27 Julho 2022
"A visita do papa ao Canadá é um ato teológico de primeiro nível. Em 'Fratelli tutti' falou de fraternidade, mas no Canadá é importante que também a liberdade e a igualdade sejam restabelecidas como linguagem comum, como código de reconhecimento, como experiência compartilhada. O papa que 'pede perdão' com gestos de fraternidade mostra que a 'doutrina antropológica católica' viveu profundas descontinuidades, que foram pagas na pele de várias gerações de homens e mulheres, no Canadá como no resto do mundo, em outras condições e de diferentes maneiras. Mas o nó é a representação distorcida do homem e da mulher", escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado no blog Come Se Non, 26-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
As imagens poderosas com as quais Francisco recupera uma relação profundamente alterada pela injustiça, pelo abuso, pela falta de respeito e dignidade são tocantes. Talvez arrisquem ficar isoladas na narrativa jornalística, que poderia perder de vista as questões fundamentais que fundamentam e justificam a ação de Francisco e que só podem ser compreendidas olhando melhor para o cerne da questão.
A cumplicidade das instituições e ministros católicos em práticas gravemente discriminatórias, abusivas, marginalizadoras não é acidental, não são "episódios isolados", mas derivam de uma compreensão geral do homem, de sua natureza social, relacional, política e de gênero que durante séculos justificam estruturalmente essas práticas. Digamos mais claramente: não gostaria que se pensasse que os sujeitos estavam agindo na época "de forma criminosa". Não, aplicavam uma ideia de justiça distorcida, cheia de preconceitos, que também a teologia, a disciplina eclesial e o bom senso justificavam e tornavam recomendáveis. Uma mulher relatou ontem na televisão: "A freira tirou meu vestido, me deu uma bofetada e me disse: você é filha de uma selvagem, tenha vergonha!"
Uma história marcada por essa profunda injustiça não é um destino. O papa sabe disso. E com a sua pessoa opera gestos e diz palavras de nova esperança. Para que o ódio resultante da injustiça possa ir embora. Mas pode fazê-lo porque já não partilha mais os preconceitos que a Igreja partilhou e alimentou com a sociedade colonial e com a sociedade fechada.
Por um lado, devido ao atraso de um pensamento católico polarizado, que permitiu, ainda na segunda metade do século XIX, a defesa da “escravidão” como direito natural, o pedido de “inclusão no Índice” de A cabana do pai Tomás porque se inspirava no igualitarismo protestante e no enrijecimento "antimodernista" que bloqueou, em posições próprias do final do século XIX, a cultura católica até os anos 1960. Iludimo-nos que defender os preconceitos da sociedade fechada – sobre a inferioridade de alguns povos em relação a outros, sobre os direitos divinos dos patrões sobre os trabalhadores, sobre a falta estrutural de dignidade pública da mulher - fossem a forma de defender o Evangelho. E aqui está o ponto decisivo.
A visita do papa ao Canadá é um ato teológico de primeiro nível. Em "Fratelli tutti" falou de fraternidade, mas no Canadá é importante que também a liberdade e a igualdade sejam restabelecidas como linguagem comum, como código de reconhecimento, como experiência compartilhada. O papa que "pede perdão" com gestos de fraternidade mostra que a "doutrina antropológica católica" viveu profundas descontinuidades, que foram pagas na pele de várias gerações de homens e mulheres, no Canadá como no resto do mundo, em outras condições e de diferentes maneiras. Mas o nó é a representação distorcida do homem e da mulher.
Sobre isso, já em 1963, João XXIII em sua última encíclica, Pacem in terris, identifica três "sinais dos tempos": a igual dignidade de todos os povos, os direitos dos empregados em relação aos empregadores, a entrada da mulher no espaço público e sua dignidade. Esses três "sinais" exigem um trabalho teológico novo e corajoso. O que Francisco faz no plano do exemplum e sacramentum deve corresponder a um trabalho igualmente penitencial com o qual o pensamento teológico católico, despindo os hábitos altivos da superioridade, possa assumir o diálogo com a melhor cultura contemporânea para melhor servir ao anúncio do evangelho, sem confundi-lo com as formas com que a sociedade fechada impôs preconceito à leitura dos textos e gestos da tradição.
Um papa vestido de "índio" é uma coisa curiosa. Que pode permanecer no plano da maior superficialidade. Na realidade, reconciliar-se com culturas oprimidas e gravemente discriminadas implica um processo de espoliação e de revestimento que tem sua imagem mais poderosa na "metáfora batismal". Vestir-se de Cristo implica aprender a estar plenamente dentro de cada cultura. Só assim se podem ver os limites da tradição, corrigir os erros e aprender a "tirar os sapatos" diante da revelação de Deus em cada povo, em cada homem e em cada mulher.
Para isso, é necessária uma grande revisão da "antropologia católica". E os teólogos não podem esperar que o papa tenha que resolver todas a situações. Há "viagens penitenciais" que os teólogos devem assumir inteiramente "por conta própria", porque são parte integrante de sua profissão/ministério: para preparar novas reconciliações devidas e novas pazes possíveis.
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O exemplo do papa no Canadá: percursos penitenciais também para os teólogos? Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU