviar, vendeu mais de 50 mil cópias – isso é bastante se pensarmos no mercado editorial brasileiro. Portanto, a partir de 2013 teve um boom desses grupos e movimentos, que antes eram menores, mais focalizados, e passaram a ganhar um alcance maior.
Depois também foram surgindo outros livros best-seller, como o Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, e esse tipo de coisa. A conjuntura política permitiu que esses grupos passassem, a partir de um discurso antigoverno, anti-PT e contra a esquerda, a aglutinar mais pessoas e isso possibilitou que eles tivessem um público maior para exporem suas ideias sobre política, economia e sociedade.
Manifestações de Junho de 2013 (Foto: Youtube)
IHU On-Line - A nova direita quer se diferenciar de uma imagem de direita já existente no país, essa que vem do período da Ditadura Militar? Em que aspectos?
Camila Rocha – Com certeza. Claro que tem um núcleo de militância que defende ideias da Ditadura e algumas pautas mais relacionadas à soberania e à defesa do patrimônio nacional, que é mais identificada com a atuação dos governos militares. Mas o grosso das pessoas que se identificam como nova direita, ou que pelo menos fariam parte dessa nova direita, tem como novidade negar esse aspecto; eles não querem se identificar, de jeito nenhum, com os governos militares e, mais do que isso, querem se diferenciar, também, alegando que esses governos, para eles, atuavam em moldes estatistas e desenvolvimentistas, o que eles negam em absoluto. Boa parte dos militantes da nova direita diriam que, na verdade, o que eles querem é um modelo de livre mercado e privatizações, que é o oposto do que existia na ditadura militar. Esse corte é importante.
O Partido da Frente Liberal – PFL, apesar de ter adotado, pelo menos em parte, uma ideologia liberal no campo da economia, principalmente com Bornhausen, indica que existe no partido uma continuidade óbvia entre esses atores políticos que participaram ou participam do PFL ou do DEM e a ditadura, pois o PFL é um partido que saiu da Arena. Então, os militantes da nova direita querem frisar essa divisão: antiga direita é esse pessoal que estava ligado à Ditadura, que é estatista e desenvolvimentista; os militantes da nova direita, ao contrário, são liberais no campo da economia, não têm nada a ver com a ditadura mesmo no campo dos direitos humanos, nem com todas as atrocidades que foram feitas. Inclusive, essa é uma das razões pela qual vários deles preferem não se dizer de direita, porque como a direita, no Brasil, ainda está muito identificada com esse passado da Ditadura Militar, eles preferem simplesmente não se dizer de direita para não ter a possibilidade dessa identificação. Então, como disse, se autodenominam ou como liberais ou como libertários. São pessoas que estão ligadas ao Partido Novo, ao Partido Social Liberal, organizações tipo Instituto Mises Brasil, apesar de eles terem um perfil heterogêneo.
IHU On-Line – Além da questão moral, quais são as pautas dos diferentes movimentos de direita no âmbito econômico e social?
Camila Rocha – No campo da economia, todos eles, basicamente, se autodenominam liberais. No que tange a pautas morais e mesmo sociais, existem tensões, porque esses grupos que se autodenominam libertários se assemelham muito mais à esquerda em relação a essas pautas, mas existe um porém: esses militantes libertários são a favor de que o Estado não intervenha em questões de foro íntimo, ou seja, com quem uma pessoa vai casar, se fará um aborto ou não, se vai adotar uma criança, independentemente de ser homossexual ou não, isso, segundo eles, não teria que dizer respeito ao Estado.
Outro ponto que é diferente de uma parte significativa da esquerda: eles também não querem que o Estado faça leis que regulem esses assuntos da vida íntima das pessoas, como, por exemplo, toda uma demanda de grupos defensores de direitos humanos, que pede que o Estado faça leis que criminalizem homofobia ou machismo, para que isso seja diferenciado de crimes comuns. Os libertários são contra isso. Eles acreditam que todos os problemas da sociedade civil têm que ser resolvidos no interior da própria sociedade civil e que o Estado não teria que regular nada, nem teria que fazer lei nenhuma para reconhecer violações de direitos humanos ou mesmo uma lei que regulasse o aborto ou a descriminalização do uso de drogas. Se fosse feita uma legalização das drogas, para esses grupos ela seria muito mais por conta do livre mercado do que por atuação do Estado. Isso é diferente, provavelmente, do que vários grupos de esquerda defenderiam e de casos, por exemplo, como o do Uruguai, em que foi feita a legalização da maconha, em que o Estado tem um controle bastante razoável sobre a venda do produto.
No que tange aos militantes conservadores em pautas morais, pode-se dizer que eles têm mais semelhança com a direita antiga. Já nos anos 1980 não era nenhum pouco desprezível a presença das várias igrejas evangélicas e cristãs – neopentecostais – nas discussões políticas, mas hoje essa presença está muito mais forte. Várias dessas igrejas passaram a se organizar em partidos, de forma mais orgânica, e hoje o processo avançou muito e isso também é um ponto que os diferencia. Hoje temos uma articulação, por exemplo, de diferentes segmentos religiosos - não só no Congresso, mas também na sociedade civil - em torno dessas questões, principalmente da questão do aborto. Isso também é diferente do que existia nos anos 1980, porque há uma organização muito maior da sociedade civil e de partidos ligados a essas diferentes denominações cristãs em torno desses assuntos.
Essas pautas acabam extravasando para outras questões que, à época, não eram discutidas, como o uso de células-tronco, defesa dos direitos etc. Interessante que, eventualmente, esses grupos convergem quando alguns setores religiosos afirmam que têm o direito de ter liberdade de expressão para falar nas igrejas contra a homossexualidade, e que quando se aprova um projeto como o da criminalização da homofobia, a liberdade de expressão deles estaria prejudicada. Esse é um argumento liberal. Então, existem pontos de união no discurso entre esses militantes mais conservadores e religiosos com os libertários. A despeito de não concordarem em certas pautas, é possível encontrar vários pontos de convergência.
Também é importante frisar que antigamente a igreja católica tinha uma força maior não só na sociedade civil, mas também na política, que hoje está ficando cada vez mais fraca e sendo ocupada, cada vez mais, por outros segmentos religiosos.
Essas diferenças extravasam para o campo econômico e social. Há pessoas da nova direita que não seriam favoráveis, por exemplo, a projetos que envolvessem maior participação popular ou conselhos ou algo como o orçamento participativo, nem a projetos de democratização da sociedade, de democratização do Estado, de maior participação popular nos assuntos de Estado, porque para a nova direita, simplesmente a população não tem que emitir qualquer tipo de opinião. A direita pensa diferente, inclusive, sobre o próprio conceito do que é democracia, porque nas discussões um pouco mais aprofundadas, em um debate mais teórico e filosófico, existem diferenças marcantes na própria concepção do que seria democracia, o que seria liberdade e autonomia. Nesses aspectos existem diferenças marcantes entre esquerda e essa nova direita.
IHU On-Line - Como quais, por exemplo?
Camila Rocha – No limite, é possível dizer que na medida em que a esquerda valorizaria muito a democracia e os próprios processos de democratização, enquanto a direita, não. Para ela, nós chegamos até aqui, numa situação em que todos têm direito ao voto, mas de quatro em quatro anos a pessoa vota e volta para casa, ou seja, ela não é favorável à extensão desse processo de democratização. Alguns segmentos são até mais reacionários, acreditam ser necessário voltar para trás, porque tem muita participação da sociedade, e outros são mais razoáveis, acreditam que a participação deveria ser mais ordenada. Não é à toa que, mesmo defendendo o Estado mínimo, a maior parte deles é favorável a que o Estado detenha o controle das forças de repressão, como exército e polícia, justamente para manter o controle. São raros os que vão falar em privatização das forças de segurança.
IHU On-Line - Quais são os teóricos que influenciam as ideias da direita hoje?
Camila Rocha – Existem desde teóricos do campo da economia, como Milton Friedman, Friedrich August von Hayek e o próprio Ludwig Von Mises. Há também, mais recentemente, os filósofos que seguem essa linha, entre eles, o Nozick [1], que é um libertariano que faz uma defesa no que tange à filosofia moral e à filosofia normativa e dá os fundamentos morais de por que o Estado deveria ter funções mínimas ou super-reduzidas ou, quase no limite, não existir.
Mas existem outros autores que atuam em contextos específicos. Por exemplo, autores que se voltam mais para a linha publicista, principalmente para os militantes mais conservadores. Olavo de Carvalho é uma referência incontornável. Ele publicou vários livros, principalmente na internet, pois começou a ser bastante ativo na rede antes mesmo deste boom das redes sociais. Com certeza os textos e mesmo os podcasts dele são uma referência, principalmente para militantes mais conservadores.
O próprio Rodrigo Constantino e o Leandro Narloch, que é jornalista, escrevem livros voltados para o grande público e não são acadêmicos, mas, bem ou mal, acabam fazendo uma espécie de simplificação dos argumentos mais acadêmicos, eruditos e refinados, para o grande público. Isso é muito importante porque, em certo sentido, eles traduzem para uma linguagem mais acessível e que dialoga melhor com os dilemas contemporâneos os pressupostos ideológicos e filosóficos desses outros autores que mencionei.
IHU On-Line - Quais são as organizações que representam as correntes de direita no Brasil hoje?
Camila Rocha – No que tange às organizações partidárias, hoje, diria que existem três partidos pequenos em que, geralmente, a nova direita se concentra: Partido Social Liberal – PSL, Partido Novo, que foi recém-fundado, e o Partido Social Cristão – PSC. É importante dizer que houve uma tentativa de fundação de um partido que não deu certo, que foi feita no final dos anos 2000, que seria o Líder, um partido libertário brasileiro e que, a despeito de não ter ido para frente, acabou fazendo com que vários militantes libertários ou libertarianos tenham tido a possibilidade de ter uma socialização política fora da internet.
Isso foi bem importante, porque vários desses jovens que se organizaram em torno da tentativa de fundação desse partido, depois fundaram outras organizações e foram fazer parte de outros partidos. Para citar um exemplo, um desses jovens, Bernardo Santoro, participou ativamente da tentativa de fundação do Partido Libertário, chegou a exercer a função de vice-presidente do que seria o partido, e depois assumiu um cargo como diretor do Instituto Liberal, que é o que chamamos de think tanks [2], que é um instituto que basicamente elabora e dá publicidade a propostas de políticas públicas e também traduz e publica livros de autores liberais. Depois disso ele foi convidado para ajudar a fazer o programa político do Partido Social Cristão – PSC, que é o partido da família do Bolsonaro. Inclusive, atualmente, o Bernardo Santoro está participando ativamente e é – se não me engano – coordenador de campanha de um dos filhos do Bolsonaro à prefeitura do Rio de Janeiro. Isso mostra o tipo de trajetória que os membros da nova direita têm: começaram na internet, nas comunidades de Orkut, foram agrupando pessoas e chegaram a ter uma militância mais orgânica, em organizações e partidos.
Entre as organizações que existem hoje, há uma porosidade entre elas, pois uma mesma pessoa pode fazer parte de várias organizações e até mesmo de partidos. Então, além desses partidos, há militantes de direita no PP, no DEM e até no PSDB. Existe uma concepção de que a atuação partidária se daria de forma mais focada e mais orgânica nesses três partidos – PSL, NOVO e PSC – e se daria de forma mais difusa, como uma espécie de frente, abrangendo partidos que vão do centro até a extrema-direita, inclusive partidos mais consolidados.
No que tange às organizações da sociedade civil, existem alguns institutos que são mais antigos, como o Instituto Liberal, que foi fundado em 1983 no Rio de Janeiro e até o final dos anos 1990 ainda tinha filial em outros estados brasileiros, como São Paulo, Brasília e Rio Grande do Sul, onde era bastante forte. Com o passar do tempo, parte dessas filiais foram fechadas e a informação mais recente que tenho é de que o Instituto do Rio de Janeiro iria abrir mão de ter uma sede física para atuar apenas virtualmente. Hoje o atual presidente do instituto é o Rodrigo Constantino.
Também existem o Instituto de Estudos Empresariais, no Rio Grande do Sul, o Instituto de Formação de Líderes – IFL, que acredito atuar tanto em Minas Gerais quanto em São Paulo, o Fórum da Liberdade, que é um encontro promovido periodicamente pelo Instituto de Estudos Empresariais, e que reúne muitas lideranças, não só liberais, mas também da nova direita, e o próprio Olavo de Carvalho já chegou a frequentar esses espaços.
IHU On-Line – O Movimento Brasil Livre - MBL também tem desempenhado um papel na conquista de militância para a direita?
Camila Rocha – Todas as instituições, mais antigas ou mais novas, como o Instituto Mises ou o Instituto Millenium, que são de meados dos anos 2000, ou a Ordem Livre, que também é mais recente, ou todos os militantes que ficam orbitando nesses institutos, começaram a participar das manifestações de junho de 2013 e aí decidiram fundar o Movimento Brasil Livre, mas de uma forma meio solta, não tão comprometida; o próprio Bernardo Santoro foi um dos fundadores do movimento. Depois, à medida que a crise política foi se aprofundando e a conjuntura política foi ficando cada vez mais favorável para a nova direita, eles conseguiram atrair novos militantes, entre eles, os jovens que viraram porta-vozes e figuras mais conhecidas do Movimento Brasil Livre, como o Kim Kataguiri, por exemplo.
Esses jovens foram sendo atraídos por esses militantes mais experientes, e, à medida que as manifestações e a própria conjuntura foram se intensificando e se desenvolvendo, esses jovens foram conquistando maior destaque no movimento e os militantes mais experientes, como sempre, começaram a se afastar. Justamente como eram mais experientes e estavam engajados em outros projetos, acabaram dando preferência para esses outros projetos e deixando o movimento mais a cargo dos militantes mais jovens. Então, com certeza o MBL está inserido em todo esse universo de organizações e partidos da nova direita.
IHU On-Line - Como se dá a militância deles além das manifestações on-line? Eles desenvolvem um trabalho de base, de formação política, como a esquerda fazia nos anos 80?
Camila Rocha – Existe uma rede off-line e núcleos de formação política, que estão presentes não só nos partidos, mas também nesses próprios Institutos. O Instituto Mises já tem uma pós-graduação em Escola Austríaca, publicam livros, realizam encontros de formação – menos voltados para a política prática e mais voltados para o conhecimento dos autores de filosofia, e os cânones. Agora, em termos de política, para atuar na sociedade civil, vários desses militantes participaram de programas de treinamento no exterior, principalmente nos Estados Unidos, que são oferecidos por think tanks norte-americanos e que têm ligação com as organizações da sociedade civil aqui no Brasil.
Por exemplo, vários militantes fazem cursos no Cato Institute ou Atlas Economic Research Foundation e em programas de formação ligados a um programa dos Irmãos Koch [3], nos Estados Unidos. Às vezes, a Atlas Foundation faz programas de treinamento no Brasil, em língua portuguesa, assim como o Cato também tem uma seção de língua portuguesa, que acabou virando uma espécie de organização no Brasil, que é ligada umbilicalmente ao Cato. Eles oferecem programas os mais diversos, desde como aprender a escrever editoriais de política em jornais e periódicos, até como gerenciar uma associação think tanks, ou seja, se a pessoa quiser se tornar um “administrador” de uma organização, eles ensinam como fazer isso.
Essas organizações são ligadas a grupos de direita e tanto a Cato quanto a Atlas fazem parte dessa constelação de direita, que vai desde uma direita mais liberal até uma direita mais conservadora. Também têm aqueles grupos que não se reivindicam nem de direita nem de esquerda, que têm suas próprias organizações.
IHU On-Line – Então, conforme o que você disse antes, grupos de direita participaram de junho de 2013? Como eles compreenderam esse momento? A esquerda está bastante dividida no entendimento desse fenômeno. A direita também?
Camila Rocha – Eles estiveram presentes, sim, e a impressão que tenho é de que várias das lideranças e militantes da nova direita viram junho com bons olhos, porque foi uma oportunidade para eles poderem aparecer mais para o grande público, para atrair militâncias - o próprio MBL nasceu nas manifestações de junho.
Em termos das avaliações, como os intelectuais de esquerda costumam fazer em relação aos ganhos políticos ou avanços ou retrocessos, apostaria que a nova direita deve ter visto mais avanços do que retrocessos nas manifestações de junho. Eles devem ter uma percepção de que saíram lucrando com as manifestações; não que isso signifique que setores de esquerda saíram perdendo, mas eles viram com bons olhos no sentido de ter sido algo favorável para eles.
IHU On-Line - A esquerda está perdendo militância para a direita ou não dá para fazer um diagnóstico desse tipo?
Camila Rocha – Dizer que ela está perdendo seria um pouco precipitado. Mas é importante destacar que – e isso de fato é algo que está acontecendo – vários dos novos militantes que vêm sendo atraídos pelos setores que compõem a nova direita são jovens, a maior parte deles com grau universitário e que têm contato, na própria universidade, com o movimento estudantil ou com militantes de esquerda. No entanto, por não se identificarem ou por sentirem que são – segundo militantes já me relataram - perseguidos ou coagidos por militantes de esquerda ou por grupos do movimento estudantil, embora nem sempre tenham uma posição política muito definida, acabam indo militar na direita.
Nesse sentido, talvez, em algumas situações, por conta da intransigência dos grupos de esquerda ou por esses grupos não se preocuparem em atrair pessoas que não sejam previamente de esquerda, essas pessoas acabam indo para a direita. Essas são as situações que esses militantes me relataram, mas não tenho como dizer qual é a abrangência disso ou quão isso é ou não importante em termos numéricos.
Mas uma coisa é fato: atualmente, os discursos da nova direita têm, sim, atraído muitos jovens e universitários, que são segmentos que, por excelência, costumavam se mobilizar à esquerda, ou terem posições políticas mais alinhadas à esquerda.
IHU On-Line - E a militância da direita também está sendo formada por grupos mais heterogêneos socialmente, como por jovens de classe média baixa?
Camila Rocha - Isso é interessante e é algo que diferencia a nova direita da velha direita. Hoje, existe uma democratização no campo da direita, onde é possível encontrar, principalmente, gente de origem de classe média-média e baixa. Os militantes, em sua maioria, são de classe média e com acesso ao ensino universitário, seja ele público ou privado, e de vários cursos também. Antes, muitas dessas pessoas com formação universitária vinham de cursos específicos, como Economia, Direito, Engenharia e hoje isso é muito mais diversificado, pois encontraremos as mais variadas formações, como psicologia, arquitetura etc.
IHU On-Line – Recentemente entrevistamos Henrique Costa sobre os jovens prounistas que não têm uma identificação com o PT ou com a esquerda, embora tenham sido beneficiados pelo ProUni. Como você entende esse fenômeno? Isso está ligado a algum erro estratégico da esquerda ou a um avanço da direita na cena pública?
Camila Rocha – O modo de regulação lulista, ou o modus operandi dos governos do PT, que fez esses programas – ProUni, Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida -, é um modus operandi que prescinde de politização, de mobilização política. Isto é, esses programas simplesmente são feitos a despeito das pessoas que participam deles terem algum tipo de conselho para discutir o resultado dessas políticas, de como elas impactam suas vidas, ou seja, essas pessoas, no limite, não foram organizadas pelo partido de nenhuma forma. Isso faz com que várias pessoas consigam ter acesso à universidade por conta do programa, pois sem a existência dele, elas não poderiam estudar ou o acesso seria muito mais difícil, e a despeito disso, elas não se importam muito se o programa terá continuidade, tampouco têm uma relação de achar bom que determinado partido tenha feito o programa que os beneficia.
Nesse sentido, se houve um erro estratégico da esquerda, com certeza estaria nisso de fazer políticas públicas sem haver qualquer tipo de política que seja mobilizadora. Essas políticas feitas não só não politizam, como acabam até despolitizando, porque são entendidas pela população e pelos beneficiários como dadas, talvez com exceção do Bolsa Família, porque foi muito ligado ao Lula e muito ventilado na mídia, com muitos debates acalorados. Então, talvez, os beneficiados do Bolsa Família tenham outra relação com a manutenção do programa.
Também é importante destacar que vários militantes falaram nas entrevistas sobre a própria decepção com o governo no que tange aos escândalos de corrupção. Isso é generalizado, e pessoas que tinham votado em Lula nas duas eleições e tinham alguma identificação com o PT, se afastaram tão radicalmente, por conta dos escândalos de corrupção, que acabaram indo para a oposição. Se formos pensar em termos de estratégia, o fato de perder o controle não só sobre a narrativa desses acontecimentos, mas também sobre a própria forma com que o partido lidou com a erupção desses escândalos, com certeza afetou muito a imagem não só do partido, mas acabou reverberando muito sobre a imagem dos militantes da nova direita, como se a corrupção fosse uma coisa generalizada da esquerda.
IHU On-Line - A disputa entre direita e esquerda ficará mais acirrada daqui para frente?
Camila Rocha – Não sei dizer. A esquerda, de forma geral, parece aturdida com tudo que aconteceu. Essas manifestações “Fora Temer” tendem a aglutinar um pouco esses setores de esquerda que ficaram meio aturdidos, sem saber o que fazer em meio à crise política. Mas, em termos partidários, é muito difícil dizer o que acontecerá porque, por enquanto, existem candidatos, principalmente do PSOL, que têm alguma possibilidade de disputa eleitoral, principalmente o Marcelo Freixo, no Rio de Janeiro, mas isso ainda está muito nublado. Tenho a impressão de que, hoje, boa parte dos setores acaba apostando muito mais em organizações e movimentos da sociedade civil, em detrimento do partido.
É interessante ressaltar que todas essas mobilizações de coletivos e de feministas em torno de uma série de questões de gênero, que aparecem tanto na política quanto na mídia e nos esportes, é uma forma diferente de a esquerda se organizar; ou mesmo a manifestação dos estudantes secundaristas é uma forma diferente de prática política de organização, que não se relaciona diretamente com formas mais consolidadas de atuação política, sejam partidos ou movimento social mais centralizado. A esquerda também teria chance de se reorganizar e se renovar por meio desses movimentos coletivos da sociedade civil, mais do que pelos partidos.
IHU On-Line - Como você vê esse novo momento político que o país vive, em que há uma disputa por ideias e pelo espaço público, com o surgimento de novas organizações à esquerda e à direita?
Camila Rocha – Talvez algumas pessoas possam encarar o que vou falar com um pouco de receio, mas acredito que esse fenômeno é positivo porque é bom que exista uma politização no campo da direita, e é bom que essas pessoas participem, cada vez mais, do debate público, não só em termos de democratização, mas no sentido de que quanto mais pessoas se envolverem, melhor a qualidade do debate. A própria esquerda tem que “correr atrás”, tem que responder não só em termos de políticas práticas, de militância, mas até no sentido de os intelectuais públicos de esquerda se posicionarem, eventualmente, frente a essas questões. É preciso considerar que cada vez mais surgirão intelectuais da nova direita ou, pelo menos, porta-vozes ou publicistas. Com toda essa onda de publicações que estão no campo da nova direita, seria interessante que jornalistas e intelectuais de esquerda passassem também a publicar livros de maior circulação, que pretendam atingir um público maior.
É positivo também que, quando esses movimentos passam a se tornar públicos, isso facilita, inclusive, para o público refletir sobre o que é, afinal, a nova direita e analisar se se identifica com ela ou se identifica com a esquerda. Isso também torna mais claras as posições dos atores no jogo político. É muito difícil quando existe um jogo político muito nebuloso, principalmente no Brasil, em que temos partidos de direita fazendo alianças com partidos de esquerda e, às vezes, partidos que são formados com objetivos clientelistas e que não têm nenhum tipo de compromisso ideológico. Tendo a achar interessante quando essas posições ficam mais claras, mais facilmente detectáveis para o grande público, para o eleitorado.
Notas:
[1] Robert Nozick (1938-2002): foi um filósofo norte-americano e professor da Universidade Harvard. Foi um proeminente filósofo político americano nas décadas de 1970 e 1980. Desenvolveu outros trabalhos, menos influentes, nas áreas de epistemologia e teoria da decisão. A sua obra Anarquia, Estado e Utopia, de 1974, foi uma resposta libertariana a Uma Teoria da Justiça de John Rawls, publicada em 1971. (Nota da IHU On-Line)
[2] Think tanks: são organizações ou instituições que atuam no campo dos grupos de interesse, produzindo e difundindo conhecimento sobre assuntos estratégicos, com vistas a influenciar transformações sociais, políticas, econômicas ou científicas. (Nota da IHU On-Line)
[3] Irmãos Koch: Os irmãos e sócios Charles e David Koch são empresários norte-americanos, donos do Charles Koch Institute e ocupam sexto e sétimo lugar na lista dos mais ricos da Forbes. Há ainda Bill Koch, o caçula, brigado com os irmãos e com um império independente, mas também financiador ativo de políticos conservadores e o primogênito Frederick Koch, que não se interessa pelos negócios da família. (Nota da IHU On-Line)
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A nova direita brasileira surge na onda anti-PT e quer se descolar da velha direita desenvolvimentista. Entrevista especial com Camila Rocha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU