03 Agosto 2022
“A reconciliação é um processo incerto sem resultado predeterminado. Assim como o ministério de Jesus aparentemente terminou em fracasso em sua execução, também a reconciliação, mesmo quando empreendida autenticamente, pode ser vista como um fracasso. Afinal, as vítimas, sobreviventes e portadores do trauma não são monolíticos. As respostas ao pedido de desculpas inicial do Papa Francisco em 25 de julho foram tão variadas quanto os povos que foram prejudicados”, escreve Kevin P. Considine, diretor do Robert J. Schreiter Institute for Precious Blood Spirituality na Catholic Theological Union, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 02-08-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
“Eu fui um homem zangado na maior parte da minha vida porque a sociedade não entendia nossos sobreviventes... quando você é abusado você só pensa nisso. Você pensa nisso sem parar. O perdão não é uma honraria do perpetrador”.
Amém! Essas palavras vieram de um sobrevivente de uma escola residencial no Canadá. Elas foram gravadas por Miles Morrisseau, um cidadão da nação Métis e um correspondente especial para ICT (antiga Indian Country Today). E isso é parte do que o Papa Francisco tentou demonstrar na sua jornada penitencial ao Canadá: reconciliação não é um passe de “saída da cadeia”. Reconciliação é um desafio doloroso, bagunçado e uma jornada imprevisível.
Francisco escutou o chamado para reconciliação. O pontífice deu um exemplo para todos os cristãos, católicas e demais denominações, em sua jornada de penitência pelos pecados de muitos dos nossos ancestrais espirituais, que estão ensinando que o discipulado e a colonização eram compatíveis.
É excessivamente raro que o líder de uma grande instituição abandone a maior instituição transnacional no mundo, tentando responder a um chamado à reconciliação iniciado pelos sobreviventes de um terrível mal perpetrado por essa instituição.
Mais raro, é um líder religioso que responde livremente aos chamados com uma autêntica jornada de contrição que inclui falar a verdade, aceitar a culpa e implorar perdão em lugares significativos para os sobreviventes e as vítimas dos horríveis pecados que gerações passadas carregaram em nome de Deus. O mesmo pecado – genocídio cultural, desmantelamento de famílias, abuso de jovens – cujos efeitos sobre as suas vítimas geraram séculos de trauma intergeracional dentro dos povos das First Nations, Inuit e Métis.
Para aqueles de nós que assistiram à viagem do papa à distância, entendível o ceticismo. Nós temos visto tentativas sem entusiasmo de reconciliação por parte de muitos bispos nos escândalos de abusos sexuais. Para aqueles de nós que estão assistindo à distância, então, como sabemos que o papa é uma tentativa autêntica de reconciliação? Como sabemos que ele não está apenas participando do controle de danos ou da “gestão da marca”?
Robert J. Schreiter, Missionário do Preciosíssimo Sangue, teólogo e pacificador de abençoada memória, delineou cinco características distintas da reconciliação da tradição cristã. Quando esses cinco estão presentes de alguma forma, pode ser interpretado como uma tentativa autenticamente cristã de trilhar o caminho da reconciliação.
Primeiro, a reconciliação é a obra de Deus da qual somos chamados a participar.
Deus é o autor e motor, e os ministros da reconciliação procuram harmonizar-se com a forma como o Espírito de Deus se move. Em seu notável discurso de 25 de julho em Maskwacis, Francisco invocou a ajuda de Deus, o perdão e pediu orações para a viagem. No dia seguinte, ele aprofundou essa determinação a essa verdade em suas observações no local de peregrinação, Lac Ste. Anne (o lugar sagrado que os Dakota chamam de Waka Mne, ou “Água Benta”, e os Cree chamam Manitou Sakahigan, ou Lago dos Espíritos).
Em segundo lugar, a reconciliação começa com as vítimas.
É improvável que os perpetradores busquem a verdadeira reconciliação porque detêm o poder e temem muito o que podem perder. Portanto, Deus começa com a cura das vítimas, a restauração de sua humanidade violada e sua capacitação para visualizar e criar um mundo diferente. Eles têm poder e agência no processo. Francisco aceitou o convite de representantes das Frist Nations, Inuit e Métis para o Canadá e vemos que Deus começou com as vítimas.
Terceiro, Deus molda uma nova criação de vítimas e malfeitores.
O passado não pode ser mudado e não deve ser esquecido. Através do movimento do Espírito de Deus, as vítimas aprendem a lembrar de uma maneira diferente, na qual o domínio da violência do malfeitor não controla mais suas vidas. Eles se tornam um sobrevivente com cicatrizes recentes, em vez de uma vítima com uma ferida mortal. Sua relação com o malfeitor é transformada.
Quarto, este processo de reconciliação encontra seu lar narrativo no Mistério Pascal – a vida, morte e ressurreição de Jesus.
Os sobreviventes aprendem a unir sua própria dor e sofrimento com o do Jesus torturado e crucificado, seguem sua descida ao inferno e a tudo que não é Deus, e confiam no Espírito de Deus para trazer uma espécie de ressurreição. A história da vítima torna-se parte da história de Deus na Paixão de Jesus. Essa integração das “pequenas histórias” das vítimas e sobreviventes na própria história de Deus muitas vezes precipita a cura das memórias e um novo significado que surge das experiências traumáticas que podem levar a uma nova missão na vida. Isso não é algo que podemos observar de longe.
Quinto, a reconciliação sempre será fragmentária e inacabada até que Deus seja “tudo em todos” no final de todas as coisas.
É um processo de espiritualidade mais do que um plano ou estratégia bem administrado. Tem resultados reais e a cura realmente ocorre. Mas as cicatrizes dos sobreviventes, como as feridas de Cristo Ressuscitado, são indeléveis. Eles não desaparecem, não são esquecidos, mas podem se transformar em feridas cicatrizantes, mesmo que sejam reabertas involuntariamente às vezes por um gatilho ou causa conhecido ou desconhecido. Um sobrevivente é uma pessoa reconciliada que progrediu no processo de cura e, ao fazê-lo, muitas vezes recebe uma comissão para ajudar na cura de outras pessoas.
A orientação para o futuro é importante porque não há retorno ao status quo ante antes do dano ser infligido. O colonialismo, a tentativa de genocídio cultural e os males específicos dos internatos são fatos da história. O tempo não pode voltar atrás para desfazer os pecados do passado.
Mais uma vez, a reconciliação é um processo incerto sem resultado predeterminado. Assim como o ministério de Jesus aparentemente terminou em fracasso em sua execução, também a reconciliação, mesmo quando empreendida autenticamente, pode ser vista como um fracasso. Afinal, as vítimas, sobreviventes e portadores do trauma não são monolíticos. As respostas ao pedido de desculpas inicial do papa em 25 de julho foram tão variadas quanto os povos que foram prejudicados.
A reportagem de Morisseau no ICT ofereceu uma variedade de respostas. Para alguns líderes, como Wilton Littlechild, chefe Cree e ex-grande chefe da Confederação do Tratado Six First Nations, que é ele próprio um sobrevivente de escolas residenciais e que ouviu o testemunho de centenas de sobreviventes enquanto servia como membro da organização canadense Comissão da Verdade e Reconciliação, o pedido de desculpas do papa em solo canadense foi importante, necessário e poderia abrir a porta para uma cura real para inúmeros povos das First Nations, Inuit e Métis.
Para outros líderes, como a chefe nacional da Assembleia das First Nations, RoseAnne Archibald, foi um começo bem-vindo, mas insuficiente. O papa não renunciou à Doutrina do Descobrimento do século XV, que dava a justificativa teológica católica para a violência colonial, e o pedido de desculpas parecia vago. Ela observou: “Eu sei que esse hoje é sobre perdão para algumas pessoas, e há pessoas que vem com amor e perdão em seus braços, e há outras pessoas que não se sentem bem o bastante para isso hoje. Eu sou uma destas pessoas”.
Muitos outros tiveram reações diferentes. A chefe Rosanne Casimir do Tk'emlúps te Secwépemc, anteriormente conhecido como tribdo indígena Kamloops, observou: “voltar aqui, e ter um pedido de desculpas mais longo e significativo, foi definitivamente algo que realmente ressoou, porque ele elaborou sobre o colonialismo. Ele falou sobre arrependimento e remorso absolutos e alguns passos significativos no futuro”.
Finalmente, Morisseau escreveu: “Sandi Harper, de Saskatoon, Saskatchewan, que participou do evento papal em homenagem à sua falecida mãe, uma ex-aluna de escola residencial, disse que a cura levará tempo. Alguns povos indígenas ainda não estão prontos para a reconciliação. ‘É algo que é necessário, não apenas para que as pessoas ouçam, mas para que a igreja seja responsável’, disse ela. ‘Só precisamos dar às pessoas tempo para se curarem. Vai levar muito tempo’”.
No rescaldo de um grande mal, não existe um remédio que sirva para todos. As reações das vítimas, sobreviventes, suas famílias e seus povos foram e continuarão diversos. É por isso que o trabalho de Schreiter é útil aqui. O resultado será o trabalho contínuo de Deus e permanecerá ambíguo para muitos, especialmente para quem está de fora observando o processo. A clareza não é uma garantia porque a reconciliação é mais uma espiritualidade do que uma estratégia cujos efeitos podem ser quantificados. A reconciliação é a obra de Deus da qual somos chamados a participar.
Uma compreensão cristã da reconciliação abrange as vítimas, suas famílias, comunidades e redes de relacionamentos. Então, eventualmente, se estende aos malfeitores, cúmplices, espectadores e toda a criação e gerações subsequentes. Para os cristãos, o processo penoso e incerto é cristalizado na narrativa no mistério pascal – a vida, morte e ressurreição de Jesus.
Com isso em mente, a peregrinação penitencial de Francisco é uma maravilha. A promessa de reconciliação é vasta e precária. Então, vamos nos manter todos em oração. E que Francisco siga o Espírito de Deus para que a cura ocorra e o caminho realmente dê frutos.
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O pedido de desculpas do Papa Francisco aos indígenas canadenses abriu a porta para a reconciliação. - Instituto Humanitas Unisinos - IHU