23 Setembro 2020
“Falamos da verdade singular de cada um, se todas as vezes que tem lugar e acontece, abre-se e constitui um espaço comum e igualitário. Neste aspecto é que há, para além das fake news, uma política da verdade. Uma política que pertence à Verdade, no tempo sempre interminável da Emancipação”, escreve Jorge Alemán, psicanalista e escritor, em artigo publicado por Página/12, 20-09-2020. A tradução é do Cepat.
Diferentes tradições teorizaram a Verdade como uma experiência singular de desvendamento, revelação e vir à luz. Nos casos de Heidegger e Lacan, este desvendamento, esta revelação, nunca se realiza de um modo total e objetivo.
Para Heidegger, no processo de desvendamento sempre permanece algo ignorado, algo não dito totalmente. Não porque deliberadamente se pretenda acobertar algo, mas porque pertence à essência da Verdade não se dizer toda. Em um sentido análogo, para Lacan, a Verdade é um “meio dizer”, sempre faltarão palavras para dizer o Real.
Neste aspecto, para os dois pensadores há um pacto indestrutível entre a Verdade e o Impossível. Tudo isto é o que permite que também em meio à mentira a Verdade abra passagem.
O Capitalismo é o tempo histórico, onde nunca como antes, procura-se através de diferentes dispositivos destruir a Verdade em sua estrutura interna. Para o Capitalismo nada é impossível e tudo pode ser dito. Os diferentes fluxos comunicacionais, semióticos, midiáticos que circulam pelas redes, oferecem uma paisagem onde tudo pode ser dito, repetido, dito novamente, até quebrar no ser singular sua relação com a Verdade.
Trata-se de um fenômeno que vai além da mentira e das fake news. O que se busca é eliminar qualquer diferença entre um dito verdadeiro e a mentira ou, em outros termos, busca-se que a mentira também não possa ser decifrada em seu grão de verdade. Grão que sempre porta de um modo latente. O próprio do Capitalismo não é apenas gerar falsidades, é abolir em cada sujeito a experiência da Verdade e esta operação sempre é realizada com a cumplicidade do sujeito.
De fato, vemos em todas as partes do mundo atores midiáticos que se comportam de um modo idêntico aos processos de viralização. Em um mesmo dia, podem dizer o mesmo e o contrário, com o objetivo de que os ditos cumpram com os imperativos de circulação nas redes. A função destes agentes do Capital é que a verdade, que sempre por definição é igualitária, não sujeito a qualquer hierarquia, não submetida a nenhum poder, desapareça.
O álibi do qual se valem na operação neoliberal do capitalismo é que fazem isso em nome da Liberdade. A liberdade de dizer tudo o que não seja impossível de cumprir com a sua função de limite. A verdade que pode acontecer em qualquer um, começa a ter donos nos “meios de formação de massas”. Tudo pode ser dito em nome da reprodução do poder ilimitado do Neoliberalismo.
Os processos de concentração do Capital e suas diferentes lógicas de acumulação se mimetizam na informação que é distribuída como uma onda expansiva no tecido social. Deste modo, a verdade já não é a singularidade que temos em comum, mas um poder de viralização acéfalo a serviço do crescimento ilimitado do capital. É outra maneira de afirmar que o Comum não é o global, nem o homogêneo, nem o que circula.
As fake news apenas circulam, mas nunca são transmitidas. Só a verdade é o que constitui a transmissão do Comum. De toda esta apertada síntese é possível extrair uma conclusão política sobre a Verdade. Tudo o que propõe destruir a Verdade em sua condição igualitária e ao mesmo tempo singular na poesia de cada um, tudo o que se programa para arruinar a dimensão “não toda” da Verdade, não é mais que um poder que mantém as hierarquias que necessita para a sua reprodução.
Pelo mesmo, falamos da verdade singular de cada um, se todas as vezes que tem lugar e acontece, abre-se e constitui um espaço comum e igualitário. Neste aspecto é que há, para além das fake news, uma política da verdade. Uma política que pertence à Verdade, no tempo sempre interminável da Emancipação.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Capitalismo e Verdade. Artigo de Jorge Alemán - Instituto Humanitas Unisinos - IHU