23 Mai 2019
“A intervenção de Bento XVI é irônica. Ele culpa os teólogos morais revisionistas pela crise, alegando que eles olham apenas para o motivo e as circunstâncias das ações humanas pecaminosas, em vez de se concentrarem na qualidade moral do próprio ato. Mas o próprio Bento é quem se recusa a olhar atentamente para os atos pecaminosos em questão aqui. Esse implacável defensor da existência de atos intrinsecamente maus se recusa a chamar esses atos pelo seu nome moral mais básico: estupro infantil.”
A opinião é da teóloga estadunidense Cathleen Kaveny, professora de Direito e Teologia no Boston College, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em Commonweal, 20-05-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O debate sobre a recente intervenção de Bento XVI sobre a crise dos abusos sexuais se concentrou na sua explicação para as suas raízes. Para o deleite dos conservadores e a consternação dos progressistas, ele culpa a frouxa moral sexual dos anos 1960 em vez do duradouro fenômeno do clericalismo.
Na minha opinião, o problema com a carta de Bento XVI é muito mais fundamental. E também transcende a brecha norte-americana entre progressistas e conservadores. Ele acha que a descrição moral básica dos atos de abuso sexual está errada. Ele os enquadra como atos de sacrilégio em vez de uma grave injustiça.
E daí? Bento claramente acha que essas ações são inaceitáveis – por que discutir sobre os detalhes? Porque os detalhes importam, teórica e praticamente. Se acharmos que a descrição de um malfeito é errada, não conseguiremos captar a realidade moral subjacente da situação. Isso, por sua vez, pode levar a estratégias desastrosas de reforma.
Qual é a descrição moral de base de um ato de abuso sexual clerical? É um terrível ato de injustiça contra pessoas vulneráveis, especialmente crianças? Se assim for, então os abusadores sexuais do clero pertencem à mesma categoria que outros que traíram a sua posição de autoridade dessa maneira: eles são como os professores, os líderes escoteiros e os profissionais da área médica sexualmente abusivos.
Negociando sobre o seu poder, eles infligiram danos físicos e psicológicos sobre as suas vítimas. Nessa perspectiva, o fato de o perpetrador ser um padre católico é uma circunstância que exacerba a ilicitude do ato, mas não muda a sua descrição moral central como um ato de grosseira injustiça.
Ou o abuso sexual do clero deveria ser entendido mais basicamente como um grave ato de sacrilégio? Se assim for, o abuso sexual do clero deveria ser agrupado com outros atos de sacrilégio, como a profanação da Hóstia, a blasfêmia contra a Mãe Santíssima e a prática de qualquer erro moral grave dentro de um lugar sagrado.
A partir dessa perspectiva, o fato de o perpetrador ser um padre não apenas exacerba o ato ilícito; mas também constitui o seu núcleo. O padre está sujando os seus votos sagrados. O fato de ele fazer isso abusando de uma criança aumenta o erro, mas não muda a sua descrição moral central – é um ato de sacrilégio, semelhante a celebrar uma “Missa Negra”.
A carta de Bento XVI parece colocar o abuso sexual clerical na categoria do sacrilégio, e não da injustiça. Ele não usa o termo “sacrilégio”. Mas é a categoria que se encaixa melhor ao seu relato de por que o ato é errado, especialmente quando o sacrilégio é entendido amplamente como uma violação ou abuso do sagrado. Ele apresenta a própria Fé como a vítima principal – e não as crianças cuja integridade foi violada.
De acordo com Bento, a “situação alarmante” é que “a Fé não parece mais ter o grau de um bem que requer proteção”. O que mais o incomoda em relação a uma das vítimas humanas que ele encontrou é que ela não pode mais ouvir as palavras da consagração sem aflição, porque seu padre-agressor as usou durante o abuso. Ele não diz nada sobre como o abuso teria afetado todo o percurso da sua vida. Ele não faz um apelo vigoroso para proteger as crianças, mas, em vez disso, nos implora para que façamos “tudo o que estiver ao nosso alcance para proteger o dom da Santa Eucaristia do abuso”.
A abordagem de Bento tem consequências perigosas. Se a vítima real é a Fé, então a tarefa primordial é proteger a instituição da Igreja, que encarna o corpo místico de Cristo no tempo.
Se a pior consequência da crise é a perda generalizada da fé na credibilidade da Igreja, então é melhor lidar com reivindicações específicas em silêncio – a fim de não escandalizar os fiéis. Os padres ofensores deveriam ser rapidamente laicizados para que não continuem manchando o Corpo de Cristo. Uma vez que eles não façam mais parte da hierarquia, eles não são mais um problema da Igreja.
As vítimas deveriam ser encorajadas a ficar quietas, talvez com um acordo de confidencialidade juridicamente vinculante, para que não corroam a faculdade da Igreja de transmitir a fé. Elas devem ser desencorajadas a buscar indenizações monetárias da Igreja, uma vez que ela é a vítima original e principal da transgressão do padre.
Finalmente, a aplicação da lei secular não deveria ser envolvida na maioria dos casos, já que o seu envolvimento obstrui a natureza mística e transcendente do problema.
Ao enquadrar a ofensa básica como uma questão de sacrilégio, Bento reforça o roteiro desastroso que guiou a resposta da Igreja à crise dos abusos ao longo dos últimos 50 anos. Ele oferece um imponente fundamento teológico para proteger a instituição e não as vítimas. Ele não oferece um caminho limpo e bem iluminado para a reforma, mas sim um desvio de volta para a lama.
A intervenção de Bento é irônica. Ele culpa os teólogos morais revisionistas pela crise, alegando que eles olham apenas para o motivo e as circunstâncias das ações humanas pecaminosas, em vez de se concentrarem na qualidade moral do próprio ato. Mas o próprio Bento é quem se recusa a olhar atentamente para os atos pecaminosos em questão aqui. Esse implacável defensor da existência de atos intrinsecamente maus se recusa a chamar esses atos pelo seu nome moral mais básico: estupro infantil.
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Em que a carta de Bento XVI sobre os abusos sexuais está errada. Artigo de Cathleen Kaveny - Instituto Humanitas Unisinos - IHU