A esquerda optou pela obsolescência da transformação social e se rendeu à ideia de que as coisas são feitas aqui e agora. Entrevista especial com Henrique Costa

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14 Junho 2016

“O ProUni foi um jeito de o governo “matar três coelhos com uma cajadada só”: atender a demanda do mercado de trabalho, que precisa desses estudantes em grande quantidade para pagar pouco e manter a situação de precariedade; o segundo ponto é que as universidades, até a adoção do ProUni, viviam uma situação de estagnação nas matrículas e não tinham um crescimento suficiente para manter seus negócios; e o terceiro ponto era a necessidade de os alunos terem um diploma para conseguirem se manter no mercado", constata o cientista político.

O sentimento geral entre os jovens 'prounistas' entrevistados para pesquisa de dissertação de mestrado Entre o lulismo e o ceticismo: um estudo de caso com prounistas de São Paulo “não é nem de agradecimento, nem de reconhecimento de que o governo estava trabalhando para eles”, diz Henrique Costa à IHU On-Line.

Segundo o autor da pesquisa, apesar de a narrativa “criada pelo próprio governo e repercutida” amplamente, “de que o Prouni implicou no acesso de grandes massas e de uma grande fatia da classe trabalhadora jovem à universidade, algo que não lhes era permitido anteriormente”, entre os jovens entrevistados essa política pública não repercute positivamente na imagem que se tem do lulismo. 

Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Costa ressalta que sua hipótese inicial era a de que os estudantes “reconhecessem o ProUni como uma política que os beneficiou”, mas se “surpreendeu um pouco, porque não foi exatamente assim. Eles veem o ProUni como uma obrigação do governo e de qualquer governo”, frisa.

Na avaliação dele, o resultado da pesquisa está condicionado a outros fatores, entre eles, o fato de os prounistas terem de trabalhar o dia todo, estudar à noite para poderem se manter no emprego, que também depende da conclusão do curso superior. “As pessoas começaram a ver que ganham 1,5 salário mínimo e continuarão ganhando esse mesmo salário, se não perderem seus empregos. (...) Isso tem a ver com a percepção dos jovens de como todo esse arranjo que o PT criou em torno dos programas sociais serve para a gestão social e não necessariamente para a mobilidade social. Foram criadas muitas vagas de emprego, mas se todas pagam muito pouco, isso demonstra que essas vagas ajudam as pessoas a se manter, mas elas dificilmente conseguirão modificar radicalmente seu padrão de vida”, avalia.

Segundo Costa, a consequência mais grave dos últimos anos é que a esquerda optou pela “obsolescência da ideia de transformação social”, foi “abandonando bandeiras pelo caminho”, “até chegarmos ao momento em que hoje, basicamente, a nossa única preocupação é se o Michel Temer cortará ou não o Bolsa Família. Além disso, a outra pauta é garantir a questão dos Direitos Sociais. Entretanto, o governo ‘acabou’ com o Ministério da Ciência e da Tecnologia e com o Ministério do Desenvolvimento Social e a repercussão foi mínima, enquanto o então fim do Ministério da Cultura causou grande repercussão, sendo que era o Ministério com um dos menores orçamentos da União”.

Além disso, adverte, a esquerda “tem dificuldade de dialogar com os jovens trabalhadores” e está “terceirizando essa tarefa de diálogo para alguns grupos” ligados à cultura, mas não se dá conta de que essa é apenas uma “parte pequena da juventude”, “porque tem uma massa de jovens precarizados, entre eles os jovens que pesquisei, que estão fora desse mundo”.

Em contrapartida à velha esquerda, estão surgindo os partidos “pós-materialistas”, que colocam no centro da política outros aspectos que “não a questão econômica, a questão material ou a luta de classes.

Na avaliação dele, é preciso adequar a reflexão teórica à realidade, porque muitas análises estão “descoladas”, “embriagadas” e não se está percebendo o que acontece “na base da sociedade”. O primeiro passo, frisa, é “parar para olhar o que está acontecendo no mundo, vamos parar para olhar o que está acontecendo neste país, e ter um pouco de humildade para aceitar que do jeito que estamos fazendo não está dando certo”.

Talvez, pontua, uma “faísca” esteja surgindo nas ações dos jovens estudantes secundaristas: “O caso dos secundaristas que estão fazendo ocupações é um exemplo, porque eles têm uma experiência comum de sofrer na pele o que é estar na escola pública hoje, o que fará deles o precariado de amanhã, porque eles percebem que serão a classe explorada de amanhã”.

Henrique Costa é mestre em Ciência Política e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP.

Confira a entrevista.

imagem cedida pelo entrevistado

IHU On-Line – Como iniciou a sua pesquisa “Entre o lulismo e o ceticismo: um estudo de caso com prounistas de São Paulo”?

Henrique Costa – Minha intenção inicial com essa pesquisa era tentar mapear, a partir da pesquisa qualitativa, as hipóteses que André Singer havia formulado a respeito do lulismo e de como as pessoas que são beneficiadas com políticas públicas sociais respondiam politicamente a isso. Imaginava-se incialmente que havia de fato uma repercussão do ponto de vista eleitoral. Quando comecei a pesquisar e mapear as pessoas numa universidade privada de São Paulo, notei que o problema era mais profundo e que outros aspectos precisavam ser mapeados e compreendidos, e não apenas considerar uma adesão ou negação ao PT ou ao lulismo. Decidi fazer uma etnografia política, acompanhando e entrevistando esses jovens estudantes sobre outros temas que não somente a política, mas também sobre mobilidade, educação, trabalho, principalmente a relação entre trabalho e educação. Essa foi uma pesquisa feita em São Paulo, com alunos de uma universidade e, portanto, não quero generalizar e dizer que todos os alunos do ProUni pensam dessa maneira.

IHU On-Line – Quais aspectos novos foram incluídos na pesquisa para entender como os estudantes se relacionavam com o ProUni e como isso repercute na política e na visão que eles têm do PT e do lulismo?

Henrique Costa – Quando se faz a pesquisa qualitativa com uma abordagem etnográfica, tenta-se incluir todos os aspectos que fazem diferença para a vida das pessoas que estão sendo objeto de estudo. Então, quando essas pessoas iam procurar o ProUni ou o Fies, elas estavam sendo conduzidas a esses programas por uma série de outras questões relacionadas à vida delas, como, por exemplo, a necessidade de trabalhar. As escolhas que elas têm, portanto, são disponibilizadas a partir das experiências que elas já tiveram, por exemplo, na escola pública e nas condições de mobilidade.

A maioria dos alunos que entrevistei vinha da Zona Leste por causa da linha do metrô, porque a linha vermelha liga a Barra Funda, que é a região mais central, a Itaquera, na Zona Leste. Um dos campus dessa universidade que pesquisei fica na Barra Funda e na “boca” do metrô, então o fluxo de estudantes vem da Zona Leste pela Barra Funda, por conta da praticidade. O outro grupo de estudantes que entrevistei vinha da periferia da Zona Sul e estudava num campus universitário que fica ao lado de um ponto de ônibus. Então isso conforma uma espécie de condicionante para a experiência universitária, ou seja, eles condicionam a experiência universitária deles de acordo com a maneira com que podem se deslocar.

Nesse sentido, a minha percepção foi a de que era preciso saber como esses estudantes faziam para ir até o local de trabalho e do local de trabalho para a universidade, porque a experiência universitária está condicionada a esses aspectos, do mesmo modo que a experiência em relação à política também, pois se a pessoa mora no extremo da Zona Sul, a perspectiva que ela tem da cidade e da política será diferente da pessoa que tem uma condição melhor de mobilidade. E se a pessoa estudou em escola pública numa região mais precária, isso também vai influenciar sua visão.

Não adianta somente perguntar em quem elas votaram e, com isso, fazer uma tabela e tentar referendar as posições políticas. Se você não entende que uma das meninas é evangélica, mas ao mesmo tempo é do PCdoB, você não consegue perceber aonde isso vai chegar. Então, é preciso entender que em relação às questões municipais, essa menina vai ter uma percepção, porque os evangélicos investem nas eleições municipais em São Paulo, e ao mesmo tempo ela é filiada ao PCdoB porque o pai tinha sido do movimento de moradia e foi dirigente do PCdoB da Bahia. Com esses dados, é possível chegar a uma questão geográfica, porque muitas dessas estudantes são filhas de nordestinos ou são nordestinas, o que entra na questão da referência que as pessoas têm de como o lulismo afetou o Nordeste. E a partir disso se chega à questão: a vida dessas pessoas melhorou mesmo? E as pessoas vão definir seu voto por causa disso? Não necessariamente, pois há outros fatores interferindo na decisão.

"2013 foi um “tapa na cara” de todo mundo"

 

IHU On-Line - Você divide os alunos entrevistados em dois grandes grupos: os do curso de Pedagogia e os dos cursos tecnológicos. Qual é o perfil desses estudantes prounistas que você entrevistou e como eles se manifestam em relação ao Prouni?

Henrique Costa – Esses dois grupos são da periferia de São Paulo: um grupo majoritariamente da Zona Leste e outro da Zona Sul. Pude ver que, a partir das experiências de vida que eles acumulam em relação ao trabalho, ao deslocamento, a oportunidades, compreendem a política de modos diferentes. O grupo das estudantes de Pedagogia era mais velho e tinha uma situação de precariedade maior porque passava por necessidades mais imediatas na vida, mas tinha uma referência no PT a partir da ideia de igualdade no sentido de que o partido ajudaria os mais pobres por conta do modo como o petismo se desenvolveu ao longo dos anos 80, ligado aos grupos de base.

O outro grupo é de tecnólogos, jovens que atuam nessa área dinâmica do capitalismo, que é um setor novo e que é resultado da estruturação produtiva ocorrida nos anos 90 e que lida com o trabalho de um modo muito diferente, de forma flexível. Esses jovens estão inseridos nesse modelo flexível, mudam muito de emprego e não são tão pobres quanto as estudantes de Pedagogia, mas trabalham durante o dia, estudam à noite, têm dificuldades em acompanhar as aulas, os estudos, têm pouca relação com a universidade - a não ser aquela relação mais pragmática para conseguir o diploma -, já estão inseridos no mercado de trabalho e buscam o diploma para se manterem no mercado.

Alguns que entrevistei e voltei a entrevistar mais tarde já tinham desistido do curso apesar de ter o ProUni. Então, esse tipo de situação acaba gerando uma frustração, com promessas que não podem ser cumpridas: eles vão continuar num mercado que é muito rotativo e dificilmente conseguirão ter o que os pais tiveram, isto é, um ofício estável, mesmo com condições não ideais. Então, isso acaba afetando o raciocínio deles em relação a outros aspectos, inclusive em relação à política.

As pedagogas, ao contrário, vislumbram na universidade e no ProUni uma oportunidade de melhorar de vida, porque anteriormente elas trabalhavam como babás e domésticas. Por isso a possibilidade de se tornarem professoras é vista como uma melhora para elas, inclusive, para terem mais autonomia.

IHU On-Line – A partir da sua pesquisa, que relação percebe que esses jovens têm com a universidade? Ela é vista apenas como um meio para conseguir um diploma?

Henrique Costa – Infelizmente é uma relação de cliente x empresas. Conversei com alguns professores que acabaram corroborando essa percepção de que os alunos precisam do diploma para se manterem no trabalho. A relação com a universidade é muito deficitária porque a maioria desses alunos não tem condições de acompanhar o curso porque trabalham. Acompanhei algumas aulas e pude ver o quão disperso é o ambiente da sala de aula. A universidade também não ajuda muito, não estimula para que o aluno tenha uma relação mais aprofundada com o ambiente universitário.

Conversando com os alunos fora do ambiente universitário, é frustrante ver que muitos deles acreditam que a universidade é um obstáculo em suas vidas e não algo que vá ajudá-los a evoluir. É como se fosse uma corrida com barreiras: você corre e tem que superar o obstáculo porque do contrário você não consegue se manter. Uma das estudantes que entrevistei disse que tudo que ela aprende na universidade, poderia aprender sozinha na internet, mas que mesmo assim ela precisa frequentar a universidade porque o mercado cobra o diploma e ela acaba ficando sem escolha.

Então, esse ideal de universidade que temos, de que se tem uma relação de conhecimento com a universidade, é muito precário no caso desses jovens. No caso das estudantes de Pedagogia a situação é um pouco diferente, porque elas têm mais sede de conhecimento, gostam de conversar, de poder expor suas ideias, de falar sobre política - algo que os tecnólogos não gostam. Elas têm essa relação com o conhecimento, apesar de ser limitada, e isso tem a ver com uma ideia de vocação, uma vez que elas escolhem o curso porque gostam de crianças, de ensinar, de estar nessa troca com a criança. Portanto, as estudantes pedagogas têm mais vontade de descobrir o mundo universitário e isso acaba repercutindo em outras esferas da vida.

IHU On-Line – Na sua tese, você menciona que os estudantes dos cursos de tecnologia negam a condição operária e têm uma visão mais focada no mérito individual e um descompromisso com as soluções coletivas de melhorias sociais. Como você chegou a essa conclusão e como interpreta essa informação? O que seria se identificar com uma “condição operária” nos dias de hoje?

Henrique Costa – Em relação aos tecnólogos, minha análise é fruto das observações e das entrevistas que fiz com eles. Como as entrevistas eram longas e tinham o objetivo de “pescar” quais eram os referenciais dessas pessoas, percebi que num dos grupos o discurso caminhou para um lado e, no outro, caminhou para outro lado, e comecei a buscar as coincidências entre os discursos. No caso dos tecnólogos notei que eles tinham receio e dificuldade de se expressar, as entrevistas eram mais curtas e mais difíceis. Além disso, eles tinham experiências de vida muito limitadas ou não queriam compartilhá-las. Enquanto as entrevistas com as estudantes pedagogas duravam mais de uma hora, com alguns estudantes tecnólogos não duravam vinte minutos.

"Muitos autores dizem que a centralidade do trabalho não existe mais, mas para esses jovens o trabalho é absolutamente central"

Empresas de si

O segundo ponto é que eles acabavam se definindo como “empresas de si” – não nesses termos, mas é o conceito que retiro dos pesquisadores que estou trabalhando –, que é essa ideia de que a pessoa administra a si mesma como se fosse uma empresa: a pessoa precisa estar atualizada a todo momento por conta do nível de competitividade, precisa estar em busca de qualificação e por isso busca fazer um curso de inglês, de informática, ter o diploma universitário, porque, do contrário, vai ficar para trás.

Quando se assiste a uma aula com esses jovens, você percebe que a sociabilidade deles é limitada, eles têm pouca interação e muitos chegam na sala de aula, colocam o fone de ouvido e passam a aula toda assistindo a um vídeo na internet. Essa ideia de que não se consegue inclusive promover relações dentro do espaço universitário é significativa, do mesmo modo que é significativo o fato de eles terem receio de se expor e valorizarem a centralidade do trabalho. Muitos autores dizem que a centralidade do trabalho não existe mais, mas para esses jovens o trabalho é absolutamente central, até de um ponto de vista negativo, de não ser um trabalho dignificante.

Quando se percebe que isso está muito presente nos discursos deles, é possível fazer esse tipo de associação, chegando ao discurso do mérito e da individualidade. Quando perguntei sobre política, eles se mostraram absolutamente contrários, se desculpavam por não poder emitir uma opinião. Apenas um menino cujo pai era filiado ao PT falou sobre política. Mas essa negação tem a ver com essa ideia de não entender mais as referências coletivas, não se entender parte de uma coletividade e não ter uma identidade de classe.

Negação da condição operária

A negação da condição operária significa dizer que os pais deles tinham empregos que hoje são considerados de segunda categoria, mas que à época permitiam que eles pudessem ter carteira assinada e uma certa estabilidade. Hoje em dia, no entanto, esses jovens têm uma vida muito mais atarefada, e não só trabalham e estudam sábado ou domingo, mas a pressão pelo trabalho produz algo muito forte na subjetividade dessas pessoas de modo que elas não têm nem tempo de pensar a respeito disso. Como as pedagogas já são mais velhas e entendem o problema da precariedade do trabalho de modo diferente, elas compreendem que são penalizadas pela desigualdade social e acabam desenvolvendo um senso de coletividade e identidade diferente, que acaba sendo condicionante para outras percepções da vida.

Se esses jovens não conseguem fazer essa identificação entre eles, não conseguem se ver parte de alguma coisa, fica complicado fazer um trabalho político porque eles não se veem dessa maneira. Os velhos discursos da esquerda têm muita dificuldade de atingi-los. Quem os atinge de alguma maneira são os partidos “pós-materialistas”, que não trabalham necessariamente a questão de classe. Nesse sentido, muitos desses jovens votaram na Marina Silva ou na Luciana Genro, seduzidos pela questão da defesa da descriminalização do aborto. Eles não são necessariamente conservadores desse ponto de vista. Eles têm amigos gays, não gostam da ideia de religião com política, mas a questão material está desvinculada dessas questões para eles, então, qualquer político que entre na política terá, na visão deles, a função de fazer a gestão dos recursos humanos, e o ProUni para eles é uma gestão de recursos humanos.

Esses jovens saem de casa muito cedo para trabalhar, pegam um transporte lotado, depois vão para a universidade, voltam para casa à meia-noite e, no dia seguinte, começam tudo de novo. Por isso, pensam que não é mais do que obrigação do governo dar a eles o mínimo para que possam cumprir as suas tarefas e se manterem no mercado de trabalho. Eles pensam, então, que o ProUni não é o PT quem faz, mas que qualquer governo faria.

  

"O ProUni foi um jeito de o governo ‘matar três coelhos com uma cajadada só’"

IHU On-Line - Que perfil de alunos você esperava encontrar? Ficou surpreso com o modo como eles pensam? O fato de eles terem recebido bolsa de estudo do Estado deveria fazer com que eles tivessem uma postura diferente em relação à política ou ao lulismo, por exemplo?

Henrique Costa – Nós estamos muito acostumados com a narrativa criada pelo próprio governo e repercutida pelo PT, pelo PCdoB e pelos partidos que sustentam o governo, de que o ProUni implicou no acesso de grandes massas e de uma grande fatia da classe trabalhadora jovem à universidade, algo que não lhes era permitido anteriormente. Portanto, essas pessoas se sentiriam não “agradecidas”, mas entenderiam que essa possibilidade de chegar à universidade promovida pelo ProUni se devia ao fato de reconhecer essas políticas no sentido de que o governo estava trabalhando para elas, mas não foi esse o caso.

A percepção dos prounistas

No caso das estudantes de Pedagogia, como elas já tinham uma série de experiências anteriores, tinham outra visão do ProUni, não necessariamente por conta do ProUni, mas da referência ao PT como sendo o partido que as representava. Então, quando o PT começou a desenvolver essas políticas, elas fizeram a associação de que outros partidos não fariam o que o PT estava fazendo. Além disso, entendem que a universidade pública não é para elas, porque existe uma divisão social e elas não serão privilegiadas e beneficiadas, de tal modo que o ProUni é o que o governo poderia fazer por elas.

No caso dos tecnólogos, eles vivem numa situação de precariedade no mercado de trabalho, então, de modo geral, já imaginei que eles teriam dificuldade de dar entrevistas, mas não sabia direito o que esperar em relação à opinião deles sobre o ProUni. A tendência era de que eles reconhecessem esse programa como uma política que os beneficiou e me surpreendi um pouco, sim, porque não foi exatamente assim. Eles veem o ProUni como uma obrigação do governo e de qualquer governo. Estão sofrendo a precariedade do mercado de trabalho e entendem que o Estado tem de oferecer algo, e o ProUni é o que o Estado pode oferecer. Eles entendem o ProUni com mais naturalidade que as estudantes de Pedagogia.

Os tecnólogos naturalizaram a ideia do ProUni e do Fies, e acham que entrar na USP não é racional, ou seja, eles pensam racionalmente em relação à carreira deles e acreditam que não é racional gastar dinheiro com um curso preparatório, passar meses estudando para ingressar numa universidade pública, porque o que eles fariam na universidade pública é o mesmo que fariam numa universidade privada, e ainda correndo o risco de não conseguirem se manter na universidade pública. O mais racional para eles é estudar com o Fies ou o ProUni, porque o diploma em si, para eles, serve apenas como uma exigência do mercado e não como algo que vai trazer conhecimento ou outras percepções do mundo ou novas ideias. Então, se é só isso, tanto faz. E se para conseguir isso é necessária uma política pública, não é mais que obrigação do governo possibilitá-la.

Um dos jovens que entrevistei estudava em duas universidades: numa com ProUni e noutra com outra bolsa, mas os dois cursos eram muito parecidos, porque dois diplomas valem mais do que um, e aí as condições de se manter no mercado de trabalho são maiores. Mas será muito difícil tirar ideias de política de pessoas assim, o que não significa que elas sejam alienadas; ao contrário, quero me afastar dessa ideia, elas são oprimidas por uma vida difícil, porque elas têm de trabalhar, estudar.

IHU On-Line – A partir da sua pesquisa, você chega a conclusões acerca de quais foram os acertos e erros do ProUni? Muitos criticaram o fato de o lulismo ter feito uma escolha por esse modelo de acesso à universidade. Como reage a essas críticas?

Henrique Costa – O ProUni foi um jeito de o governo “matar três coelhos com uma cajadada só”: atender a demanda do mercado de trabalho, que precisa desses estudantes em grande quantidade para pagar pouco e manter a situação de precariedade; o segundo ponto é que as universidades, até a adoção do ProUni, viviam uma situação de estagnação nas matrículas e não tinham um crescimento suficiente para manter seus negócios; e o terceiro ponto era a necessidade de os alunos terem um diploma para conseguirem se manter no mercado. Então, foi uma escolha política, porque o governo manteve o apoio desses grandes grupos econômicos que são as universidades privadas hoje, e muitas delas têm boa relação com o PT.

Mas o essencial é que o ProUni, do ponto de vista do governo, também é racional no sentido de gestão de recursos humanos, já que as pessoas estão disponíveis e é preciso dar emprego a elas. Então a ideia foi pensar como seria possível fazer isso em um tempo razoavelmente curto, e a opção foi a de colocar as pessoas na universidade privada e, ao mesmo tempo, ajudar a financiar o setor privado e inserir as pessoas no mercado de trabalho.

Essa questão permeia não só o ProUni, mas todo o lulismo, ao se pensar que não há mais espaço para políticas de longo prazo, ou seja, essa ideia não “cola” mais nos tempos atuais e é preciso desenvolver políticas de emergência, porque tem uma massa de pessoas na miséria. Assim, se pensou no jeito mais rápido de tirá-las dessa situação através do Programa Bolsa Família, do mesmo modo que o Fies e o ProUni possibilitaram o ingresso de uma massa de pessoas no mercado de trabalho, fazendo com que os grupos privados e de educação fizessem parte desse jogo.

Vejo o lulismo como uma forma de integrar os interesses do empresariado com o precariado, ou seja, conseguiu-se juntar essas duas pontas com essas políticas e, nesse sentido, o ProUni tem um papel de prontuário, de ser uma política que funciona rapidamente, e é vantajoso para o mercado de trabalho e para as universidades. O governo tomou essa decisão condicionado à ideia de que não dá para pensar políticas para trinta anos, porque as coisas têm de ser pensadas hoje.

"Os estudantes precarizados representam um setor da sociedade que está marginalizado do processo político que ocorre no país"

IHU On-Line - Que relações estabelece entre a crise do lulismo e as conclusões do seu estudo com os estudantes prounistas? O que a pesquisa demonstra sobre como os estudantes veem o PT e o lulismo?

Henrique Costa – Já era possível vislumbrar que a crise econômica estava por vir, porque a dinâmica do mercado de trabalho já era bem mais baixa e, em certa medida, tudo isso tem a ver com o período de prosperidade do lulismo, que esteve ligado à questão das commodities, do petróleo e do pré-sal. O crescimento brasileiro no auge do lulismo, por volta de 2010, foi histórico, impressionante e possibilitou que algumas políticas fossem feitas, como a valorização do salário mínimo, a concessão de créditos, colocando no jogo muitas pessoas que antes não tinham acesso a banco e a crédito e estavam com o salário desvalorizado. Entretanto, o crescimento econômico não era sustentável, tanto que a partir do momento em que o país deixou de crescer economicamente, o Estado passou a ter dificuldades para se financiar e para financiar esses programas, os salários começaram a estagnar, o desemprego aumentou e o mercado de trabalho começou a se deteriorar. Nesse cenário, as pessoas começaram a sentir dificuldades e passaram a ter uma visão mais crítica em relação ao processo e ao lulismo.

Os limites do lulismo

Alguns jovens me diziam: “Estou cursando a universidade com o ProUni, está sendo uma dificuldade me manter no mercado e cumprir todas as tarefas que me são impostas, e mesmo assim não consigo ver a vida melhorar”. Isso gera uma frustração muito grande porque parece que o lulismo atingiu seu limite no que diz respeito à promoção da mobilidade social e da ascensão social. E essa situação bateu no teto, porque o país não teve mais condições de financiar tais políticas – tanto que muito antes da queda da Dilma e de toda a presente situação, o governo já havia cortado muito dinheiro do Fies, por exemplo. O Fies vem sofrendo muito há pelo menos dois anos, com cortes de orçamento; o governo inclusive dificultou o acesso a esse programa. Muitas pessoas ficaram frustradas e esse tipo de frustração desemboca na questão política, pois as pessoas começaram a perceber que aquilo que lhes era prometido não era sustentável. Então, o lulismo precisava daquele crescimento econômico porque do contrário ele não funcionaria.

IHU On-Line – Sua tese também trata de junho de 2013. É possível avaliar se parte dos prounistas que você entrevistou participaram de junho de 2013?

Henrique Costa – Entre as estudantes de Pedagogia, a adesão foi zero, não vou dizer que elas eram contra as manifestações, mas a manifestação era um mundo alheio. Elas acompanhavam tudo pelo noticiário, pois não tinham nem condição nem motivação para participar das manifestações, dado que muitas tinham filhos, por exemplo. Ao mesmo tempo que elas apoiavam as propostas das manifestações, como melhoria do transporte público, mais direitos, elas têm um apego à ordem e não gostam do que chamam de “baderna”. Elas sempre faziam esse comentário: “Apoio, acho que as pessoas estão lutando pelas coisas, mas não gosto de baderna, desse negócio de quebra-quebra”. Essa observação indica um pouco do que o próprio André Singer já falou há muitos anos, de como as classes mais baixas - o “subproletariado”, nos termos dele – têm um apego à ordem, querem mudanças, querem mais Estado, mas não querem radicalismo, porque quando se tem radicalismo elas são as que mais sofrem.

No caso dos tecnólogos, que são mais jovens e acompanham muito as redes sociais, pude perceber que estavam mais informados, tinham uma opinião mais positiva sobre junho de 2013, mas, com uma única exceção, ninguém foi às manifestações. Muitos deles disseram que não entendiam as manifestações, porque as pessoas defendiam muitas coisas diferentes, e num determinado momento não sabiam mais exatamente para o que elas serviam.

Então, eles não se manifestavam contra, mas não tinham uma “euforia”. O que se pode ver entre as pessoas que participaram das manifestações efetivamente é que elas demonstravam “euforia” com aqueles acontecimentos. Acredito que os estudantes precarizados representam um setor da sociedade que está à margem do processo político que ocorre no país, são observadores, não estão participando, não por alienação, mas porque são muito “exigidos” em sua vida cotidiana.

IHU On-Line – Outro ponto da sua tese diz respeito à qualidade das vagas do mercado de trabalho para esses jovens, o que impede que eles saltem para a classe média, porque 95% das vagas criadas entre 2003 e 2012 pagavam 1,5 salário mínimo. Como você analisa esse dado?

Henrique Costa – Isso tem a ver com a percepção dos jovens de como todo esse arranjo que o PT criou em torno dos programas sociais serve para a gestão social e não necessariamente para a mobilidade social. Foram criadas muitas vagas de emprego, mas se todas pagam muito pouco, isso demonstra que essas vagas ajudam as pessoas a se manter, mas elas dificilmente conseguirão modificar radicalmente seu padrão de vida. Algumas pessoas estão ganhando Bolsa Família, mas continuam vivendo em um bairro sem saneamento básico. Hoje vemos todo o problema do Zika vírus e do mosquito Aedes Aegypti, ou seja, as pessoas vivem sujeitas a essas situações, e isso infelizmente não mudou. As situações de precariedade em que as pessoas vivem, inclusive na periferia de São Paulo, permanecem.

Então, fora um certo momento de euforia do lulismo, em que de fato se criou uma ideia de que o país poderia ir para frente, se desenvolver, as pessoas começaram a ver que ganham 1,5 salário mínimo e continuarão ganhando esse mesmo salário, se não perderem seus empregos. Essa ideia de que é possível ter mobilidade e ascender socialmente através do trabalho acabou sendo um “tiro no pé” da própria pessoa que investiu nisso, porque as pessoas investiram muito em educação, mas isso não trouxe muitos resultados.

O problema é que investiram no sistema privado, em escola e saúde privada, em seu carro, enquanto do ponto de vista estatal-público a vida não melhorou tanto assim, as pessoas continuam tendo dificuldades para se manter. Portanto, isso é uma falha do lulismo. [Marcio] Pochmann, por exemplo, tem a opinião de que se está dando para as pessoas algo que elas nunca tiveram e isso, por si só, já deve ser comemorado. Eu acho que de fato isso não pode ser desprezado, o problema é que não é e não foi o suficiente, e hoje isso está muito claro.

"Quem não viu que o lulismo não era sustentável, no mínimo, se equivocou"

  

IHU On-Line – Os limites do lulismo foram percebidos tarde demais? Faltou uma crítica mais profunda, ou o que aconteceu?

Henrique Costa – Muitas pessoas tiveram sensibilidade para ver isso. Pessoas que realizavam pesquisas, principalmente em periferias, que tinham um pouco mais de sensibilidade para entender que a coisa não era assim, que essa euforia deveria ser contida, no mínimo, e não deveríamos nos apegar tanto ao lulismo, porque a euforia era fruto de uma questão conjuntural; isso tem que ficar claro.

O problema é que quando se entra nessa euforia – “o diabo mora nos detalhes”, como diz Guimarães Rosa – não se conversa com as pessoas e não se olha um pouco mais clinicamente o que está acontecendo na base da sociedade, e o resultado é o de ficar embriagado com o discurso. Veja que a Copa do Mundo foi uma apoteose do lulismo. Não se fez Copa do Mundo só para as empreiteiras ganharem dinheiro, fez-se porque era um momento de apoteose do lulismo, porque “agora nós somos uma grande nação que está emparelhada com o capitalismo central”, e isso foi uma aposta, a meu ver, equivocada.

Deslocamento da realidade

Quem não viu que o lulismo não era sustentável, no mínimo se equivocou, embora muitas pessoas tenham trabalhado para difundir a ideia de que estava tudo bem. De outro lado, algumas pessoas tinham os instrumentos para fazer a crítica ao lulismo, mas não tiveram a iniciativa de ir atrás desses sinais, os quais já estavam dados há muito tempo, não são de agora, ou da crise que iniciou em 2013.

2013 foi um “tapa na cara” de todo mundo. Basta lembrar a frase do então ministro Gilberto Carvalho, quando ao se falar sobre a razão das manifestações, ele perguntou se “as pessoas não estão agradecidas pelo que fizemos?”. É um nível de descolamento da realidade que hoje cobra seu preço e isso continua, infelizmente, porque parece que esse “tapa na cara” não foi suficiente. Basta ver que o Rui Falcão pediu uma greve geral para semana passada e ninguém embarcou, as próprias centrais sindicais não toparam.

Isso é para ver o nível de descolamento da realidade de algumas pessoas, inclusive uma dificuldade para aceitar que o mundo, o país e a base da sociedade não compartilhavam dessa euforia do lulismo. É claro que podiam estar razoavelmente satisfeitos, porque ter um emprego estável e uma carteira assinada não é pouca coisa, não estou minimizando isso, mas as pessoas entendem o que está acontecendo hoje porque elas já viveram muito e por isso sabem que situações como essa vão e voltam no Brasil. Ninguém falará de repente: “nossa, agora minha vida mudou e daqui para frente não precisarei me preocupar com mais nada”. Lógico que os trabalhadores em geral se preocupam; quem está precarizado, quem é trabalhador sabe que a situação nunca foi fácil e não tem por que achar que ela deixaria de ser fácil.

IHU On-Line – A partir das suas entrevistas com os jovens prounistas, percebe se algum discurso político os atrai hoje?

Henrique Costa – A esquerda tradicional tem dificuldade de se comunicar, principalmente com os jovens trabalhadores. Tem uma parcela de jovens que está mais envolvida com a política, principalmente mais engajada com a questão do “Fora Temer”, que está participando dos atos e que se engajou muito nessa questão do então fechamento do Ministério da Cultura, a qual é uma juventude de classe média. Não estou desvalorizando esse movimento, porque são movimentos importantes, mas são movimentos de classe média, mais intelectualizada, de artistas e que têm perspectivas diferentes em relação ao que é transformação social para eles.

Hoje, a esquerda tradicional se apega muito a esses movimentos. Quando falo esquerda tradicional, eu me refiro às tendências mais tradicionais do PSOL e do PT, que por conta dessa dificuldade de dialogar com os jovens, por ter uma linguagem muito antiga, ortodoxa, está muito descolada do que verbaliza a juventude trabalhadora. Por conta desse bloqueio, a esquerda está terceirizando essa tarefa de diálogo para alguns grupos, que são grupos de juventude mais ligados à cultura, como o Fora do Eixo, alguns desses grupos que fazem o trabalho de comunicação, investem muito nisso e estão muito associados a essa dinamicidade da inovação, da criatividade, das redes sociais.

Falta interlocução com os jovens trabalhadores precarizados

O problema é que essa é só uma parte da juventude e, a meu ver, é uma parte pequena, não desprezível, obviamente, mas pequena, porque tem uma massa de jovens precarizados, entre eles os jovens que pesquisei, que estão fora desse mundo: eles não sabem o que é Ponto de Cultura, edital e Lei Rouanet, isso não faz parte do mundo deles, eles não estão nesse capitalismo hipermoderno de, por exemplo, “vamos trazer o Google para fazer um museu virtual”, e esse é o problema. Com essas pessoas ninguém está falando. Em certa medida, a Marina [Silva] tentou falar com eles, mas se perdeu no caminho, principalmente porque essas pessoas tendem a achar a vinculação entre política e religião algo não aceitável e, do ponto de vista partidário, é uma situação dramática porque não tem interlocução.

Infelizmente, existe um tipo de interlocução, em um sentido ruim, que alguns partidos têm adotado em relação ao próprio ProUni. Por exemplo, decidem fazer um ato dos prounistas em favor do governo [Fernando] Haddad, que foi quem criou o ProUni, mas esse apoio morre no dia seguinte. Portanto, é um jeito muito instrumentalizado de fazer política.

Acredito que quem conseguiu mapear melhor a situação desses jovens precarizados foi o Movimento Passe Livre – MPL, e não estou falando do movimento atualmente, porque o MPL vive muitos impasses e depois de 2013 teve muitos problemas, mas até 2013 foram eles que conseguiram entender o que era a situação de um jovem trabalhador em uma cidade como São Paulo. Perceberam que o jovem trabalhador sofre todas essas dificuldades, que trabalha em um emprego extenuante, precisa de diploma, precisa se formar na universidade, fazer um curso de inglês, de informática, e para fazer tudo isso tem de se deslocar pela cidade, tem de pagar um valor de tarifa que está para além do que ele pode pagar, e se pudesse economizar, a vida dele seria muito melhor.

  

"Todos os principais atores políticos que faziam parte do governo à esquerda se adaptaram a essa obsolescência da ideia de transformação social"

IHU On-Line – Como conclusão da sua tese, considera que há uma sensação de que a “transformação social” não se encaixa no discurso do protagonismo juvenil hoje ou o modo como essa transformação social tem sido proposta é o que não se encaixa?

Henrique Costa – Todos os principais atores políticos que faziam parte do governo à esquerda se adaptaram a essa obsolescência da ideia de transformação social. Essa ideia já é, por si só, algo menos radical do que já foi quando se falava das reformas de base, antes de 1964. Com o golpe, essa expectativa se reduziu. Então, veio a reabertura democrática, se fez a Constituição Cidadã e fomos abandonando bandeiras pelo caminho, até chegarmos ao momento em que hoje, basicamente, a nossa única preocupação é se o Michel Temer cortará ou não o Bolsa Família. Além disso, a outra pauta é garantir a questão dos Direitos Sociais. Entretanto, o governo acabou com o Ministério da Ciência e da Tecnologia e com o Ministério do Desenvolvimento Social e a repercussão foi mínima, enquanto o então fim do Ministério da Cultura causou grande repercussão, sendo que era o Ministério com um dos menores orçamentos da União.

Transformação social é obsoleta

Acredito que a questão da transformação social deixou de existir, virou uma ideia obsoleta, os próprios partidos de esquerda abandonaram a ideia, que já não está na prática partidária há muitos anos. O governo Lula entendeu que essa ideia de transformação social era obsoleta em um mundo que tinha passado pelo neoliberalismo, e que a transformação social, se existe, é uma coisa de longo prazo e não temos esse tempo todo, então as coisas serão feitas aqui e agora, do jeito que dá.

Entretanto, esse tipo de pensamento promove transformação social efetivamente? Estamos vendo que não. O governo Lula, os partidos que sustentaram os governos Lula e Dilma e, em alguma medida, os próprios partidos da esquerda se renderam a essa ideia. Portanto, você não verá ninguém hoje em dia que seja contra o ProUni ou o Fies, nem estou dizendo que eles não tenham seu mérito, eles têm o seu valor, mas poderiam ser aplicados junto a outras reformas estruturais que não foram feitas. A questão é: não é que as reformas deixaram de ser feitas porque não havia consenso parlamentar, porque precisava ter a governabilidade, e sim porque houve certa rendição da esquerda a essa ideia de que as coisas são feitas aqui e agora, a transformação social é uma coisa de longo prazo e não há tempo para isso.

Então, para esses jovens trabalhadores, não é que a ideia de transformação social seja obsoleta, ela simplesmente não faz parte do vocabulário deles. Quando falamos sobre política ou qualquer iniciativa transformadora, não se trata de as pessoas serem contra, ou de que elas não queiram se engajar, é que simplesmente essa possibilidade não está dada. Essa ideia de transformar o mundo, que é uma ideia rebaixada desde os anos 1990, simplesmente deixou de existir.

Hoje se tem a ideia de que políticas focalizadas são o que funcionam, porque foi provado empiricamente que funcionam: o caso do Programa Bolsa Família é cabal. A política focalizada, da qual a esquerda era contra, quando se provou eficiente, foi adotada e a esquerda disse: “é por aí que vamos”.

IHU On-Line - O que e quais são os partidos de novo tipo “pós-modernos” ou “pós-materialistas” que vão além de Marina Silva, como você menciona?

Henrique Costa – Os partidos pós-materialistas, no “capitalismo avançado”, são mais comuns e têm menos vergonha de se assumirem dessa maneira. Então, por exemplo, existem os partidos verdes na Europa, que são partidos que estão colocando no centro da política outros aspectos que não a questão econômica, a questão material ou a luta de classes. Os partidos brasileiros estão, em certa medida, alguns grupos mais rapidamente do que outros, aderindo a essa ideia. Assim, há grupos dentro do PSOL, por exemplo, que estão modificando sua maneira de militância para virar um Fora do Eixo - isso não é uma crítica, é uma observação. Grupos que são menos ligados à militância tradicional, que têm menos tempo de vivência e que são os mais jovens dentro desses partidos – do PSOL e do PT principalmente – já estão em um movimento de virar um partido de novo tipo, um partido pós-materialista.

Essa ideia de pós-materialismo é um pouco imprecisa, mas é uma das que têm se usado. Trata-se de colocar no centro da agenda política questões de gênero, questões ambientais, questões ligadas à cultura e deixar de priorizar a disputa social, a disputa de classe. Não quero dizer com isso que essas questões não são importantes, é claro que são, mas quando se tira o elemento classista da equação, se deixa de dialogar, por exemplo, com esses jovens, porque para eles a questão material ainda é central, do mesmo modo que o trabalho e a educação para o trabalho.

IHU On-Line - Ao mesmo tempo a “esquerda tradicional” também não dialoga com esses jovens trabalhadores que você pesquisou?

Henrique Costa – A outra esquerda também não dialoga com eles porque está em outra chave de discurso, e aí tem um problema discursivo. Se analisarmos um partido como o PSTU, por exemplo, ele está em uma chave discursiva que não existe mais, o prazo de validade venceu, apesar de todos os méritos que ele tenha. A questão não é pautar ou não o mundo do trabalho, porque eles pautam o trabalho, no entanto não pautam o mundo do trabalho hoje.

Recebi esses dias uma resolução de um grupo do PSOL sobre a conjuntura, e parecia uma resolução de conjuntura dos anos 1980 ou 1990. Há muitas coisas que aconteceram nas últimas décadas, em termos de pesquisa mesmo, que não são contempladas. Fala-se muito sobre a “Torre de Marfim”, de que a universidade não vai para fora de si mesma, mas os próprios partidos também não procuram essas referências, porque elas existem. Mesmo o André Singer, que é superfestejado e do qual todo mundo gosta, se pegarmos uma resolução dele, não veremos nada ali de tudo o que foi estudado, de todos os avanços, do ponto de vista de entender a realidade social, esses dados são simplesmente ignorados. Isso porque muitos grupos são muito autossuficientes, eles têm um problema de dogmatismo, que obviamente ninguém assume, mas que existe.

Portanto, se não começarmos a pensar a realidade social a partir do empírico e do que está acontecendo na base da sociedade, e ficarmos só na leitura dos clássicos e naquela coisa mais ortodoxa, que tem o seu valor - não estou dizendo que não tem -, mas será insuficiente. Se não começarmos a fazer o caminho inverso, ficará muito difícil, mas este seria um primeiro passo: dizer “espera aí, vamos parar para olhar o que está acontecendo no mundo, vamos parar para olhar o que está acontecendo neste país e ter um pouco de humildade para aceitar que do jeito que estamos fazendo não está dando certo”.

"Não dá para a esquerda achar que tem direito adquirido de falar pelos trabalhadores ou pelos pobres"

  

IHU On-Line - Você vislumbra uma saída pela esquerda para a atual situação brasileira?

Henrique Costa – Isso que falei agora é uma condição, se isso não acontecer ficará muito difícil, porque não dá para a esquerda achar que tem direito adquirido de falar pelos trabalhadores ou pelos pobres; as pessoas não veem assim, ninguém assinou nenhuma carta dizendo “estou dando meu poder de palavra para o PT falar em meu nome”. Então, tem que ter humildade para entender que as pessoas não estão se sentindo representadas pelos partidos, e isso não é só uma questão de ser contra ou a favor da forma partido. Hoje em dia se diz que essa forma já não é suficiente, talvez não seja, mas chegar a essa conclusão depende de olhar para si mesmo, olhar para o que estamos fazendo e olhar para a realidade social e perceber a distância que existe entre uma coisa e outra, entre a militância da esquerda dos partidos tradicionais e a realidade social.

A partir do momento em que a esquerda conseguir fazer esse link, acho que teremos uma saída. Não sei qual é a saída, mas, enfim, temos de olhar para essa direção. O caso dos secundaristas que estão fazendo ocupações é um exemplo, porque eles têm uma experiência comum de sofrer na pele o que é estar na escola pública hoje, o que fará deles o precariado de amanhã, porque eles percebem que serão a classe explorada de amanhã. Olhar para esses jovens e pensar no que eles têm a nos ensinar, e não instrumentalizá-los e aparelhá-los, dizendo “ah, vamos lá politizar esses moleques e trazê-los para o partido”. É exatamente o contrário, o que podemos aprender com eles? Ali tem uma saída, ali tem uma faísca.

Por Patricia Fachin

Nota: A fonte da primeira imagem é correiobraziliense.com.br

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A esquerda optou pela obsolescência da transformação social e se rendeu à ideia de que as coisas são feitas aqui e agora. Entrevista especial com Henrique Costa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU