Poesia de Pedro Casaldáliga transforma Maria em todas as mulheres

Nossa Senhora Aparecida. Arte: Clau Souza | Fonte: CEBI

12 Dezembro 2020

Na poesia do teólogo da libertação e bispo Pedro Casaldáliga, Maria de Nazaré é transformada de uma virgem de pele pálida, com seus olhos baixos em submissão, em todas as mulheres respondendo à palavra do Deus da libertação.

O artigo é de Margaret Hebblethwaite, publicado por The Tablet, 10-12-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

Dois meses depois da morte do bispo Pedro Casaldáliga, em 08 de agosto, latino-americanos estão compartilhando uma “visita espiritual virtual” à cidade do santo homem São Félix do Araguaia, no estado do Mato Grosso.

Nós podemos visualizar no Google Maps e clicar nas fotos dos locais de peregrinação. Há uma simples catedral com seu dramático mural da Ressurreição, obra de Maximino Cerezo Barredo – o Cristo ressuscitado liderando um grupo multirracial que carrega uma cruz – e a humilde casa de dom Pedro, quatro quadras a oeste, com paredes apenas de tijolo com foto de Che Guevara, Hélder Câmara, Oscar Romero, Francisco de Assis e Jesus.

Depois há o auditório Tia Irene, onde ocorreu seu funeral, encerrado com uma dança dos indígenas karajá e assistido por milhares de pessoas online, e de onde seu corpo foi carregado nos ombros para o local de seu enterro nas margens do rio Araguaia, entre os túmulos de sem-terra e prostitutas. Essas palavras marcam os locais:

Para descansar
eu quero só
esta cruz de pau
com chuva e sol
estes sete palmos
e a Ressurreição.

Encontrei-me com Casaldáliga no Encontro Intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base, em Duque de Caxias, 1989, e sua sensibilidade ao povo simples confirmou para mim nas breves conversas que eu conversava com um santo. Ele também era um poeta.

De acordo com o jesuíta Víctor Codina, ele foi votado para receber um título honorário de uma faculdade de Teologia de uma universidade europeia, até que o chefe maior da universidade o vetou, declarando que ele não era um teólogo, apenas um poeta. Essa visão enfadonha da teologia provavelmente não seria aceita hoje em dia. A Teologia da Libertação se tornou tão dominante (em todos os lugares, exceto no Vaticano, com exceção do papa Francisco) que quase todo mundo afirma estar fazendo isso.

Casaldáliga era então um teólogo? Se olharmos para sua mariologia, acho que podemos dizer que sim, e o que é tão interessante é que ela evoluiu a partir de raízes católicas tão tradicionais. “Sou apaixonado por mariologia”, escreveu ele na introdução de sua antologia de 1975, “El Credo que ha dado sentido a mi vida” (embora tenha vivido no Brasil desde os 40 anos, nasceu na Catalunha e publicou poemas em português, espanhol e catalão.) “Um livro de ouro, um marco na minha caminhada mariana, foi a pequena obra de Hugo Rahner, ‘Nossa Senhora e a Igreja’”.


Pedro Casaldáliga. Foto: Sonia Oddi | Rede Brasil Atual - RBA

Intrigado, pesquisei o livro na Biblioteca Bodleian: foi publicado em 1951 em alemão, 1961 em inglês. “Maria é simplesmente o grande símbolo da Igreja”, diz Rahner, e “a Igreja é ‘Maria no mundo’”. Com isso, ele quer dizer que tudo o que é dito sobre Maria é verdadeiro em virtude de ser um atributo da Igreja: por exemplo, a Igreja é nossa mãe, a Igreja é gloriosa, a Igreja é imaculada. Mas desde os escândalos de abuso sexual, a conversa sobre a mãe Igreja diminuiu um pouco, e ninguém ousaria mais descrever a Igreja como gloriosa, muito menos imaculada. Então, como Casaldáliga passou dessa teologia pré-conciliar para a mariologia radical que apresenta em seus poemas?

A chave, acredito, é ver a Igreja como o Povo de Deus. Uma vez que isso seja reconhecido, Maria de Nazaré não se fecha em ser uma virgem de pele clara, velada, vestida de azul, com os olhos baixos em submissão, mas se torna qualquer pessoa receptiva a ouvir a palavra de libertação de Deus.

Assim, Casaldáliga, influenciado como admite livremente pela nova teologia pós-Concílio e pela “experiência cristã da luta social”, descobriu que “a sua fé em Maria estava a ser despojada, a algo mais livre e verdadeiro. Ela se tornou cada vez mais, em meu pensamento e em meu coração, a cantora do Magnificat, a profetisa dos pobres libertados”.

É por isso que vemos em seu poema “María de nuestra liberación” (1983) que Maria de Nazaré não é apenas a “noiva prematura de José, o carpinteiro” e “aldeã de um assentamento suspeito”, mas também é:

Favelada de Río de Janeiro,
Negra segregada en el Apartheid,
Harijan de la India,
Gitanilla del mundo;

 

Depois no mesmo poema, ele fala de como nós somos chamados a caminhar e cantar com essa Maria:

Enséñanos a llevar ese Jesús verdadero…
junto a la prima Isabel,
y a la faz de nuestros pueblos abatidos que, a pesar de todo, Lo esperan.

María nuestra del Magníficat,
queremos cantar contigo,
¡María de nuestra Liberación!

 

A mensagem de proclamação, no “Magnificat dos pobres”, é parafraseada como essa (“Canta-nos teu Magnificat”, 2005):

Seu Braço Poderoso,
quebranta o capital, os mísseis e a miséria,
enche dos bens do Reino a humanidade pobre
e despede despidos os acumuladores
para o reino das trevas.

 

Depois da Visitação vem o Exílio, e a vida de uma refugiada é algo que ela compartilha com muitos hoje (“Comadre de suburbio”, 1965):

No hubo piso en Belén; ni hubo piso en Egipto;
y no hay piso en Madrid, para vosotros.
José estará de paro forzoso muchos días...

El Nilo gastará, día tras día, la piel y la hermosura de tus manos anónimas...

Y el Niño crecerá sin más escuelas que la lección del sol y tu palabra.

 

Mas as lições de Maria não são de forma alguma a segunda melhor (“Oración a Nuestra Señora del Tercer Mundo”, 1975):

Mujer campesina y obrera...
enséñanos a leer sinceramente el Evangelio de Jesús
y a traducirlo en la vida
con todas las revolucionarias consecuencias

 

Mais que um poema é dedicado a Maria como uma mulher negra, como este (“Negra”, 1965):

Con el tam-tam creciente de mi pasión bantú
yo te saludo, Negra, divinamente hermosa...

Hay trescientos millones de negros que te esperan, con sus banderas niñas,
en esta patria, verde de Esperanza...

Mecida en tu regazo, donde se acuesta Dios con nuestro sueño,
toda el Africa late con un ritmo de cuna...

 

Casaldáliga também é conhecido por escrever as letras de duas canções de Missas da Libertação. A Missa da Terra Sem Males, de 1979, foi inspirada no povo guarani, cuja cultura sempre sustentou o conceito de uma Terra Sem Males, e a segunda Missa, a Missa dos Quilombos, de 1982, explora a libertação negra, porque um quilombo era um assentamento dos escravos que fugiam. A Missa foi escrita junto com Pedro Tierra e musicada pelo cantor negro brasileiro Milton Nascimento, por um pedido do santo dom Hélder Câmara. Foi celebrada pela primeira vez em frente à Igreja do Carmo, no Recife, local onde Zumbi, líder dos escravos refugiados, teve sua cabeça exposta em uma lança em 1685, depois da queda do Quilombo dos Palmares, há 100km dali.

As músicas popularizaram-se, mas a Missa dos Quilombos foi banida pelo Vaticano até o encontro dos bispos latino-americanos em Santo Domingo, 1992, quando um acordo sobre enculturação foi negociado e possibilitou sua celebração novamente. Um ponto alto da missa original era a apaixonada invocação de “Mariama”, por dom Hélder Câmara, uma forma de expressar “Maria”, usada na África Ocidental.

Claro que dirão, Mariama, que é política, que é subversão, que isso é comunismo. É Evangelho de Cristo, Mariama...
Mariama, Senhora Nossa, Mãe querida, nem precisa ir tão longe, como no teu hino. Nem precisa que os ricos saiam de mãos vazias e os pobres de mãos cheias. Nem pobre nem rico.
Nada de escravo de hoje ser senhor de escravo de amanhã. Basta de escravos. Um mundo sem senhor e sem escravos.

 

Inspirado pelo nome africano Mariama, Casaldáliga incluiu a Louvação à Mariama na Missa, e outra cantora, Maria Cecília Domezi, compôs a conhecida e muito cantada Negra Mariama, que liga a figura negra de Nossa Senhora Aparecida com o chamado de Mariama para os escravizados se libertarem e dançarem o samba, derrubando do trono os latifundiários.

Enquanto isso, as discussões teológicas oficiais sobre o pensamento mariano tendem a se concentrar nas diferenças históricas protestantes/católicos, com os protestantes educadamente sustentando que a evidência do Evangelho sobre ela é fragmentária e ambígua, e os católicos envolvidos na defesa de suas declarações doutrinárias. Essas discussões podem ser um tanto estéreis, e foram superadas pelo crescente interesse das mulheres protestantes em Maria de Nazaré.

Um grupo de 32 mulheres de 16 países da Ásia e do Pacífico em uma conferência em Singapura em 1987 declarou que devemos “resgatar a mariologia do controle dos celibatários católicos e ouvir as vozes das mulheres, tanto protestantes quanto católicas”. Para essas mulheres, “o Magnificat é o ponto de encontro para o ecumenismo, pois os cristãos se unem para trabalhar para libertar os pobres e todas as vítimas da injustiça. É a canção de libertação das mulheres”.

Quando a poesia de um celibatário católico, Pedro Casaldáliga, se tornar mais conhecida, sua contribuição teológica terá cada vez mais relevância para o futuro.

 

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