A inabilidade política brasileira para incorporar o debate sobre o racismo. Entrevista especial com Cristiano Rodrigues

Pesquisador observa que tanto a direita quanto a esquerda não têm a compreensão plena do que significam as reivindicações das populações negras e não as absorvem em seus programas

Foto: Filipe Araújo

Por: João Vitor Santos | 24 Junho 2020

As manifestações antirracismo que tomaram conta do mundo desde o assassinato de George Floyd têm suscitado muitas reflexões acerca das comparações das realidades de Brasil e Estados Unidos. Há pontos que se cruzam e outros que se distanciam, mas o professor Cristiano Rodrigues chama atenção de que uma análise tanto da ascensão política de Donald Trump quanto de Jair Bolsonaro pode revelar uma espécie de revés no que para muitos chegou a ser considerada uma nova era ‘pós-racial’. “O governo Obama foi muito importante simbolicamente e no campo mais superficial da vida política, mas as disparidades raciais históricas permaneceram”, aponta, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “Esse período de relativo otimismo foi também o palco para a ascensão de contramovimentos ultranacionalistas”, analisa. E conclui: “esses contramovimentos foram bastante importantes para a eleição de Trump em 2016, que recebeu votação expressiva do eleitorado branco, masculino de todas as classes sociais”.

Analogicamente observando a realidade brasileira, Cristiano também aponta certos avanços, mas que geraram reações de sentido contrário como uma resposta política. “A ascensão de Bolsonaro ao poder também tem um caráter de revanchismo e desencanto por parte dos eleitores com a política institucional”, sintetiza. No entanto, segundo ele, o problema é que no Brasil – e também nos Estados Unidos – as transformações não foram efetivas e estruturantes, promovendo, na prática, apenas pequenos avanços. “Tanto a esquerda quanto a direita brasileira são inábeis em incorporar de maneira efetiva o debate sobre o racismo e incorporar as reivindicações de importância para a população negra em seus projetos e programas”, aponta.

E no caso específico da esquerda, vê que um dos erros é tomar a questão racial como “epifenômeno de classe” e assim supor que o enfrentamento das desigualdades de classes daria conta também das questões de raça. “Essa marginalização do debate racial nas legendas de centro-esquerda é nociva no interior do partido, que tem poucos membros negros nas diretorias, setoriais e também como candidatos e do ponto de vista eleitoral, já que utilizam os anseios da população negra para conseguir mais votos ao mesmo tempo que tratam as pessoas negras como um todo monolítico, falhando em compreender a diversidade de interesses e necessidades das pessoas negras”, reflete.

Cristiano Rodrigues (Foto: Arquivo pessoal)

Cristiano Rodrigues é professor adjunto do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFMG. Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – IESP-UERJ, é coordenador da Área Temática de Raça, Etnicidade e Política e do Comitê de Gênero, Raça e Diversidade Sexual da Associação Brasileira de Ciência Política – ABCP. Entre suas publicações, destacamos “Afro-latinos em Movimento: Protesto Negro e Ativismo Institucional no Brasil e na Colômbia” (Curitiba: Appris, 2020).

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Qual a sua análise das manifestações antirracistas que têm ocorrido em todo o mundo depois do assassinato de George Floyd?

Cristiano Rodrigues – As manifestações que tomaram as ruas dos EUA após a morte de George Floyd marcam um momento histórico. A hashtag #blacklivesmatter foi criada em 2013, por Alicia Garza, Patrisse Cullors e Opal Tometi, três mulheres negras indignadas com a absolvição de George Zimmerman, indiciado pela morte do adolescente negro Trayvon Martin em 2012 e, desde então, se tornou uma movimentação política que emprega estratégias voltadas para mobilização em redes sociais e também protestos de rua. Porém, a atual onda de protestos é qualitativa e quantitativamente diferente das anteriores. Há cinco razões principais para essa diferença:

1) os protestos de 2020 já duram quase quatro semanas e congregam mais manifestantes que os protestos por direitos civis dos anos 1960;

2) os protestos se tornaram manifestações transnacionais por direitos humanos, reunindo milhares de pessoas nas ruas de Londres, Berlim, Paris, São Paulo e várias outras cidades ao redor do mundo;

3) os protestos vêm recebendo apoio considerável de elites políticas locais e nacionais nos EUA que vão desde atos simbólicos de solidariedade, como policiais e militares “taking a knee” juntamente com manifestantes negros, até propostas municipais e estaduais voltadas para o remanejamento de investimentos das corporações policiais para assistência social e geração de emprego e renda em regiões habitadas por maioria negra;

4) os protestos também estão recebendo apoio de parcela da elite econômica e empresarial dos EUA, com a adoção de medidas como a doação de dinheiro para os protestos e a promessa de alteração das estruturas organizacionais para garantir a ampliação da diversidade nas empresas. O crowdfunding dos protestos, com a criação de fundos de solidariedade para organizações do Black Lives Matter, pagamento de fianças de manifestantes presos pela polícia, entre outras atividades, também contribuem para a vivacidade e permanência dos protestos ao longo dessas semanas;

5) o enquadramento da mídia tem sido relativamente positivo aos protestos, acentuando seu caráter relevante, urgente e transformador.

IHU On-Line – No Brasil, pouco antes de Floyd, o menino João Pedro foi assassinado por policiais no Rio de janeiro. O que aproxima e o que distancia os casos? Quais as diferenças e semelhanças nas ações da polícia e os atos de racismo entre Brasil e Estados Unidos?

Cristiano Rodrigues – Em ambos os países a ação policial e o sistema de justiça criminal são marcados pela seletividade racial. Já nos anos 1990 as pesquisas de Sérgio Adorno, da Universidade de São Paulo - USP, apontavam que o perfil da população carcerária no Brasil era o seguinte: majoritariamente jovem, masculina, negra e respondendo por crimes relacionados ao tráfico de drogas. A justiça ainda condena com maior severidade criminosos negros, revelando a desigualdade de direitos e prejudicando o funcionamento da democracia. Além disso, no Brasil, 40% das pessoas presas não foram julgadas. Algo semelhante vale para os EUA, onde a taxa de encarceramento de negros é seis vezes maior que a de brancos e, embora negros perfaçam entre 12 e 15% da população, são 37% da população carcerária do país.

A ação do Estado em ambos os países em áreas majoritariamente negras e pobres se caracteriza por três aspectos: 1) excesso de policiamento, 2) falta de proteção social e 3) encarceramento em massa. A letalidade da ação policial contra negros também é alta em ambos os países. Em 2019, a polícia dos EUA matou 1.099 pessoas, das quais 259 (24%) eram negras. No Brasil, no mesmo período, a polícia matou 5.804 pessoas, das quais 4.533 (75%) eram negras.

As polícias no Brasil e EUA são bem diferentes e, a despeito do alto encarceramento de negros nos EUA, o sistema de justiça norte-americano é mais eficiente e célere que o brasileiro. Nos EUA as corporações policiais podem ser municipais, do condado, estaduais e nacionais (FBI) e há maior rigor na contratação de policiais assim com mais punição para aqueles envolvidos em atividades ilegais. No Brasil, a tradição militar da polícia, a hierarquia excessiva e a proteção corporativa (p. ex., crimes cometidos por policiais são julgados pela justiça militar e eles raramente são condenados) fazem com que ela seja mais violenta e corrupta que a polícia dos EUA. Isso também se reflete no fato de que muitos policiais morrem em combate, sobretudo aqueles que estão na base da corporação.

IHU On-Line – O assassinato de Floyd também pautou manifestações no Brasil. Mas por que as mortes cotidianas de outros jovens negros periféricos no Brasil parecem não ter causado a mesma comoção e mobilização?

Cristiano Rodrigues – Em Democracia na América, Tocqueville faz a seguinte afirmação: “Se a América experimentar alguma vez grandes revoluções, elas serão conduzidas pela presença dos negros no solo dos Estados Unidos: quer dizer, não será a igualdade, mas ao contrário, sua desigualdade que as fará emergir” (Tocqueville, 1986, p. 604). Sobre o Brasil, Milton Santos dizia: “a classe média não quer direitos, ela quer privilégios, custe os direitos de quem custar”. Tocqueville previu que o debate igualdade-desigualdade seria central para os EUA e que a luta por formalização da igualdade partiria dos negros, posto que para os americanos a escravidão e seu legado seriam o “pecado original” da nação. O Brasil, por outro lado, é um país de tradição hierárquica e patrimonialista. Ao contrário dos EUA, no Brasil se nega veementemente o peso do legado da escravidão e do racismo em determinar a identidade nacional. Nesse sentido, não é de todo verdade que haja maior comoção e mobilização nos EUA, mas há menos apoio político e das classes médias e altas brasileiras para esse tipo de protesto, haja vista que questionam o princípio de negação do racismo que sustenta a identidade nacional brasileira, e pode ter como efeitos a tentativa de ruptura com privilégios de classe e raça dos quais os brasileiros brancos das elites políticas e econômicas não querem abdicar.

Ademais, o Estado brasileiro responde com muito mais violência e criminalização os protestos e ações contestatórias, como pode ser observado nas jornadas de junho de 2013 e nas respostas policiais às manifestações de professores por melhores condições de trabalho que ocorreram em São Paulo e no Paraná em anos recentes. Acresce-se a isso que a falta de solidariedade de pessoas brancas das classes médias e altas aumenta os custos de participação em protestos para as pessoas negras, normalmente mais vulneráveis econômica e socialmente, que ficam expostas à violência policial, a diferentes formas de retaliação profissional e social decorrentes de sua participação em protestos.

Ainda assim, sempre que ocorrem situações como a do assassinato de João Pedro, centenas e às vezes milhares de pessoas saem às ruas para reivindicar, mas nem sempre recebem o apoio da mídia na divulgação desses protestos, o que pode gerar a impressão de pouca comoção.

IHU On-Line – Muitas pessoas têm associado as manifestações no Estados Unidos e no mundo à época da morte de Martin Luther King. O senhor concorda? O que aproxima e o que distancia esses momentos da História?

Cristiano Rodrigues – Embora se possa estabelecer um paralelo entre ambos os momentos históricos, seria forçoso atribuir semelhanças a eles, exceto pelo fato de que tanto o movimento por direitos civis como os protestos do #blacklivesmatter reivindicam a ampliação de direitos e o fim da discriminação racial.

O movimento por direitos civis reivindicava a suspensão de legislações segregacionistas do sul dos EUA, direito ao voto e políticas de equidade para o acesso às universidades e ao mercado de trabalho. O #blacklivesmatter luta contra o fim da brutalidade policial, pela transferência do orçamento destinado às polícias para políticas sociais voltadas às comunidades negras e pobres (alguns defendem inclusive a extinção da polícia), reforma do sistema de justiça criminal e fim da guerra às drogas. Os protestos de 2020 são mais multirraciais e transnacionais que as manifestações pelos direitos civis.

IHU On-Line – Pensando no contexto dos Estados Unidos, o governo de Barack Obama trouxe esperança na questão de igualdade racial. Mas o governo Donald Trump parece ter vindo como uma resposta a essa esperança. No Brasil, depois dos avanços sociais de governos mais progressistas, há a eleição de Jair Bolsonaro. Como compreender esses reveses?

Cristiano Rodrigues – Para os afro-americanos, o governo Obama foi muito importante simbolicamente e no campo mais superficial da vida política, embora as disparidades raciais históricas tenham permanecido, e algumas inclusive se intensificaram, durante sua administração. O otimismo de alguns analistas políticos em relação à administração Obama foi tanto que alguns chegaram a vaticinar que os EUA haviam chegado à era “pós-racial”, em que a questão racial se tornaria menos relevante para a vida cotidiana e para o cenário político norte-americano.

Esse período de relativo otimismo foi também o palco para a ascensão de contramovimentos ultranacionalistas, representados pelo birtherism, uma teoria conspiratória difundida, entre outros, por Trump, que defendia que Barack Obama não havia nascido nos EUA, levando o presidente a apresentar publicamente seu certificado de nascimento, e o recrudescimento de organizações de direita supremacista branca. Esses contramovimentos foram bastante importantes para a eleição de Trump em 2016, que recebeu votação expressiva do eleitorado branco e masculino de todas as classes sociais.

Durante a administração Trump, dois fenômenos importantes passaram a ocorrer: 1) menor atenção aos casos comuns e recorrentes de brutalidade policial contra negros e outras minorias étnico-raciais; 2) do ponto de vista simbólico, o governo Trump estabelece falsas simetrias entre reivindicações negras por ampliação de direitos e ações de movimentos extremistas a favor da restrição de direitos. Esse segundo aspecto fica explícito na resposta presidencial dada aos protestos de supremacistas brancos, em 2017, e aos contraprotestos que se seguiram. Trump foi a público mas não condenou a ação extremista, limitando-se a dizer que haveria pessoas boas em ambos os lados.

 

No Brasil

 

A ascensão de Bolsonaro ao poder também tem um caráter de revanchismo e desencanto por parte dos eleitores com a política institucional. Em 2011, Bolsonaro foi entrevistado pelo Programa CQC da TV Bandeirantes, em um quadro chamado “o povo quer saber”. Na ocasião revelou-se contrário às políticas de ação afirmativa, com a seguinte declaração: “quem usa cota, no meu entender, está assinando embaixo que é incompetente. Eu não entraria num avião pilotado por um cotista. Nem aceitaria ser operado por um médico cotista”.

Quando a cantora Preta Gil lhe dirigiu uma pergunta sobre qual seria sua reação caso um de seus filhos se apaixonasse por uma mulher negra, Bolsonaro respondeu da seguinte maneira: “Preta, não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco, e meus filhos foram muito bem-educados e não viveram num ambiente, como lamentavelmente, é o teu”. Nos anos seguintes, sua popularidade foi crescendo, a despeito – ou talvez em decorrência – de suas declarações com teor cada vez mais racista, sexista e LGBTfóbico.

Longe de tentar esgotar as explicações acerca dos motivos que levaram ao aumento de popularidade de Bolsonaro e sua consequente vitória nas eleições presidenciais de 2018, acredito que a partir das jornadas de junho de 2013 se consolidaram no Brasil dois polos opostos de interpretação e mobilização política: 1) um campo progressista voltado para a radicalização da democracia; e 2) um campo reacionário, autoritário, com traços fascistas e antidemocráticos. O bolsonarismo encontra-se inequivocamente ancorado ao segundo campo. As críticas frequentes de Bolsonaro às políticas de inclusão e democratização promovidas durante os governos petistas denotam um desejo de retorno a um passado – autoritário e militarizado – com hierarquias sociais rígidas e a preservação de privilégios de classe, raça, gênero e sexualidade quase que de maneira estamental.

 

Medo da ampliação de direitos

 

O incentivo à política do medo e do pânico coletivo em relação à possibilidade de ampliação de direitos para as mulheres, negros, quilombolas, indígenas e LGBTQs foi central na trajetória de ascensão política de Bolsonaro. Os resultados eleitorais de 2018 refletem bem esse novo contexto de mobilização política. O jornal El País publicou uma matéria analisando os resultados do primeiro turno das eleições de 2018 com a seguinte manchete: “Bolsonaro arrasa nas cidades mais ricas e brancas; Haddad nas negras e pobres”. A matéria mostra um mapa de como votaram os eleitores em mais de 5.500 municípios do país e revela aspectos importantes das eleições. Jair Bolsonaro obteve 95% dos votos nos municípios mais ricos enquanto Fernando Haddad conseguiu 90% dos votos em municípios mais pobres.

Bolsonaro obteve mais de 60% dos votos nas cidades em que a maioria da população é branca e Haddad alcançou menos de 20% dos votos nessas localidades. Em cidades nas quais brancos são minoria, Haddad obteve média de 60% dos votos e Bolsonaro 25%. Mesmo quando controlado por renda, a diferença entre eleitores brancos e negros permaneceu significativa, pois em municípios com renda semelhante, Bolsonaro se saiu melhor naqueles com maior presença de eleitores brancos. Em média, Bolsonaro recebeu duas vezes mais votos (68%) do que Haddad (32%) entre os eleitores brancos. A matéria também apresenta resultados parecidos por região: Haddad conquistou mais votos nas regiões Norte-Nordeste e Bolsonaro nas Sul-Sudeste. Mesmo dentro das regiões a correlação entre voto e riqueza e voto e raça se mantiveram.

IHU On-Line – Como o senhor analisa o movimento negro no Brasil atualmente?

Cristiano Rodrigues – Os movimentos negros brasileiros contemporâneos exercem grande influência na vida social e política brasileira. Desde os anos 1980, as organizações do movimento negro priorizaram três campos de intervenção: o primeiro voltado à aproximação institucional, inicialmente participando ativamente da criação e desenvolvimento das legendas de centro-esquerda, depois por via do advocacy institucional em agências internacionais, em assessorias de mandatos legislativos, na criação de secretarias e comissões voltadas para comunidade negra em governos locais e estaduais, e durante as administrações petistas, participando das burocracias estatais e na formulação e implementação de políticas públicas para a população negra.

O segundo campo de intervenção é o da luta contra o mito da democracia racial e conscientização da população negra; o terceiro campo é representado pela ascensão do ativismo feminista negro e contempla estratégias de protesto nas ruas, nas redes sociais, de empoderamento das mulheres e tem tido bastante êxito em lutar por maior representação política de mulheres negras e alterado significativamente o mercado editorial brasileiro, com a tradução de importantes obras de feministas negras de outros países, a reabilitação de intelectuais negras/os marginalizadas/os na academia brasileira e dado chances para a publicação de trabalhos inovadores de intelectuais negras/os sobre temas que careciam de divulgação no país.

A coleção feminismos plurais, coordenada pela Djamila Ribeiro é, atualmente, o exemplo mais bem sucedido de transformação no mercado editorial. Detalho bastante estes e outros aspectos dos movimentos negros brasileiros contemporâneos no meu livro: Afro-Latinos em Movimento: protesto negro e ativismo institucional no Brasil e na Colômbia, publicado pela editora Aprris, em 2020.

IHU On-Line – A esquerda brasileira compreende a questão racial? Por quê?

Cristiano Rodrigues – Em uma entrevista a Caros Amigos, em 2000, Sueli Carneiro afirmou que: “entre a esquerda e a direita, continuo sendo preta” (“Caros Amigos” n° 35, fevereiro de 2000). Tanto a esquerda quanto a direita brasileiras são inábeis em incorporar de maneira efetiva o debate sobre o racismo e as reivindicações de maior importância para a população negra em seus projetos e programas.

No caso da esquerda, o debate sobre racismo é, inúmeras vezes, entendido como mero epifenômeno de classe, dando a entender que as questões que envolvem raça podem ser enfrentadas com as mesmas estratégias utilizadas para se enfrentar desigualdades de classe. Essa marginalização do debate racial nas legendas de centro-esquerda é nociva no interior do partido, que tem poucos membros negros nas diretorias e setoriais, culminando na apresentação de poucas candidaturas negras viáveis.

A marginalização do diálogo interno sobre raça e racismo também se reflete no período eleitoral, já que os partidos se apropriam superficialmente das reivindicações da população negra para conseguir mais votos ao mesmo tempo que tratam as pessoas negras como um todo monolítico, falhando em compreender a diversidade de interesses e necessidades das pessoas negras.

O fato de que um número expressivo de mulheres negras, pobres e evangélicas votaram em Bolsonaro nas últimas eleições presidenciais, a despeito de fazerem parte de um dos grupos que se beneficiaram das políticas sociais dos governos petistas, revela o quanto as legendas de centro-esquerda se afastaram de suas bases e passaram a tratar com desdém e elitismo moralista posições políticas, e especialmente religiosas, aparentemente contraditórias de uma parcela da população negra, promovendo um afastamento de parte importante dos eleitores.

IHU On-Line – Quais foram os pensadores brasileiros que melhor elaboraram a questão do racismo no país?

Cristiano Rodrigues – Ressalto que a contribuição de intelectuais brasileiros para entendermos como o racismo opera no país é imensa e não se restringe apenas à academia. Arrisco-me a dizer inclusive que as maiores contribuições, que geraram maior impacto e ultrapassaram o crivo dos tempos, vêm de fora da academia. Porém, por falta de espaço para detalhar melhor, me limito a indicar aqui os seguintes nomes: Lima Barreto, Guerreiro Ramos, Carolina de Jesus, Abdias do Nascimento, Edson Carneiro, Virginia Bicudo, Clovis Moura, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Luiza Bairros, Joselina da Silva, Amauri Mendes Pereira, Hamilton Borges, Rosana Borges, Nilma Lino Gomes, Petronilha Gonçalves, Silvio Almeida, Beatriz Nascimento, Joel Zito Araújo, Muniz Sodré, Jurema Werneck, Neusa Santos Souza, Petrônio Domingues, Cidinha da Silva, Luiz Alberto Oliveira Gonçalves, Juliana Borges, Edna Roland, Fátima Oliveira, Olívia Santana, Matilde Ribeiro, Maria Aparecida Silva Bento, Helio Santos, Ivair Santos, Valter Silvério, Djamila Ribeiro, Carla Akotirene, e muitos outros.

IHU On-Line – Quais os maiores desafios para superar o racismo no contexto brasileiro?

Cristiano Rodrigues – O debate brasileiro sobre enfrentamento do racismo concentra-se atualmente em três frentes:

I. Representatividade e representação política: embora sejam temas diferentes, eles são correlatos. A representatividade tem uma dimensão mais simbólica que estrutural e aponta para a necessidade de se romper com o modelo de “história única” de negras e negros apresentados em jornais, revistas, livros didáticos, programas de entretenimento etc. Por trás do lema “representatividade importa” está a busca por aumentar a diversidade e dar maior visibilidade à participação de negras e negros em diferentes setores da sociedade, rompendo com estereótipos e preconceitos e promovendo imagens mais positivas e múltiplas das pessoas negras.

A representação política, por sua vez, diz respeito à ampliação da participação de negras e negros na política institucional. O aumento da participação, em especial de mulheres negras, na política institucional tem um importante papel em mitigar déficits democráticos. Elas atuam como “surrogate representatives”, pois há evidências de que mulheres negras em cargos legislativos que advogam em prol de outros grupos vulneráveis contribuem para democratizar as decisões internas a seus partidos e revertem a invisibilidade histórica de pessoas negras em espaços de poder político.

II. Equidade no mercado de trabalho: apesar das políticas de ação afirmativa em curso atualmente no Brasil, a participação da população negra no mercado de trabalho ainda é bastante limitada aos setores de serviços e cuidado. Cargos de gerências e executivos de alto escalão ainda seguem destinados quase que exclusivamente às pessoas brancas. Nas universidades, há poucos docentes negros em programas de pós-graduação em quase todas as áreas. Por isso, o debate sobre equidade e proporcionalidade no mercado de trabalho é tão importante para o combate ao racismo atualmente.

III. Reforma do Sistema de Justiça Criminal: atualmente 75% das pessoas mortas pela polícia no Brasil são negras e 61% dos detidos. Além disso, 40% das pessoas presas não foram julgadas. Diante desses dados, ativistas dos movimentos negros vêm chamando a atenção para o que consideram ser o “genocídio da juventude negra” e apresentado propostas para a reformulação do sistema de justiça criminal. As propostas de reforma pedem o fim da guerra às drogas, desmilitarização da polícia e criação de uma polícia cidadã, criação de um protocolo de padronização dos dados e informações gerais sobre a segurança pública a ser utilizado em todo o território nacional, eliminação efetiva dos chamados autos de resistência e comunicação imediata da ocorrência de crime aos órgãos periciais, discussão de um Plano Nacional de Redução de Homicídios, entre outras medidas.

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