“Escalada militar dos EUA contra a Rússia não terá vencedores. A derrota pode ser da própria espécie.” Entrevista com Noam Chomsky

Guerra na Ucrânia | Foto: Vatican News

29 Abril 2022

 

A invasão da Ucrânia pela Rússia pegou grande parte do mundo de surpresa. Trata-se de um ataque não provocado e injustificado que entrará para a história como um dos maiores crimes de guerra do século XXI, argumenta Noam Chomsky nesta entrevista exclusiva para o Truthout.

 

Considerações políticas, como as citadas pelo presidente russo, Vladimir Putin, não podem ser usadas como argumentos para justificar o lançamento de uma invasão contra uma nação soberana. Diante dessa terrível invasão, porém, os Estados Unidos devem optar por uma diplomacia urgente em vez da escalada militar, pois esta última pode ser uma “sentença de morte para a espécie, sem nenhum vencedor”, diz Chomsky.

 

Noam Chomsky é reconhecido internacionalmente como um dos mais importantes intelectuais vivos. Sua estatura intelectual tem sido comparada à de Galileu, Newton e Descartes, pois sua obra teve uma enorme influência em uma grande variedade de áreas de investigação acadêmica e científica, incluindo a Linguística, a Lógica e a Matemática, as Ciências da Computação, a Psicologia, os Estudos de Mídia, a Filosofia, a Política e as Relações Internacionais.

 

Ele é autor de cerca de 150 livros e recebeu dezenas de prêmios de grande prestígio, incluindo o Prêmio Sydney da Paz e o Prêmio de Kyoto (o equivalente japonês do Prêmio Nobel), e dezenas de doutorados honoris causa das universidades mais renomadas do mundo. Chomsky é professor emérito do MIT e atualmente professor laureado da Universidade do Arizona.

 

A entrevista foi concedida a CJ Polychroniou, autor de dezenas de livros, cientista político, economista político e jornalista que lecionou e trabalhou em várias universidades e centros de pesquisa na Europa e nos Estados Unidos.

 

O diálogo foi publicado por Truthout, 01-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis a entrevista.

 

Noam, a invasão da Ucrânia pela Rússia pegou a maioria das pessoas de surpresa, enviando ondas de choque a todo o mundo, embora houvesse muitas indicações de que Putin ficou bastante agitado com a expansão da Otan para leste e com a recusa de Washington a levar a sério a sua “linha vermelha” de exigências de segurança relativas à Ucrânia. Por que você acha que ele decidiu lançar uma invasão neste momento?

 

Antes de passarmos à questão, devemos esclarecer alguns fatos que são incontestáveis. O mais crucial é que a invasão russa da Ucrânia é um grande crime de guerra, ao lado da invasão estadunidense do Iraque e da invasão de Hitler-Stalin à Polônia em setembro de 1939, para citar apenas dois exemplos salientes. Sempre faz sentido buscar explicações, mas não há nenhuma justificativa, não há nenhum atenuante.

 

Voltando agora à questão, há muitas declarações extremamente confiantes sobre a mente de Putin. A história habitual é que ele está preso em fantasias paranoicas, agindo sozinho, cercado por cortesãos bajuladores, de um tipo familiar aqui nos Estados Unidos naquilo que resta do Partido Republicano perambulando por Mar-a-Lago em busca da bênção do Líder.

 

A enxurrada de injúrias pode ser precisa, mas talvez outras possibilidades devam ser consideradas. Talvez Putin tenha querido dizer o que ele e seus associados vêm dizendo em alto e bom som há anos. Pode ser, por exemplo, que, “uma vez que a principal exigência de Putin é a garantia de que a Otan não aceitará mais membros, e especificamente não a Ucrânia nem a Geórgia, obviamente não haveria nenhuma base para a crise atual, se não tivesse havido nenhuma expansão da aliança após o fim da Guerra Fria, ou se a expansão tivesse ocorrido em harmonia com a construção de uma estrutura de segurança na Europa que incluísse a Rússia”.

 

 

O autor dessas palavras é o ex-embaixador dos Estados Unidos na Rússia, Jack Matlock, um dos poucos especialistas sérios em Rússia no corpo diplomático dos Estados Unidos, que escreveu isso pouco antes da invasão. Ele prossegue concluindo que a crise “pode ser facilmente resolvida pela aplicação do bom senso. (...) De acordo com qualquer padrão de bom senso, é do interesse dos Estados Unidos promover a paz, e não o conflito. Tentar separar a Ucrânia da influência russa – o objetivo declarado daqueles que agitavam as “revoluções coloridas” – era uma tarefa tola e perigosa. Será que esquecemos tão rapidamente a lição da crise dos mísseis cubanos?”.

 

Matlock dificilmente está sozinho nisso. Quase as mesmas conclusões sobre as questões subjacentes estão acessíveis nas memórias do chefe da CIA, William Burns, outro dos poucos especialistas autênticos em Rússia. A posição ainda mais forte do [diplomata] George Kennan tem sido citada amplamente, embora tardiamente, apoiada também pelo ex-secretário de Defesa William Perry e fora das fileiras diplomáticas pelo notável estudioso de relações internacionais John Mearsheimer e inúmeras outras figuras que dificilmente poderiam ser mais mainstream.

 

Nada disso é obscuro. Documentos internos dos Estados Unidos, divulgados pelo WikiLeaks, revelam que a oferta imprudente de Bush II à Ucrânia para se juntar à Otan imediatamente suscitou fortes advertências da Rússia de que a ameaça militar em expansão não poderia ser tolerada. De modo compreensível.

 

Podemos, incidentalmente, notar o estranho conceito de “esquerda” que aparece regularmente nas críticas à “esquerda” por um ceticismo insuficiente sobre a “linha do Kremlin”.

 

O fato é que, para ser honesto, não sabemos por que a decisão foi tomada, mesmo que tenha sido tomada apenas por Putin ou pelo Conselho de Segurança russo, no qual ele desempenha um papel de liderança. Há, no entanto, algumas coisas que sabemos com confiança razoável, incluindo o registro revisado com alguns detalhes por aqueles que acabamos de citar, que estiveram em ambientes elevados dentro do sistema de planejamento. Em suma, a crise vem se formando há 25 anos, quando os Estados Unidos rejeitaram desdenhosamente as preocupações de segurança russas, em particular as suas claras linhas vermelhas: a Geórgia e especialmente a Ucrânia.

 

Há boas razões para acreditar que esta tragédia poderia ter sido evitada, até o último minuto. Já discutimos isso antes, repetidamente. Quanto ao motivo pelo qual Putin lançou a agressão criminosa agora, podemos especular o quanto quisermos. Mas o pano de fundo imediato não é obscuro – ele é evitado, mas não contestado.

 

É fácil entender por que aqueles que sofrem com o crime podem considerar uma indulgência inaceitável o fato de perguntar por que ele aconteceu e se poderia ter sido evitado. É compreensível, mas equivocado. Se quisermos responder à tragédia de maneira a ajudar as vítimas e a evitar catástrofes ainda piores que se avizinham, é sábio e necessário aprender o máximo que pudermos sobre o que deu errado e como a rota poderia ter sido corrigida. Gestos heroicos podem ser satisfatórios. Mas não são úteis.

 

Como muitas vezes ocorreu antes, lembro-me de uma lição que aprendi há muito tempo. No final dos anos 1960, eu participei de uma reunião na Europa com alguns representantes da Frente de Libertação Nacional do Vietnã do Sul (“Viet Cong”, no jargão estadunidense). Foi durante o breve período de intensa oposição aos horrendos crimes dos Estados Unidos na Indochina. Alguns jovens estavam tão enfurecidos que sentiram que apenas uma reação violenta seria uma resposta apropriada às monstruosidades que se desenrolavam: quebrar janelas nas ruas principais, bombardear um centro do Corpo de Treinamento de Oficiais da Reserva. Qualquer coisa menos do que isso equivalia a cumplicidade com os terríveis crimes. Os vietnamitas viam as coisas de forma muito diferente. Eles se opunham fortemente a todas essas medidas. Eles apresentavam o seu modelo de protesto eficaz: algumas mulheres de pé em oração silenciosa junto aos túmulos dos soldados estadunidenses mortos no Vietnã. Eles não estavam interessados naquilo que fazia com que os opositores estadunidenses da guerra se sentissem justos e honrados. Eles queriam sobreviver.

 

É uma lição que eu ouço muitas vezes de uma ou outra forma das vítimas de sofrimentos hediondos no Sul global, o principal alvo da violência imperial. É uma lição que devemos levar a sério, adaptada às circunstâncias. Hoje, isso significa um esforço para entender por que essa tragédia ocorreu e o que poderia ter sido feito para evitá-la e aplicar essas lições àquilo que vem pela frente.

 

A questão é profunda. Não há tempo para rever esse tema crucialmente importante aqui, mas a reação à crise real ou imaginária repetidamente tem sido recorrer às armas em vez do ramo de oliveira. É quase um reflexo, e as consequências geralmente são terríveis – para as vítimas tradicionais. Sempre vale a pena tentar entender e pensar um ou dois passos à frente sobre as prováveis consequências da ação ou da inação. São truísmos, é claro, mas vale a pena reiterá-los, porque são facilmente descartados em tempos de paixões justificadas.

 

As opções que restam após a invasão são sombrias. A menos ruim é o apoio às opções diplomáticas que ainda existem, na esperança de se chegar a um resultado não muito distante daquele que era muito provável de ser alcançado há alguns dias: a neutralização da Ucrânia ao estilo austríaco, alguma versão do federalismo de Minsk II. Isso é muito mais difícil de se alcançar agora. E, necessariamente, com uma saída de emergência para Putin, ou os resultados serão ainda mais terríveis para a Ucrânia e para todos os outros, talvez de uma forma quase inimaginável.

 

Algo muito distante da justiça. Mas quando a justiça prevaleceu nos assuntos internacionais? É necessário rever o terrível registro mais uma vez?

 

 

Goste-se ou não, as escolhas agora se reduzem a um péssimo resultado que recompensa Putin, em vez de puni-lo pelo ato de agressão – ou pela forte possibilidade de uma guerra terminal. Pode parecer satisfatório levar o urso para um canto, de onde ele atacará por desespero. Mas dificilmente é algo sábio.

 

Enquanto isso, devemos fazer tudo o que pudermos para fornecer um apoio significativo para aqueles que defendem corajosamente a sua pátria contra agressores cruéis, para aqueles que escapam dos horrores e para os milhares de russos corajosos que se opõem publicamente ao crime do seu Estado com um grande risco pessoal, uma lição para todos nós.

 

E também devemos tentar encontrar formas de ajudar uma classe muito mais ampla de vítimas: toda a vida sobre a Terra. Essa catástrofe ocorreu em um momento em que todas as grandes potências, na verdade todos nós, devemos trabalhar juntos para controlar o grande flagelo da destruição ambiental que já está cobrando um preço terrível, com muitos efeitos piores em breve, a menos que grandes esforços sejam empreendidos rapidamente. Para esclarecer o óbvio, o IPCC acaba de divulgar a mais recente e de longe a mais ameaçadora das suas avaliações regulares de como estamos caminhando para a catástrofe.

 

Enquanto isso, as ações necessárias estão paralisadas, até mesmo revertidas, à medida que recursos extremamente necessários são dedicados à destruição, e o mundo agora está a caminho de expandir o uso de combustíveis fósseis, incluindo o mais perigoso e convenientemente abundante deles, o carvão.

 

Uma conjuntura tão grotesca dificilmente poderia ser concebida por um demônio malévolo. Isso não pode ser ignorado. Cada momento importa.

 

A invasão russa viola claramente o Artigo 2(4) da Carta da ONU, que proíbe a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial de outro Estado. No entanto, Putin procurou oferecer justificativas legais para a invasão durante o seu discurso do dia 24 de fevereiro, e a Rússia cita Kosovo, Iraque, Líbia e Síria como evidências de que os Estados Unidos e seus aliados violam a lei internacional repetidamente. Você pode comentar as justificativas legais de Putin para a invasão da Ucrânia e o status do direito internacional no pós-Guerra Fria?

 

Não há nada a dizer sobre a tentativa de Putin de oferecer uma justificativa legal para a sua agressão. Seu mérito é zero.

 

É claro que é verdade que os Estados Unidos e seus aliados violam a lei internacional sem nem piscar os olhos, mas isso não atenua os crimes de Putin. Kosovo, Iraque e Líbia, no entanto, tiveram implicações diretas para o conflito na Ucrânia.

 

 

A invasão do Iraque foi um exemplo clássico dos crimes pelos quais os nazistas foram enforcados em Nuremberg, pura agressão não provocada. E um soco na cara da Rússia.

 

No caso de Kosovo, a agressão da Otan (ou seja, agressão dos Estados Unidos) foi alegada como “ilegal, mas justificada” (por exemplo, pela Comissão Internacional sobre Kosovo, presidida por Richard Goldstone) com base no fato de que o bombardeio foi realizado para encerrar as atrocidades em curso. Esse julgamento exigia a reversão da cronologia. As evidências são esmagadoras de que a enxurrada de atrocidades foi a consequência da invasão: previsível, prevista, antecipada. Além disso, as opções diplomáticas estavam à disposição, mas, como sempre, foram ignoradas em favor da violência.

 

Altas autoridades dos Estados Unidos confirmam que foi principalmente o bombardeio da aliada russa Sérvia – sem sequer informá-los com antecedência – que reverteu os esforços russos para trabalhar junto com os Estados Unidos para construir de alguma forma uma ordem de segurança europeia pós-Guerra Fria, uma reversão acelerada com a invasão do Iraque e o bombardeio da Líbia, depois que a Rússia concordou em não vetar uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que a Otan imediatamente violou.

 

Os eventos têm consequências; no entanto, os fatos podem ser ocultados dentro do sistema doutrinário.

 

O status do direito internacional não mudou no pós-Guerra Fria, até mesmo em palavras, sem falar em ações. O presidente Clinton deixou claro que os Estados Unidos não tinham a intenção de respeitá-lo. A Doutrina Clinton declarava que os Estados Unidos se reservam o direito de agir “unilateralmente quando necessário”, incluindo o “uso unilateral do poder militar” para defender interesses vitais como a “garantia de acesso desimpedido a mercados-chave, suprimentos de energia e recursos estratégicos”. Seus sucessores também, assim como qualquer outra pessoa que possa violar a lei impunemente.

 

Isso não significa que o direito internacional não tem valor. Ele tem uma gama de aplicabilidade e é um padrão útil em alguns aspectos.

 

O objetivo da invasão russa parece ser derrubar o governo Zelensky e instalar em seu lugar um governo pró-russo. No entanto, não importa o que aconteça, a Ucrânia enfrenta um futuro assustador pela sua decisão de se tornar um peão nos jogos geoestratégicos de Washington. Nesse contexto, qual é a probabilidade de as sanções econômicas fazerem com que a Rússia mude de postura em relação à Ucrânia – ou as sanções econômicas visam a algo maior, como minar o controle de Putin dentro da Rússia e os laços com países como Cuba, Venezuela e possivelmente até a própria China?

 

A Ucrânia pode não ter feito as escolhas mais sábias, mas ela não tinha nada semelhante às opções disponíveis aos Estados imperiais. Eu suspeito que as sanções levarão a Rússia a uma dependência ainda maior da China. Salvo uma séria mudança de rumo, a Rússia é um petroestado cleptocrático que depende de um recurso que deve diminuir drasticamente, ou estaremos todos acabados. Não está claro se o seu sistema financeiro poderá resistir a um ataque violento, por meio de sanções ou de outros meios. Mais uma razão para oferecer uma saída de emergência com uma careta de desgosto.

 

 

Os governos ocidentais, os principais partidos da oposição, incluindo o Partido Trabalhista do Reino Unido e as mídias corporativas embarcaram em uma campanha chauvinista antirrussa. Os alvos incluem não apenas os oligarcas da Rússia, mas também músicos, maestros e cantores, e até donos de times de futebol, como Roman Abramovich, do Chelsea FC. A Rússia foi até banida da Eurovision em 2022 após a invasão. Essa não é a mesma reação que as mídias corporativas e a comunidade internacional em geral exibiram em relação aos Estados Unidos após a sua invasão e posterior destruição do Iraque, não é?

 

Seu comentário irônico é bastante apropriado. E podemos continuar de uma forma que é muito familiar.

 

Você acha que a invasão iniciará uma nova era de contestação sustentada entre a Rússia (e possivelmente em aliança com a China) e o Ocidente?

 

É difícil dizer onde as cinzas cairão – e essa pode não ser uma metáfora. Até agora, a China está jogando com frieza e provavelmente tentará levar adiante o seu extenso programa de integração econômica de grande parte do mundo dentro do seu sistema global em expansão, incorporando há algumas semanas a Argentina na iniciativa Belt and Road, enquanto observa seus rivais destruírem a si mesmos.

Como discutimos antes, a contestação é uma sentença de morte para a espécie, sem nenhum vencedor. Estamos em um momento crucial da história humana. Ele não pode ser negado. Não pode ser ignorado.

 

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