“Pacem in Terris”. Os 56 anos de uma encíclica e a dimensão social do Evangelho. Entrevista especial com Frei Carlos Josaphat

João XXIII assina a encíclica no dia 11 de abril de 1963 | Foto: Georgetown

11 Abril 2019

Pacem in Terris inaugurou uma nova etapa nas relações da Igreja com o conjunto dos povos, fazendo esquecer, ao menos em parte, dolorosos desentendimentos do passado”, avalia o frei dominicano.

Hoje, 11 de abril, celebra-se o 56º. aniversário da encíclica Pacem in Terris, de João XXIII. Reproduzimos a entrevista com Frei Carlos Josaphat, frade dominicano, que publicamos por ocasião do 50o. aniversário, 2013.

Reprodução da capa da versão em português da 
Encíclica 

“A mensagem mais oportuna, mais sábia, mais operacional para o mundo moderno”. É assim que Frei Carlos Josaphat descreve a encíclica Pacem in Terris, de João XXIII, publicada há 56 anos.

Para o frei dominicano, ao lado de Mater et Magistra, a Pacem in Terris constitui “a melhor formulação ética da dimensão social do Evangelho, a qual se torna operacional pelo empenho de não ficar em uma elaboração teórica, abstrata. Mas, inaugurando uma análise dos sistemas industriais, econômicos, agrícolas, elas lançam uma grande luz sobre as raízes e causas das exclusões e desigualdades sociais”.

Na avaliação de Josaphat, o pontificado de João XXIII é uma das “maiores guinadas na história da Igreja”, e significou, junto com o Vaticano II, “o ponto mais alto da doutrina social da Igreja, estendendo e clareando para o mundo moderno a dimensão social do Reino de Deus”.

No Brasil, a encíclica repercutiu entre os movimentos populares e estudantis, contribuindo para a elaboração das reformas de base.

A Pacem in Terris “amadureceu a ideia de uma democracia social, respeitando e promovendo os direitos individuais e sociais, em oposição a todo golpe que rompesse com a marcha de democratização progressiva do país”, ressalta.

Frei Carlos Josaphat é professor da Escola Dominicana de Teologia – EDT, de São Paulo, desde 1994, do Instituto Teológico de São Paulo – Itesp, da Pontifícia Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade de Minas Gerais, dentre outras.

Além de diversas obras publicadas na Europa, é autor de inúmeras obras no Brasil, das quais destacamos as mais recentes, como Evangelho e revolução social (Ed. Loyola, 2002, reedição de aniversário dos 40 anos da obra), Evangelho e diálogo inter-religioso (Ed. Loyola, 2003), Falar de Deus e com Deus hoje (Ed. Paulus, 2004), Ética e mídia: Liberdade, responsabilidade e sistema (Ed. Paulinas, 2006), Frei Bartolomeu de Las Casas: Espiritualidade contemplativa e militante (Ed. Paulinas, 2008) e Ética mundial: Esperança da humanidade globalizada (Ed. Vozes, 2010).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como avalia o pontificado de João XXIII? Qual foi o significado de seu papado?

Frei Carlos Josaphat – Eleito aos 78 anos, João XXIII seria na intenção do conclave um papa de transição. Humilde e obediente, tendo sempre como lema “Obediência e paz”, o pontífice ancião não inspirava, a quantos estavam aferrados ao passado, qualquer temor de que surpreendesse a Igreja com propostas inovadoras. Enganaram-se redondamente, pois ignoravam o segredo que estava no íntimo da vida do sacerdote, do bispo, do diplomata, do cardeal Roncalli.

Sempre e em toda parte, ele estava atento às comunidades e aos movimentos renovadores. E por vezes os ajudava discretamente. Mas vivia na paz, trilhando os rudes caminhos da obediência. Ao ser eleito, ele evoca em suas Memórias a reflexão que fez diante de Deus: Se a Providência me confia a autoridade suprema na Igreja, isso significa que devo buscar realizar meus projetos de renovação evangélica para o bem de todo o povo de Deus. Embora esses projetos não tenham sido do agrado de instâncias superiores a que sua missão de padre, bispo ou diplomata o havia submetido.

Então, ele retoma como pontífice os ideais que o animavam desde jovem padre, junto ao bispo de Bérgamo, Radini Tedeschi, aberto a uma pastoral popular e social. O pontificado de João XXIII é uma das maiores guinadas na história da Igreja, a busca de um evangelismo radical que já inspirava o coração desse grande discípulo de Cristo. Seu empenho, no decorrer de sua vida, era descobrir como atuaram sempre os grandes reformadores da Igreja. Assim, sendo nomeado Patriarca de Veneza, o cardeal Roncalli tomou São Carlos Borromeu como modelo na realização de um ministério colegial. Desse modelo, ele aprendeu, por exemplo, a lição da importância dos sínodos para renovar e ativar a vida da comunidade eclesial. A primeira coisa que fez à frente da Igreja foi convocar um sínodo para a diocese de Roma e um concílio ecumênico para a Igreja universal.

IHU On-Line – Em que contexto histórico o Papa João XXIII publicou a encíclica Pacem in Terris e quais as novidades apresentadas pelo documento?

Frei Carlos Josaphat – Esta encíclica foi publicada em 11 de abril de 1963, completando, ampliando e aprofundando a mensagem da encíclica Mater et Magistra de 15 de maio de 1961. Esta comemorava os 70 anos da encíclica Rerum Novarum de Leão XIII (15/05/1891). Pio XII tivera duas ocasiões de comemorar este primeiro documento, que tinha rejuvenescido a doutrina social da Igreja diante da crise social do capitalismo. Mas só consagrou a esses dois importantes aniversários duas breves mensagens radiofônicas, em 1941 e 1951.

João XXIII retoma o exemplo de Pio XI, que tinha dado o maior relevo ao quadragésimo aniversário da Rerum Novarum, realçando as contribuições e sugestões de Leão XIII, suas críticas ao capitalismo. Insistiu especialmente sobre suas propostas de reformas substanciais do sistema econômico. Pio XI ousava declarar a insuficiência do regime salarial e proclamar a oportunidade de promover a participação dos trabalhadores nos lucros e na administração das empresas. Foi pouco seguido em suas audácias. No entanto, essa encíclica Quadragesimo Anno, de 14 de maio de 1931, inspirou a dimensão social da Constituição brasileira de 1934, graças ao trabalho sobre a opinião púbica e sobre os políticos, empreendido sob a iniciativa de Alceu Amoroso Lima.

Imitando e superando o exemplo de Pio XI, João XXIII vai mais longe e mais fundo, procurando elaborar nas suas duas encíclicas uma espécie de suma de ética social, de autêntica inspiração evangélica e assumindo um humanismo integral e solidário. Isso porque ele sempre mantém o empenho de articular os valores evangélicos e humanos e de confrontá-los com a realidade do mundo nos anos 1960.

Melhor formulação ética

Assim, Mater et Magistra e Pacem in Terris constituem a melhor formulação ética da dimensão social do Evangelho, a qual se torna operacional pelo empenho de não ficar em uma elaboração teórica, abstrata. Mas, inaugurando uma análise dos sistemas industriais, econômicos, agrícolas, elas lançam uma grande luz sobre as raízes e causas das exclusões e desigualdades sociais.

A encíclica Pacem in Terris aborda os problemas do desenvolvimento e do subdesenvolvimento dos povos, de suas relações a serem conduzidas na base da justiça, da solidariedade e de uma participação de todas as nações na análise e nas decisões das questões e problemas mundiais.

A encíclica é muito bem ordenada, tendo a primeira parte consagrada à elaboração de uma ética pessoal e social, em torno e à luz dos quatro valores de base: a Verdade, a Liberdade, a Justiça e o Amor (ou a Solidariedade). Três vastas partes (da II a IV) formam uma síntese absolutamente original, mostrando como os princípios e os valores éticos se devem aplicar a cada nação, às relações entre as nações e na orientação e no governo mundial.

Os padres conciliares e seus assessores tinham nas mãos essa encíclica durante todo o Concílio Vaticano II, em cujo decurso foi elaborada a constituição pastoral Gaudium et Spes, promulgada no dia sete de dezembro de 1965. Essa constituição retoma, amplia e homologa com sua autoridade conciliar as grandes linhas da encíclica Pacem in Terris. A comemoração do jubileu de Vaticano II, especialmente da constituição Gaudium et spes, deve levar ao estudo cuidadoso das duas encíclicas sociais de João XXIII. Temos no ensino deste papa e do Vaticano II o ponto mais alto da doutrina social da Igreja, estendendo e clareando para o mundo moderno a dimensão social do Reino de Deus.

Note-se a colaboração harmoniosa dos papas mediante suas encíclicas, apontando o caminho para o maior de todos os concílios, na expressão de Paulo VI ao encerrar Vaticano II. Este papa escreveu sua primeira encíclica intitulada “Sobre a Igreja” (Ecclesiam Suam, 6 de agosto de 1964). Nela insistia sobre a compreensão da Igreja do diálogo e da comunhão. E essa encíclica vinha ao encontro da preocupação dos padres conciliares que preparavam a Constituição dogmática e fundamental, Lumen Gentium (4 de dezembro de 1964), centro e fonte das inovações evangélicas do Concílio.

IHU On-Line – Quais as repercussões políticas desta encíclica, considerando o contexto de guerra nuclear da época?

Frei Carlos Josaphat – A encíclica não só foi considerada como o “Testamento espiritual” do mais amável e benquisto dos pontífices, mas como a mensagem mais oportuna, mais sábia, mais operacional para o mundo moderno. Na verdade, os riscos e as ameaças nucleares eram o pico de toda uma cordilheira de incompreensões, de corrida pela indústria e comércio de armas, de guerrilhas e de guerras locais, da concorrência enlouquecida dos dois blocos que dilaceravam o mundo inteiro.

O papa consagra a IV Parte da encíclica à “Ordem da Comunidade Mundial”. E como termina cada uma das partes indicando os “Sinais dos tempos”, designando assim os acontecimentos que lembram a presença do Espírito agindo na história, conclui também a IV Parte apontando para a ONU, “Etapa importante”, sinal privilegiado dos tempos da esperança para uma nova humanidade. Esta encíclica foi acolhida com entusiasmo pela ONU, que comemorou, em 1973, de maneira solene e com estudos profundos o decênio do grande documento de João XXIII. Pacem in Terris inaugurou uma nova etapa nas relações da Igreja com o conjunto dos povos, fazendo esquecer, ao menos em parte, dolorosos desentendimentos do passado.

IHU On-Line – Nela menciona-se a necessidade da construção de uma autoridade política mundial. Qual a atualidade dessa ideia?

Frei Carlos Josaphat – O Concílio Vaticano II retoma com a maior insistência a necessidade, cada vez mais urgente, de uma ética mundial, de um direito e de um governo internacionais. A ONU tem voltado ao tema e muitos estudos da Unesco vão nesse sentido. Há problemas mundiais, cada vez mais relevantes, pedindo decisões e medidas de caráter mundial. É urgente universalizar verdadeiramente a ONU, acabando com prerrogativas e direitos privilegiados para os “Grandes” e democratizando a instituição, que deve ser a salvaguarda da democracia no mundo. Se o imperialismo econômico e político não desaparecer, é a humanidade que corre o risco de desaparecer. João XXIII e Vaticano II são as grandes vozes proféticas para a esperança do mundo.

IHU On-Line – Como esta encíclica repercutiu na Igreja brasileira?

Frei Carlos Josaphat – As duas encíclicas de João XXIII tiveram muita repercussão entre os movimentos populares, estudantis e boa parte da opinião pública. Eles se mobilizaram em torno do que, nos anos 1960, se chamavam as “reformas de base”, apoiando-se no ensino social da Igreja. Amadureceu a ideia de uma democracia social, respeitando e promovendo os direitos individuais e sociais, em oposição a todo golpe que rompesse com a marcha de democratização progressiva do país. Já ficou assinalado acima como, em 1934, a democratização e a entrada do direto social na constituição foram ajudadas por uma consciência social cristã despertada e sustentada pela doutrina da Igreja, condensada na encíclica Quadragesimo Anno. Algo semelhante, profundo e permanente se deu no processo de redemocratização após a ditadura de 1964. A influência da Pacem in Terris, preparada por Mater et Magistra, foi reforçada pelo Concílio Vaticano II e pela encíclica Populorum Progressio (26 de março de 1967) de Paulo VI.

Apesar dos avanços do economismo e do consumismo, do imperialismo dos monstros frios transnacionais, a inspiração social do Evangelho cresceu em nosso país e na América Latina sob o influxo da doutrina pontifícia e conciliar, difundida e aplicada pelo episcopado brasileiro e latino-americano. As Conferências dos Episcopados do Continente, movimentos como a Campanha da Fraternidade, têm acentuado a atualidade e dado um caráter operacional à dimensão social do Evangelho. Ele é pregado e testemunhado como fonte de salvação e de promoção de uma sociedade justa e solidária.

IHU On-Line – Qual a atualidade deste documento 50 anos depois?

Frei Carlos Josaphat – A mensagem desta encíclica, sua redação muito clara e precisa, seu estilo simples e direto, tornam sua leitura muitíssimo proveitosa, mais fácil e mesmo agradável para pessoas e movimentos de diferentes níveis culturais. As medidas e os projetos propostos em Pacem in Terris levam em conta a atualidade, mas não se particularizam nem se prendem às condições circunstanciais e contextuais do momento em que foi escrita. Mais do que outros documentos eclesiásticos, as encíclicas de João XXIII, especialmente Pacem in Terris, conseguem fazer a junção do Evangelho com a vida, convidando a analisar e compreender o mundo moderno com seus desafios, suas aspirações e seus desvios.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Frei Carlos Josaphat – A maior urgência, sobretudo para os cristãos, é descobrir ou intensificar a certeza na verdade evangélica: Deus é Amor, Deus ama mesmo este mundo que aí está. E nos confia a missão de tudo fazer para promover o Reino do Amor. É a mensagem da penúltima hora, proclamada nas encíclicas de João XXIII, no Concílio Vaticano II, especialmente em Gaudium et Spes, a que Paulo VI quis acrescentar sua encíclica “latino-americana” Populorum Progressio. Sem se desfazer dos outros, esses são os documentos mais densos, mais diretos e que melhor exprimem a urgência de nosso compromisso cristão diante da humanidade globalizada e pós-moderna.

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