Um novo contrato social: a oportunidade de cuidar uns dos outros num mundo em policrises. Artigo de Rodolfo Gasparini Morbiolo

"Não é difícil perceber como as ideias sociais Minouche Shafik se aproximam do ideal ensejado pelo Papa Francisco em Fratelli Tutti (n. 154-197,) no sentido de uma nova política que expresse o cuidado entre os seres humanos, reconhecedora do quanto vale a vida de cada pessoa em todas as circunstâncias. 

O artigo é de Rodolfo Gasparini Morbiolo, doutor e mestre em Teologia Cristã pela PUC-SP, presbítero diocesano da Arquidiocese de Sorocaba e professor do Instituto de Teologia “São João Paulo II” da província eclesiástica de Sorocaba, afiliado a PUC-SP.

Eis o artigo.

As normas e as regras que estabelecem como as instituições coletivas da sociedade operam, e como determinam o modo de vida das pessoas, eis a definição de contrato social escolhida pela PhD em Economia Minouche Shafik. Entre muitas ocupações significativas foi presidente da Universidade de Columbia (EUA), também presidente da Escola de Economia de Londres, vice-presidente do Banco Mundial, vice-diretora do Fundo Monetário Internacional e vice-presidente do Banco da Inglaterra.

Em sua obra "Cuidar uns dos outros: um novo contrato social", publicado em língua brasileira pela Editora Intrínseca, ela desenvolve a ideia da necessidade de uma mudança paradigmática na compreensão e prática do que chama de contrato social.

 

Em outros momentos da história da filosofia política, pensadores como Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, propuseram visões diferentes a respeito deste acordo hipotético ou real, por meio do qual os indivíduos renunciam a aspectos de sua liberdade individual para alcançar conquistas sociais coletivas, como por exemplo: segurança e proteção, formando assim uma comunidade com leis e governo.

O ponto de partida da reflexão de Minouche Shafik é o questionamento "o que nós devemos uns aos outros?" ou "com que sentimos obrigações mútuas?"; perguntas complexas com dimensões sociais, culturais e históricas. E assim, ela entende que um contrato social determina o que deve ser fornecido à coletividade e por quem; é, portanto, a parceria entre indivíduos, empresas, sociedade civil e Estado para que haja benefícios coletivos. Para Shafik, o objetivo do contrato social precisa ser determinado pela sociedade e deve considerar uma ampla gama de medidas, incluindo renda e bem-estar social subjetivo, bem como medidas de capacidade, oportunidade e liberdade.

Os desafios de hoje: o populismo, a reação contra a globalização e a tecnologia, as consequências econômicas da crise financeira de 2008 e a pandemia do novo coronavírus, as guerras culturais em torno do papel das mulheres em sociedade, o racismo e os protestos contra a mudança climática, são indicativos do fracasso do atual contrato social e gritam a necessidade de um novo paradigma que responda às emergências do envelhecimento da população mundial, da inteligência artificial e das mudanças climáticas com perspectivas de esperança e realização social.

Há três princípios norteadores de seu pensamento:

1. todos devem ter a garantia do mínimo para uma vida decente;

2. deve-se esperar que todos contribuam o quanto puderem e que tenham o máximo de oportunidade de fazê-lo ao se qualificarem ao longo da vida, mesmo que isso signifique trabalhar mais tempo e aposentar-se mais tarde;

3. são indispensáveis provisões de proteção mínimas em torno de alguns riscos: doença, desemprego e velhice.

Sua proposta enuncia um novo contrato social menos preocupado com o "eu" e mais ocupado com o "nós"; que envolva reunir e compartilhar mais riscos uns com os outros para reduzir as preocupações que todos enfrentam, por meio de seguridade social para todos, investimento máximo em capacitação e compartilhamento de riscos justo e eficiente.

Em sua visão, para cuidar mais uns dos outros é necessário aumentar a produtividade e repensar a política fiscal, isto é, como se paga pelo que é partilhado por todos. Estabelecer novos pactos com as empresas, financiadoras da sociedade, e edificar uma nova política onde se manifeste a eficácia dos mecanismos que responsabilizam os poderosos, inclusive com supervisão e limitação de poderes ao Executivo do Estado. E assim, consolidar um novo pacto social mais generoso e inclusivo, complexo e reconhecedor das interdependências da coletividade.

Não é difícil perceber como as ideias sociais Minouche Shafik se aproximam do ideal ensejado pelo Papa Francisco em Fratelli Tutti (n. 154-197,) no sentido de uma nova política que expresse o cuidado entre os seres humanos, reconhecedora do quanto vale a vida de cada pessoa em todas as circunstâncias. Também, num mundo em policrises, isto é, onde o entrelaçamento de questões críticas, que simultaneamente tocam diferentes dimensões da vida, nos leva a questionar sobre o destino do mundo e nossa compreensão dele, um novo contrato social em torno do cuidado mútuo, parece apresentar-se como paradigma indispensável de transformação para uma sociedade onde a alteridade não figure como problema, mas como solução.

Bastante coerente com o pensamento de Bergoglio-Francisco é o que enseja seu sucessor, o Papa Leão XIV, quando afirma que em questões tão graves da humanidade atual, sucedendo conjuntamente, a Doutrina Social da Igreja é um baluarte cristão a ser recuperado em vista do diálogo frutífero entre ciência e consciência. Tal reflexão apresentada à Fundação "Centesimus Annus" (17 mai. 2025) evidência a necessidade de evocar os princípios éticos cristãos, como o valor inalienável da alteridade em sociedade; mas não só! Faz-se mister, também, esforçar-se para encontrar uma saída secular e histórica, política e econômica, e cultural, para os grandes desafios que os seres humanos enfrentam. Incentivados pela reflexão de Minouche Shafik compreendemos que se os termos do acordo estruturante das sociedades não forem reedificados, reformados e formalizados, de muito pouco adiantam as belas intuições éticas ou motivações religiosas bem intencionadas.

Referências

FRANCISCO, Pp. Fratelli Tutti. Encíclica sobre a fraternidade e amizade social (03, out., 2020). Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html. Acesso em: 16, set., 2025.

FRANCISCO, Pp. Messaggio del Santo Padre Francesco ai partecipanti all’Assemblea Generale della Pontificia Accademia per la Vita (03, mar., 2025). Disponível em: https://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2025/03/03/0161/00337.html. Acesso em: 16, set., 2025.

LEÃO XIV, Pp. Discurso do Papa Leão XIV aos membros da fundação "Centesimus Annus pro Pontifice" (17, mai., 2025). Disponível em: https://www.vatican.va/content/leo-xiv/pt/speeches/2025/may/documents/20250517-centesimus-annus-pro-pontifice.html. Acesso em: 16, set., 2025.

SHAFIK, Minouche. Cuidar uns dos outros: um novo contrato social (e-book). RJ: Intrínseca, 2021.

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