10 Outubro 2022
Uma “profunda preocupação” pelo risco nuclear. A necessidade vital de "reabrir o diálogo para o bem dos ucranianos, dos russos, dos europeus". E a oportunidade de uma “grande manifestação apartidária para dar voz ao sentimento popular generalizado que expressa o desejo de paz”. Para Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio, é preciso recomeçar do apelo do papa aos presidentes russo e ucraniano lançado no último domingo.
“Vivemos uma grande, profunda preocupação. A Ucrânia está dilacerada e 6 ou 7 milhões de seus cidadãos fugiram de sua pátria. Os jovens russos também estão sofrendo com a guerra. Mas há mais: temos a sensação, e esperamos que seja apenas uma sensação, de estarmos no abismo de um confronto nuclear. Nunca estivemos nesta situação. Lembro-me, quando criança, do caso de Cuba, Krushev contra Kennedy.
Mas era uma situação muito diferente. Hoje esse risco nuclear parece permanente, é evocado, ameaçado. Muitos dizem que é apenas um fantasma, mas quem pode ter certeza? Eu me pergunto se estamos construindo uma perspectiva de futuro para a Ucrânia, para a Rússia, para a Europa e para o mundo. Ou nos deixamos arrastar por eventos de que ninguém tem um plano, mas nos encontramos em uma cadeia perversa de ação e reação. Esta é a grande e profunda preocupação compartilhada por muitos na Itália e no mundo”.
A entrevista com Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio e ex-ministro italiano, é de Luca Liverani, publicada por Avvenire, 09-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Como dar à política e à diplomacia um sinal forte para tentar colocar as partes envolvidas à mesa da paz?
Abolimos a palavra 'paz' do nosso horizonte. Conheço todas as dificuldades, a dureza russa, o decreto ucraniano contra quem negocia. Tudo ficou muito tenso. Mas acredito que é preciso ter como perspectiva futura um cessar-fogo e uma arrumação da situação. Pareceu-me muito importante o apelo do Papa do domingo passado porque reconhecia fortemente coisas que sinto, a começar pela violência da invasão russa.
O Papa Francisco pediu ao presidente russo, para o bem de seu povo, que enveredasse por um caminho de paz. Ao presidente ucraniano para se abrir ao diálogo. Uma posição que pode parecer utópica, mas é o objetivo a que devemos olhar, para além da fumaça da guerra. Mantendo o olhar fixo nesse objetivo, podemos buscar no presente caminhos viáveis que nos afastem de uma lógica de guerra e do abismo do conflito nuclear. Vamos recomeçar daquele Angelus.
Uma hipotética mesa da paz terá que acolher junto com Putin e Zelensky também a ONU, a Europa, os EUA e a China. O que a Itália pode fazer?
A mediação é difícil hoje. Tão difícil quanto necessária. Não sei imaginar por quais vias, muito menos o papel da Itália. Mas o que eu sei é que é preciso um mapa conceitual para enfrentar esses problemas. É preciso restituir um papel à política internacional.
E aqui todos devem desempenhar o seu papel, dos Estados Unidos à França, da União Europeia à China. É preciso inverter a visão, partir do objetivo que é preciso pôr um fim a esse conflito. A diplomacia me parece atrapalhada, mas é preciso criar uma consciência e uma cultura de paz porque existe essa vontade em muitas partes do mundo. Está entre as pessoas.
Aqueles que pedem paz, no entanto, são frequentemente acusados de querer se render a Putin.
A paz não é de forma alguma compartilhar o projeto russo e abandonar os ucranianos. Que isso seja claro.
A Ucrânia precisa de paz, mas também os povos da Rússia e da Europa. Gostaria que de maneira forte, mas sóbria e sem protagonismos, se expressasse aquele desejo de paz que está na base de nossa sociedade, é uma vontade popular.
Para legitimar e renovar o compromisso com a paz. Esse é o significado das palavras proferidas pelo presidente Sergio Mattarella no dia 4 de outubro em Assis.
Como uma vontade popular generalizada poderia se expressar? Em uma grande manifestação de rua?
Acredito que devemos encontrar uma linguagem forte – nem aventureira, nem provocativa – e séria. Uma grande manifestação popular apartidária, que represente o sentimento das pessoas, a preocupação que hoje muitas pessoas expressam de maneira individual. Mas esse sentimento básico existe, entre a preocupação e o pedido de paz.
E expressou-se, por exemplo, no acolhimento generoso dos refugiados ucranianos. Certamente este momento futuro terá de se basear no sentimento expresso e partilhado, ao qual devemos dar voz. Muitos sentimentos individuais devem encontrar uma plataforma, uma expressão comum. Manifestar significa medir os próprios sentimentos contra a realidade e os problemas, mas também unir-se aos outros.
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“Pedir o diálogo não é utopia.” Entrevista com Andrea Riccardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU