Putin e Lavrov, era uma vez a Rússia. Artigo de Alberto Negri

Vladmir Putin e Sergey Lavrov (Foto: Serviço de Imprensa do Presidente da Federação Russa | Wikimedia Commons)

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05 Mai 2022

 

"Hoje este é um mundo onde às vezes, e felizmente, se pode pedir justiça sem necessariamente travar uma guerra. Mesmo que de justiça, vamos admitir, tenha pouca nessas paragens para os palestinos, iraquianos, curdos, líbios, iemenitas e muitos outros povos. Enquanto os criminosos de guerra estadunidenses e britânicos ainda ensinam lições a todos, preservados pela imunidade. Mas é precisamente esta guerra absurda no coração da Europa o maior presente que Putin lhes deu", escreve Alberto Negri, filósofo italiano, em artigo publicado por Il Manifesto, 04-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Era uma vez a Rússia ... Esta é a triste impressão ao ouvir as palavras de Serghei Lavrov, ministro das Relações Exteriores da Rússia por 18 anos (desde 2004). A tradução literal da eslavista Olga Strada da entrevista à Retequattro - canal de propriedade de Berlusconi, amigo de longa data de Putin - é esta: “Posso estar enganado, mas Hitler também tinha sangue judeu. Isso não significa absolutamente nada. O sábio povo judeu diz que os antissemitas mais ferrenhos são, via de regra, judeus.” E Lavrov também acrescentou: "Toda família tem sua ovelha negra".

 

Nada mais falsamente trágico e errado poderia sair dessa infeliz entrevista de Lavrov.

 

"Aqui está um exemplo que demonstra claramente como ocorre a degradação do sistema", escreve no Instagram Ksenya Sobchak, filha do ex-prefeito de São Petersburgo, amigo de Putin. O ministro das Relações Exteriores já foi um diplomata brilhante, um homem de grande cultura, um erudito. “Mas, com o tempo, tudo isso - ressalta Ksenya - se revelou para o sistema uma massa de qualidades inúteis.

 

O que não serve desaparece. Enquanto a qualidade de ‘jogar’ uma frasesinha é o novo padrão das relações diplomáticas”.

 

Felizmente, seu sábio cronista tem em casa o manifesto - Michele Giorgio - que em 3 de maio explicou muito bem o desastre diplomático cometido por Lavrov. Ou seja, que o primeiro-ministro israelense Bennett havia tentado por semanas não romper com a Rússia - no início de março tinha ido para Moscou para se encontrar com Putin - para garantir boas relações entre os dois países e luz verde para ataques israelenses contra alvos iranianos em Síria. Não somente. Israel, como a Turquia de Erdogan - com a qual Tel Aviv está restabelecendo relações estratégicas - não aderiu às sanções contra Moscou e nunca forneceu armas à Ucrânia.

 

Gostaríamos também de acrescentar que o ex-chefe do Mossad, Ephraim Halevi, nos primeiros dias do conflito na Ucrânia no Haaretz escreveu, em preto e branco, a linha do governo judaico: "Devemos encontrar uma saída para Zelensky e para Putin, gostemos ou não". Em suma, o ministro das Relações Exteriores da Rússia com essas palavras inoportunas, e também um pouco mal interpretadas em sua crueza, deu um chute nas canelas de um país amigo: lembremos que o ex-primeiro-ministro israelense Netanyahu foi o chefe de governo que, nesses anos, várias vezes foi a Moscou.

 

A ruptura entre Moscou e Israel é inexplicável, não tem justificativa histórica, muito menos geopolítica. Por esta razão, levanta uma preocupação extrema. Onde está a Rússia que conhecemos?

 

Era uma vez a Rússia também para nós... Lavrov fala hoje da Itália como um país amigo pelo qual se sente traído: não é assim. Aqui somos também os filhos de Primo Levi, um dos pouquíssimos judeus que voltaram de Auschwitz, libertados justamente pelos russos do Exército Vermelho, somos filhos daquela terrível história em que o fascismo, aliado do nazismo, expulsou uma geração inteira. Não vamos esquecê-lo. Como não posso esquecer meu pai que saiu do Don em 1942-43 e foi salvo do congelamento por camponeses russos. Falava pouco: “Lembra-te - disse-me um dia enquanto dirigia o carro - que se estás aqui é porque eles te salvaram”. Conversar com ele sobre esses eventos era como questionar uma esfinge. Poucos voltaram.

 

Por esta razão, a retórica sobre a desnazificação hoje não se sustenta tanto. Pode-se culpabilizar Zelensky o quanto quiser por se curvar aos herdeiros - o batalhão Azov e outras forças de extrema direita - de uma história terrificante que com o colaboracionismo dos grupos ultranacionalistas e pró-nazistas ucranianos de Stepan Bandera, fez 1,6 milhão de mortos judeus entre 1941 e 1944. Mas um povo inteiro não pode ser penalizado. Não é e não deveria ser mais a história de hoje. O mesmo mundo judaico tinha feito nos últimos anos da Ucrânia a meta de um turismo religioso raiado de esoterismo, de Sabatai Zevi a Jacob Frank, a Baal Shem Tov, fundador do movimento hassídico, cujo mausoléu está localizado na Ucrânia central. Hoje este é um mundo onde às vezes, e felizmente, se pode pedir justiça sem necessariamente travar uma guerra.

 

Mesmo que de justiça, vamos admitir, tenha pouca nessas paragens para os palestinos, iraquianos, curdos, líbios, iemenitas e muitos outros povos. Enquanto os criminosos de guerra estadunidenses e britânicos ainda ensinam lições a todos, preservados pela imunidade. Mas é precisamente esta guerra absurda no coração da Europa o maior presente que Putin lhes deu.

 

Era uma vez a Rússia, como era uma vez a Iugoslávia, desagregada não pelas mesmas razões que ocorrem hoje na Ucrânia, mas que ainda vaga como um fantasma pela Europa para lembrar que poderiam existir estados multiétnicos e multirreligiosos na Europa. A Rússia ainda é um desses estados, mas não deve ser reduzida a um esqueleto por sua liderança e pelos eventos.

 

É por isso que o Papa Bergoglio, um dos últimos sábios, levanta novamente a voz, refletindo sobre as causas da guerra. E o faz com uma frase clara sobre as responsabilidades. De fato, ele fala do "ladrar da OTAN às portas da Rússia", que em sua opinião teria levado Putin a reagir e desencadear o inferno na Ucrânia: "Uma ira que não sei dizer se tenha sido provocada, mas facilitada talvez sim".

 

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