O tigre e o burro, o escrita e Jesus, o amor e a lei em MC 12,28-34

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29 Outubro 2021

 

"Amar é coisa de humanos. A galinha não ama o galo. Ele não sente a sua falta, mas do milho, sim. Ela fica feliz com o milho, a grama verde e os ovos. O ser humano, pelo contrário, ama porque sente falta do outro que o completa. Somos incompletos. A galinha, diferentemente, é completa. Nós necessitamos de algo no outro para amá-lo. Bom, mas esse é um tipo de amor. Jesus vai além, ele fala de um amor doação, que respeita o diferente, que deixa o outro ser como ele é, que o ama como si mesmo, reflexo do amor Maior, Deus", escreve Frei Jacir de Freitas Faria, OFM.

 

Frei Jacir [1] é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, professor de exegese bíblica, membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB) e padre Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze, cujo último livro é O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).

 

Eis o artigo.

 

O evangelho sobre o qual vamos refletir é Mc 12,28-34. Marcos nos apresenta o questionamento que um escriba fez a Jesus sobre qual é o primeiro de todos os mandamentos. Na lógica de seu Evangelho do Caminho, Marcos vai, aos poucos, apresentando os novos discípulos. No capítulo dez, foi a vez de Bartimeu que, apesar de cego, compreendeu a proposta de Jesus. Nessa passagem, trata-se do escriba que quase chegou lá.

 

Há uma lógica de convencimento na pedagogia de Jesus. Convencer quem e de quê? A resposta é simples: a amar e a saber interpretar. Como isso acontece? Vamos lá. Permita-me começar com uma fábula, a do tigre e do burro. Numa determinada floresta, um tigre se encontrou com o burro. Eles conversavam sobre a natureza. Olhando para a relva, o burro disse ao tigre que a grama é azul. O tigre respondeu que não, que ela era verde. Depois de muito discutirem, eles foram ao leão, o rei da selva, para resolver a questão. O burro, então, disse ao leão que a grama é azul e que o tigre o importunava, dizendo que era verde. O leão respondeu ao burro que, de fato a grama é azul, e puniu o tigre com quatro anos de silêncio. O burro saiu alegre e, trotando e repetindo sem cessar que a grama é azul. O tigre, então, perguntou ao leão o porquê de tal decisão, visto que ele sabia que a grama é verde. O leão respondeu ao tigre que admirava que ele, sendo um animal tão inteligente, estava perdendo tempo discutindo com um burro. E acrescentou que foi justamente por isso que o puniu, pois não se trata de grama verde ou azul, a questão é que não vale a pena discutir com burros. Eles sempre terão a razão, pois são todos tolos, imbecis, bocós, tapados e sem inteligência...  

 

Gostou? Em que essa fábula ilumina o nosso dia a dia, a realidade brasileira? Será que somos capazes de mudar a opinião do outro? Desafio você a ler Mc 12,28-34, tendo como pano de fundo essa fábula, e descobrir a inteligência de Jesus, do escriba e a nossa burrice. Senão, vejamos. O inteligente, o tigre que discute com Jesus é o escriba fariseu, pois no diálogo ele não se apresenta de forma agressiva como os seus antecessores: fariseus e saduceus. Por isso, Jesus, sabendo da sua disposição para dialogar, termina sua fala elogiando-o. Os escribas pertenciam ao grupo dos fariseus e eram vistos como estudiosos da Lei e da tradição. A palavra deles tinha peso entre o povo, pois eram os seus intelectuais. O escriba era um tigre, sim, mas será que ele não tinha também seus momentos de burrice? Eram tantas as leis que impediam a compreensão da vida a partir do amor! Será que os escribas sabiam interpretar o verde da grama ou simplesmente diziam que ela era azul porque assim rezava a lei?

 

 

Perguntar qual seria o primeiro mandamento era tarefa de doutores da Lei. No entanto, a questão não era tão fácil. Os dez mandamentos haviam sido transformados em 365, sem falar das proibições, por exemplo, de atividades que não podiam ser feitas em dia de sábado, as quais somavam 234. O escriba que interrogou Jesus tinha consciência dessa realidade. Jesus também. A resposta de Jesus, citando a própria escritura, parte do Shemá Israel (Dt 6,4-9), a profissão de fé israelita que reza que Deus é Um, que não existe outro além Dele, e que Ele devia ser amado com todo o coração, a alma e as posses, isto é, com razão e sentimento integrados (coração), com dignidade (alma) e com o dinheiro (posses). Me‘ôd, em hebraico, não é força no sentido de vigor, conforme as traduções de nossas Bíblias, mas é tudo aquilo que tenho, a abundância de posses que possuo (dinheiro) e que deve ser colocada a serviço do outro para cumprir a justiça da Torá.[2] O judeu não fala em dar esmola, mas em fazer esmola, fazer justiça.

 

Shemá, em hebraico, significa ouvir no sentido de interpretar para praticar. Enquanto faço essa reflexão, ouço o canto da cigarra lá fora, mas não a interpreto, assim como todos os outros sons que vêm e vão. Agora, com você e para você, eu procuro interpretar o evangelho de Marcos. E você, da mesma forma, procura me interpretar. Isso é o Shemá que se transformou em profissão de fé judaica, assim como o Credo católico. O Shemá Israel é resultado da presença do amor de Deus na vida como mandamento. Pena que essa interpretação carregou o verde do amor em tantos azuis de leis que engessaram a vida dos conterrâneos de Jesus, os quais se sentiam ‘burros’, isto é, não eram capazes de as interpretar, diante de tantos ‘falsos tigres’ da Lei.

 

Jesus, o rei Messias, para responder ao escriba, além de citar Deuteronômio, cita Levítico 19,18 que trata do amor ao próximo como a si mesmo, bem como acrescenta “de todo o teu entendimento” ao texto do Shemáh Israel.  Para Jesus, não bastava seguir os preceitos da Torá, era preciso amar o próximo, isto é, agir socialmente de forma justa, amorosa, não somente com Deus. Todo judeu sabia da importância de amar em todos os momentos da vida, estando sentado, andando, deitado ou de pé (Dt 6,6-9). Amar exige integridade, doação, entrega e fé. Para Jesus, consistia também em segui-lo. Coisa que o homem rico não foi capaz, mas de que o escriba estava bem próximo. O primeiro não conseguiu desapegar-se de suas posses, o segundo conseguia compreender que o amor valia mais que sacrifícios e holocaustos, mas ainda estava apegado à Lei. Ele estava a caminho, mas ainda não totalmente preparado para compreender o ensinamento de Jesus e segui-lo.[3]

 

Permita-me, ainda, uma palavra sobre o amor. Amar é doação, é crer, é se entregar por inteiro sem querer nada em troca. O amor perpassa toda a vida, como na fração de um dia, do levantar-se ao deitar-se para recomeçar sempre. O amor deve ser recordado sempre, nas mãos que se movimentam e fazem a vida acontecer, entre os olhos como num frontal que aponta o caminho iluminado, e ainda como recordação na porta de entrada da casa e da cidade. O amor está relacionado com a Aliança com Deus e envolve o todo da vida, daí a repetição três vezes de ‘todo’ coração, toda alma e toda posse.

 

Amar é coisa de humanos. A galinha não ama o galo. Ele não sente a sua falta, mas do milho, sim. Ela fica feliz com o milho, a grama verde e os ovos. O ser humano, pelo contrário, ama porque sente falta do outro que o completa. Somos incompletos. A galinha, diferentemente, é completa. Nós necessitamos de algo no outro para amá-lo. Bom, mas esse é um tipo de amor. Jesus vai além, ele fala de um amor doação, que respeita o diferente, que deixa o outro ser como ele é, que o ama como si mesmo, reflexo do amor Maior, Deus.

 

Depois de toda essa explicação de Jesus, o escriba nem precisou perguntar mais. Ele superou a ‘burrice’ de seus colegas da sinagoga. Entendeu o porquê da grama verde e azul. E nem foi punido. Para nós, a lição da fábula: sigamos o caminho do amar a Deus e ao próximo como a nós mesmos, mas não saiamos por aí dizendo que a grama é azul... Saibamos interpretar o que está acontecendo na vida política brasileira. Com um pedido de desculpas ao burro animal, não sejamos um humano ‘burro’ em nossas relações. “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!”

 

Referências:

 

[1] Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apocrifos - link para o canal no YouTube disponível aqui.

[2] FARIA, Jacir de Freitas. A releitura do Shemáh Israel nos evangelhos e Atos dos apóstolos. Petrópolis, RIBLA, n. 40, p. 52–65, 2001.

[3] FARIA, Jacir de Freitas. A releitura do Deuteronômio nos evangelhos. In: KONINGS, Johan; SILVANO, Zuleica Aparecida. (Org.). Deuteronômio: Escuta, Israel. 1ed.São Paulo: Paulinas, 2020, v. 1, p. 190.

 

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