Neoconservadores e neoliberais disputam o comando do governo Bolsonaro. Entrevista especial com Ruy Fausto

Praça dos Três Poderes, em Brasília | Foto: José Cruz - Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | 01 Abril 2019

Os primeiros meses do governo Bolsonaro demonstram que “há duas alas, pelo menos, no governo Bolsonaro”, diz Ruy Fausto, professor emérito do Departamento de Filosofia da USP. De um lado, menciona, estão os “neoconservadores” e, de outro, os “neoliberais” e “houve uma espécie de acordo entre eles, mas atualmente eles se degladiam”. Segundo Fausto, é difícil prever qual ala irá se sobrepor no governo, mas “se ganhar a ala neoliberal, acho que evitamos o neoautoritarismo propriamente dito, mas caímos numa política econômica talvez ainda mais radical. E eles podem refazer um acordo. Afinal, os neoconservadores topam em grandes linhas o neoliberalismo, e os neoliberais aceitarão pelo menos uma parte do programa repressivo e reacionário dos neoconservadores”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Ruy Fausto também comenta a atuação do PT na oposição ao governo Bolsonaro e frisa que, por enquanto, o partido está “centrado demais no tema ‘Lula Livre’” e a “esquerda não fará progresso se insistir nessa palavra de ordem como bandeira política, ou como bandeira política central”.

Ruy Fausto (Foto: Cristina Guerini | IHU)

Ruy Fausto possui graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP, graduação em Direito pela mesma instituição e doutorado em Filosofia pela Université Paris 1 Pantheon-Sorbonne. Atualmente é professor titular da USP e membro de corpo editorial dos Cadernos de Ética e Filosofia Política da USP. Entre seus livros publicados, destacamos Outro dia: intervenções, entrevistas, outros tempos (São Paulo: Editora Perspectiva, 2009), Os piores anos da nossa vida (Niterói: Editora da Fundação Astrojildo, 2008), A Esquerda Difícil: em torno do paradigma e do destino das revoluções do século XX e alguns outros temas (São Paulo: Editora Perspectiva, 2007) e Marx: Lógica e Política - Investigações para uma reconstituição do sentido da dialética (São Paulo: Editora 34, 2002). Recentemente publicou Caminhos da Esquerda, elementos para uma reconstrução (São Paulo: Companhia das Letras, 2017).

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual sua expectativa em relação ao 7º Congresso do PT, a ser realizado no final deste ano? Esse poderia ser um momento para a refundação do partido?

Ruy Fausto - Embora acompanhe o quanto possível a política brasileira, o fato de estar longe pesa um pouco. Não tenho toda a informação de que dispõe quem está no Brasil. Vocês pedem a minha opinião sobre o congresso do PT. É um partido do qual não sou membro, e, embora já tenha falado muito dele, tenho algum escrúpulo em opinar sobre essa questão. Só que o futuro desse partido, de um modo ou de outro, interessa à esquerda e ao país. Então, posso e devo dizer alguma coisa. Não creio que haverá refundação. Creio sim que lá dentro há diversas correntes, algumas mais lúcidas do que a atual direção. Mas, se o futuro do PT nos interessa, a mim interessa mais o que se passará fora do PT e, em geral, fora dos partidos. Tenho fé numa reorganização da esquerda que se opere fora, embora envolvendo gente que eventualmente participava e continua participando dos partidos.

IHU On-Line - Que balanço faz da atuação do PT na oposição ao governo Bolsonaro nesses primeiros meses?

Ruy Fausto - Centrado demais no tema “Lula livre”. Claro que queremos o Lula livre, mas a esquerda não fará progresso se insistir nessa palavra de ordem como bandeira política, ou como bandeira política central.

IHU On-Line - Durante a última eleição houve uma expectativa em volta do nome de Haddad e muitos esperavam que ele representasse uma nova liderança no partido. Entretanto, depois da eleição, ele anunciou que voltaria a se dedicar à vida acadêmica. De outro lado, no legislativo, embora o PT tenha eleito vários deputados na última eleição, não houve uma grande renovação de nomes. O que esses dois fenômenos revelam sobre a formação de novas lideranças e a renovação de quadros dentro do partido?

Ruy Fausto - Haddad tem muitas qualidades, e foi muito sacrificado pelo partido, como já declarei e escrevi em diversas ocasiões. Dentro do PT, deve ser um dos melhores. Mas insisto, acho que é preciso fazer um trabalho fora dos partidos. O problema é ver com quem podemos contar, em termos de militantes e de liderança. Há gente jovem militando nos movimentos sociais, aceitando aliás riscos consideráveis, muito admirável; mas precisamos também de jovens — homens e mulheres — que se disponham a fazer “política”.

IHU On-Line - Que questões centrais deveriam estar no centro das discussões e das estratégias do PT?

Ruy Fausto - Cansei de opinar sobre o PT. Faltou e falta autocrítica, principalmente no que se refere ao problema da corrupção de governo. Faltou, e falta, rever a política internacional. Faltou e falta repensar o estilo das suas relações com outros partidos.

IHU On-Line - Quais são os desafios do partido neste momento?

Ruy Fausto - Tinha entendido: “quais os desafios do país neste momento”. Pois, peço licença a você, para responder à pergunta que você não fez. Vivemos uma situação muito difícil. Temos um governo neoautoritário que visa tomar todo o poder (é isso mesmo: ele ainda não controla tudo o que gostaria de controlar). Evidentemente, há duas alas, pelo menos, no governo Bolsonaro: os que, grosso modo, poderíamos chamar de neoconservadores, e os que são claramente neoliberais. Houve uma espécie de acordo entre eles, mas atualmente eles se degladiam. Difícil prever o resultado. Se ganhar a ala neoliberal, acho que evitamos o neoautoritarismo propriamente dito, mas caímos numa política econômica talvez ainda mais radical. E eles podem refazer um acordo. Afinal, os neoconservadores topam em grandes linhas o neoliberalismo, e os neoliberais aceitarão pelo menos uma parte do programa repressivo e reacionário dos neoconservadores. (Os neoliberais podem topar por exemplo a “escola sem partido”, embora não aceitem o programa de “costumes” nem se disponham, creio, a asfixiar o STF).

Diante desse quadro, a esquerda tem de se reorganizar. Se ela não efetuar uma ruptura com o passado e continuar tendo como centro das suas preocupações objetivos como “Lula livre”, estamos perdidos (mesmo que, como já disse, claro que quero o Lula livre). Renovar significa repensar criticamente os governos petistas, e nunca mais cair em engodos do tipo do apoio a Maduro. Não se trata só de uma questão de princípio. Ou mudamos isso tudo, ou continuaremos a amargar derrotas. É nesse sentido que não tenho muita fé no que se passa dentro do PT. No PSOL, há muita gente boa, mas o partido enquanto tal (se é que ele existe, para além das “tendências”), se enreda em muitas coisas (por exemplo, em política internacional).

Dirão que é fácil dizer isso tudo, estando fora do país. Eu sei que a situação de quem está por aí é muito diferente daquela de quem está no exterior. Mas isso significa que devemos respeitar a luta dos que estão aí (o que nunca perco de vista), mas não significa que devamos renunciar a pensar o que se passa no Brasil (mesmo se a informação aqui não é tão completa: mas leio três jornais brasileiros todos os dias). E há um sério problema de organização. Como montar uma frente, qualquer que seja a sua força? Quanto a isso, é claro, é muito difícil dizer muito, daqui de longe. Porém, mesmo quem está por aí, estou certo, tem dificuldade para indicar caminhos.

De qualquer modo, ou encontramos uma saída organizatória (digo, em termos de uma “frente”, já seria bastante), ou estamos perdidos. Mas isso só se fará, insisto, reformulando as bandeiras da esquerda. Só tomando uma posição clara e firme sobre o problema da corrupção de governo (não é que seja o único, nem o mais importante, mas discutir essa questão é o que falta fazer e é essencial), e também sobre Venezuela, Cuba etc., ou não ganharemos a parte da classe média — dezenas de milhões — que não votou em Bolsonaro, mas que também não votou em Haddad. O resto, sabemos: um programa radical de reforma fiscal a serviço dos mais pobres, uma reformulação da política econômica de maneira a parar o carro dos liberais, plano nacional contra a violência (isso é essencial), luta pelas liberdades democráticas ameaçadas, defesa das populações indígenas, programa ambiental sério (para começar, denunciando as aventuras “nucleares” dos bolsonarianos de serviço), apoio às lutas feministas e antirracistas etc etc.

IHU On-Line - Como o senhor avalia a postura do PT em relação à Venezuela, especificamente?

Ruy Fausto - Um desastre. O que não quer dizer que eu considere que Guaidó deva ser apoiado. Nem Maduro nem Guaidó.

IHU On-Line - Quais são as vantagens e desvantagens de o partido investir no discurso “Lula Livre”?

Ruy Fausto - Um erro. E não é um erro inocente. A direção tem interesse nisso.

IHU On-Line - Que futuro o senhor vislumbra para o PT?

Ruy Fausto - Continuará a ter certo peso, mas creio — e espero — que deixará de ser hegemônico.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Ruy Fausto - Já disse o essencial do que gostaria de dizer. Apenas insisto na gravidade do momento. Na cidade, depois do assassinato de Marielle e Anderson, a direita ataca, em geral, por meio de perseguição midiática e de ameaças de morte (no interior, ela mata, simplesmente). Precisamos entender bem o que é o adversário. Nesse sentido, chamá-lo de “neoliberal”, simplesmente, é insuficiente. O neoliberalismo está lá, é muito grave, mas há também outras coisas, tão ruins e talvez piores. Isso vale para o governo Bolsonaro, mas também para o de Trump, de Orbán, de Salvini etc. Assistimos, no mundo, a um revival dos autoritarismos dos anos 30. Não esquecer que aqueles tiveram muitas formas, e não só a do fascismo e do nazismo. Vivemos uma segunda onda autoritária, que também revela muitas formas. Tem analogia com a primeira onda, mas com diferenças. As forças hegemônicas nesse processo são até aqui diferentes das dos anos 30. Enfim, não perder de vista a referência dos anos 30 que é essencial. Mas também não confundir as duas ondas. Uma das marcas características é a de que a primeira tendia a um capitalismo, de alguma forma estatizante, a atual, em geral — mas nem sempre (ver o ex-Front Nacional francês, cuja política econômica tem traços estatizantes) — é, antes, neoliberal.

 

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