Clínica de Direitos Humanos: novas formas de apreender o Direito. Entrevista especial com Jocelyn Getgen Kestenbaum

População da minoria Yazidi foge de ataques do Estado Islâmico no norte do Iraque, aumentando o número imigrantes e refugiados | Foto: Anistia Internacional

Por: João Vitor Santos e Patricia Fachin | Tradução: Evlyn Zilch, Natalia F. dos Santos e Wagner F. de Azevedo | 03 Julho 2019

Enquanto jovens acadêmicos de Direito estavam enfurnados em salas de aula ou bibliotecas, tentando encaixar um cipoal de peças legais em casos hipotéticos e sonhando com togas e tribunais, centenas de pessoas tinham seus Direitos Fundamentais violados. Foi diante dessa realidade que grupos começaram a pensar em aproximar esses dois mundos através das chamadas Clínicas de Direitos Humanos. “As clínicas surgiram em grande parte nos anos 1960 e 1970, a era dos direitos civis e da justiça social nos Estados Unidos, quando escolas de Direito determinaram a necessidade de ensinar técnicas de advocacia, enquanto, ao mesmo tempo, atendem às necessidades legais de pessoas de baixa renda ou com outras vulnerabilidades sociais”, explica a professora Jocelyn Getgen Kestenbaum, uma das referências internacionais no tema. Assim, as clínicas visam fornecer uma espécie de assessoramento jurídico a quem não pode pagar, agindo diretamente como parte ou por meio de um grupo de técnicos na elaboração de relatórios e compilações de dados que possam influir nas decisões judiciais.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Jocelyn destaca a importância da atuação das clínicas tanto como forma de preservar e assegurar os direitos humanos quanto de assegurar uma formação mais qualificada de jovens estudantes de Direito, pois o trabalho “tem sido usada para ensinar estudantes sobre a prática da lei, trabalhando em casos que promovam e tenham como objetivo a justiça social”. “A defesa dos direitos humanos na qual a clínica se envolve é para a prevenção de crimes de atrocidades (crimes em guerras, crimes contra a humanidade, genocídio e agressão)”, acrescenta.

Sobre a operacionalidade, a professora destaca que normalmente tem trabalhado com “avisos prévios e no enfrentamento dos riscos aos direitos humanos de crimes de atrocidade, protegendo os migrantes forçados que fogem dessa situação e na reconstrução após as atrocidades, buscando a responsabilização e justiça e a execução de leis pós-atrocidades”. “Por exemplo, minha clínica trabalhou para fornecer amicus curiae (do latim “amigo da corte”) ao Tribunal Constitucional Equatoriano para derrubar decretos executivos prejudiciais que limitam os direitos de refugiados de buscarem o status de refugiado”, exemplifica. Segundo a professora, o trabalho da Clínica também foi importante no caso do assassinato de Ignacio Ellacuría e outros cinco padres jesuítas, da governanta da residência e de sua filha, em El Salvador, no ano de 1989, ajudando “a coletar provas e extraditar oficiais militares para julgamentos criminais na Espanha”.

Jocelyn também destaca que as práticas das clínicas já vêm sendo empregadas na realidade brasileira. “Especialmente no que diz respeito aos direitos indígenas, direitos dos afro-brasileiros, defensores dos direitos humanos etc. Essas populações vulneráveis estão enfrentando grandes violações de seus direitos humanos pelo Estado e por atores privados que o Estado não controla”, pontua. Para a professora, os maiores desafios para o emprego das clínicas de Direitos Humanos é assegurar formas de financiamento para iniciar os trabalhos. “Outros desafios incluem mudar a cultura educacional jurídica e dar aos professores de Direito a liberdade de experimentação com novas ferramentas pedagógicas em suas salas de aula”, acrescenta.

Jocelyn Getgen Kestenbaum (Foto: Cornell Law School)

Jocelyn Getgen Kestenbaum é professora assistente de Direito Clínico, associada à Clínica de Direitos Humanos e Genocídio desde 2013, onde supervisiona projetos clínicos em questões de justiça criminal internacional. Também é diretora da Benjamin B. Ferencz Human Rights and Atrocity Prevention Clinic e diretora do Cardozo Law Institute in Holocaust and Human Rights. Ela já atuou como diretora de programa da Virtue Foundation, uma organização sem fins lucrativos que implementa projetos de desenvolvimento sustentável baseados em direitos em saúde, educação, justiça e empoderamento de mulheres em todo o mundo. Com ampla experiência na área de Direitos Humanos, supervisionou projetos internacionais de litígios para garantir os direitos de educação de afrodescendentes e povos indígenas na Colômbia. Ainda conduziu pesquisas originais em vários países da América Latina, África e Ásia, e escreveu artigos premiados, examinando as violações de saúde reprodutiva e direitos humanos da completa proibição do aborto na Nicarágua, bem como os programas de esterilização forçada do Peru durante o período interno.

Na última segunda-feira, 01-07, numa parceria entre o Instituto Humanitas Unisinos - IHU e o Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, Jocelyn esteve no campus São Leopoldo da Unisinos, proferindo a palestra Advocacy e Clínica de Direitos Humanos [veja a íntegra da conferência no final da entrevista].

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - No que consiste o conceito de “Clinical law”? Como a “Clinical law” vem sendo empregada no mundo?

Jocelyn Getgen Kestenbaum –Clinical law” é um método experiencial de educação jurídica no qual estudantes assumem clientes “ao vivo/verdadeiramente” e trabalham em casos atuais sob supervisão direta de um membro da faculdade. “Clinical law” tem sido usada para ensinar estudantes sobre a prática da lei, trabalhando em casos que promovam e tenham como objetivo a justiça social. Isso auxilia clientes que, de outra forma, não teriam assistência legal. Os professores da clínica ensinam a lei e as habilidades necessárias para estudantes de Direito tornarem-se profissionais prontos para prática.

IHU On-Line - Como podemos compreender o conceito de “advocacy”? Como essa prática é exercida nos Estados Unidos?

Jocelyn Getgen Kestenbaum – Advocacy é o trabalho de advogar legalmente pela causa de um cliente ou para solucionar um problema legal de um cliente. Nos Estados Unidos, nós praticamos advocacy de muitas formas, por meio de estratégias litigiosas e não litigiosas.

IHU On-Line - Qual a origem da “Clinical law” e como ela se estabelece no sistema jurídico?

Jocelyn Getgen Kestenbaum – As clínicas surgiram em grande parte nos anos 1960 e 1970, a era dos direitos civis e da justiça social nos Estados Unidos, quando escolas de Direito determinaram a necessidade de ensinar técnicas de advocacia, enquanto, ao mesmo tempo, atendem às necessidades legais de pessoas de baixa renda ou com outras vulnerabilidades sociais. As clínicas operam dentro das escolas de Direito como um escritório de advocacia que presta serviços às comunidades.

IHU On-Line - Como se dá a relação das clínicas com o sistema jurídico em geral?

Jocelyn Getgen Kestenbaum – As clínicas, frequentemente, assumem casos que impactam de forma estratégica o desenvolvimento da lei para remediar injustiças, bem como melhorar o acesso à Justiça e a sua administração no sistema legal.

IHU On-Line - Como o trabalho de “advocacy” se associa à forma de atuação da “Clinical law”?

Jocelyn Getgen Kestenbaum – Isso depende do caso e da necessidade particular do cliente. Poderia ser desde advocacia da imprensa até advocacia legislativa, litígios ou assistência em litígios estratégicos (relatórios de peritos, amicus briefs [subsídios aos tribunais] etc.).

IHU On-Line - Que profissionais compõem uma equipe de “Clinical law”? Como diferentes áreas se articulam nessa experiência?

Jocelyn Getgen Kestenbaum – A “Clinical law” inclui um corpo docente licenciado para exercer a área de Direito em que a clínica atua, bem como estudantes de Direito que trabalham em equipe como consultores para seus clientes.

IHU On-Line - A “Clinical law” tem sido empregada no campo dos Direitos Humanos. Que contribuições essa prática pode trazer ao campo? E como é desenvolvida? Pode nos dar exemplos de como isso tem sido feito?

Jocelyn Getgen Kestenbaum - As clínicas fizeram importantes contribuições para o campo dos Direitos Humanos em todo o país, de várias maneiras. Por exemplo, minha clínica trabalhou para fornecer amicus curiae (do latim “amigo da corte”) ao Tribunal Constitucional Equatoriano para derrubar decretos executivos prejudiciais que limitam os direitos de refugiados de buscarem o status de refugiado. Além disso, ajudou a coletar provas e extraditar oficiais militares para julgamentos criminais na Espanha, acusados pelo assassinato de seis padres jesuítas, sua governanta e a filha dela, em El Salvador em 1989.

IHU On-Line - Quais são os limites para atuação da “Clinical law” no sistema jurídico?

Jocelyn Getgen Kestenbaum - Às vezes é difícil encaixar “casos do mundo real” no período do semestre ou do ano acadêmico para que os alunos tenham uma experiência significativa.

IHU On-Line - Quais os maiores desafios para o desenvolvimento do trabalho numa “Clinical law”?

Jocelyn Getgen Kestenbaum – Os estudantes chegam à clínica com diversos níveis de experiência e habilidades, e devem trabalhar juntos, de forma colaborativa, em casos que frequentemente têm altos riscos. O supervisor deve ter certeza de que esses alunos estão aprendendo as habilidades críticas de advocacia e fazendo todo o possível pelos clientes.

IHU On-Line - Quem são os “clientes” e como é a relação entre eles e os profissionais da clínica?

Jocelyn Getgen Kestenbaum – Os clientes podem ser indivíduos que sofreram violações de direitos humanos (ou familiares de vítimas de violações de direitos), especialistas no campo dos Direitos Humanos, ou podem ser clientes de natureza organizacional, como uma Organização Não Governamental - ONG ou outra instituição que precise de assistência jurídica em litígios ou defesa dos direitos humanos.

IHU On-Line - A senhora integra a Clínica de Direitos Humanos e Genocídio. No que consiste esse grupo e como tem sido sua atuação?

Jocelyn Getgen Kestenbaum – A defesa dos direitos humanos na qual a clínica se envolve é para a prevenção de crimes de atrocidades (crimes em guerras, crimes contra a humanidade, genocídio e agressão). Geralmente nós trabalhamos com avisos prévios e no enfrentamento dos riscos aos direitos humanos de crimes de atrocidade, protegendo os migrantes forçados que fogem dessa situação e na reconstrução após as atrocidades, buscando a responsabilização e justiça e a execução de leis pós-atrocidades.

IHU On-Line - Quais as experiências mais produtivas que a senhora já acompanhou na Clínica de Direitos Humanos e Genocídio?

Jocelyn Getgen Kestenbaum – Conduzir avisos prévios de avaliações de risco e responder aos riscos de atrocidades em vários contextos; buscar reparações e outras formas de responsabilização e justiça para vítimas sobreviventes de atrocidades; e construir um Estado de Direito para futura prevenção desses crimes.

IHU On-Line - Como a “Clinical law” vem sendo vista em outros países?

Jocelyn Getgen Kestenbaum – Muitos outros países estão começando a ver vantagens em educar estudantes de Direito para serem profissionais prontos para a prática. Nos últimos dois anos, tive a oportunidade de trabalhar com professores de Direito brasileiros e suíços, a fim de pensarmos maneiras de integrar o ensino clínico em seus currículos nas escolas de Direito.

IHU On-Line - De que forma esse trabalho da “Clinical law” pode ser empregado em realidades como a brasileira?

Jocelyn Getgen Kestenbaum – Nós já estamos empregando modelos clínicos no contexto brasileiro, especialmente no que diz respeito aos direitos indígenas, direitos dos afro-brasileiros, de defensores dos direitos humanos etc. Essas populações vulneráveis estão enfrentando grandes violações de seus direitos humanos pelo Estado e por atores privados que o Estado não controla.

IHU On-Line - Quais os desafios para empregar a “Clinical law” em contextos como o brasileiro?

Jocelyn Getgen Kestenbaum – Ter o financiamento para começar a clínica é provavelmente o maior desafio. Outros desafios incluem mudar a cultura educacional jurídica e dar aos professores de Direito a liberdade de experimentação com novas ferramentas pedagógicas em suas salas de aula.

 

 

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