Por: Ricardo Machado | 17 Outubro 2018
O canto firme e suave que irrompeu o murmurinho do Auditório Central, na Unisinos, foi o sinal para acalmar os ânimos, retomar a concentração e tomar atenção às sete mulheres que compunham a mesa Empoderamento de mulheres dos Povos Tradicionais, evento que integrou a programação da 3ª Semana de Estudos Amazônicos - Semea, organizado pelo Observatório de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida - OLMA e pela Unisinos. Da voz potente e suave de Márcia Kambeba, acompanhada apenas de sua maraca, vem a canção de agradecimento ao sagrado, que abriu os trabalhos da tarde, que teve mediação da psicóloga Aramita Greff.
3º Semea - Auditório Central da Unisinos São Leopoldo (Fotos: Ricardo Machado/IHU)
Márcia Kambeba chamou atenção para os espaços de poder que as mulheres indígenas, cada vez mais, têm ocupado em suas comunidades e fora delas. “As mulheres começaram a fazer pajelança e a ser cacicas. Isso é importante, é fundamental para que possamos mostrar que as mulheres também têm essa participação. Vejam na política, a Sônia (Guajajara), que está nessa mesa e fala por si própria dessa importância”, frisa.
“A arte é ferramenta de resistência e de metodologia de ensino e aprendizagem. O lugar do saber é o lugar do meu ser espiritual. Não reza a lenda que nascemos de uma gota água. Nós nascemos culturalmente dessa gota d’água, que correu no igarapé de onde fez brotar o tronco da árvore e de onde veio o homem e a mulher. Nós indígenas somos poetas por natureza. A gente resiste para que as futuras gerações tenham memória”, conta.
Depois de uma longa fala em seu idioma nativo, diante de uma plateia calada e atenciosa, Elizabeth Tikuna tomou emprestado o português como fala e agradeceu a presença de todos. Lembrou que muitos dos que ali estavam haviam vindo de muito longe e que ela própria veio da tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia. Anciã, valoriza a coragem das muitas mulheres que vivem na floresta, certo sentido, sem temor.
“As mulheres tem muitas tarefas, mais que os homens. Cuida da casa, das crianças, vai para o mato buscar matéria prima para fazer os artesanatos. Enfrenta muitas coisas perigosas, formigas, aranhas, cobras, abelhas miudinhas. Às vezes o dia amanhece bonito, mas cai uma chuva grande e floresta se torna mais perigosa”, relata. “A mulher indígena é cheia de energia, não espera o homem. É muito corajosa e guerreira. Se eu fosse medrosa eu não estaria aqui. Eu tô aqui e tô feliz, mas no fundo do meu coração eu tô triste, porque tenho saudade da minha família”, fala sob os aplausos carinhosos e solidários da plateia.
Ao descrever os papeis desempenhados pelas mulheres indígenas, Marcivana Sateré Mawé ressalta que não há tantas diferenças assim entre suas companheiras da comunidade e as mulheres da cidade. “O papel da mulher indígena não é muito diferente de muitas famílias brasileiras, com o problema do alcoolismo e da dependência química do marido e dos filhos”, lamenta. “No meu povo a mulher sempre teve um papel muito importante, pois como coube a elas cuidar do jardim e das plantas medicinais, as mulheres sempre foram as pajés e hoje, felizmente, temos muitas mulheres dentro das universidade”, pontua.
Além disso, ela destaca o papel da mulher como a responsável por manter sua cultura de origem viva. “Se um Tikuna casa com uma Sateré Mawé cabe a ela ensinar ao homem sua cultura, então a mulher tem um papel muito importante na produção de lideranças indígenas”, explica.
Sônia, à esquerda
“Estou saindo de uma campanha eleitoral como mulher indígena, pela primeira vez na história para o Executivo Federal, em 518 anos. Agora tivemos mulher indígena eleita para o Congresso e isso é a primeira vez que ocorre desde a eleição de Mario Juruna, há 30 anos”, diz Sônia Guajajara com a eloquência de quem aprendeu a lutar por um país mais justo e se tornou uma das vozes indígenas mais potentes na contemporaneidade.
“Este ano, de 2018, está na história e ficou na história pela diversidade das candidaturas, mulheres trans, negros, pessoas com deficiência. Tivemos um número grande de representantes da diversidade. No atual Congresso, temos mais de 500 deputados, apenas 52 mulheres, sete negras. O novo Congresso de um passo a mais, porque conseguimos um percentual de 15% de mulheres, o que pode parecer pequeno, mas é uma conquista importante”, avalia Sônia.
Para Sônia Guajajara é importante que as mulheres ocupem espaços de representação política, uma vez que são as primeiras vítimas dos retrocessos. “Somos as primeiras a ser impactadas quando o agronegócio atinge nossas vidas, quando vem as mudanças climáticas. São as mulheres indígenas sistematicamente estupradas pelo colonialismo, pela ditadura e pelo agronegócio. Quando a gente se coloca contra essas pessoas, estamos lutando para não sermos estupradas”, instiga. “A Comissão Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB e as universidades têm uma voz forte e elas precisam se posicionar contra o autoritarismo do Bolsonaro. Precisamos nos posicionar dentro da nossa casa, não é na rua, é dentro da nossa casa”, convoca. “Nós temos muitas divergências com PT, nenhum outro movimento se colocou tão contrário ao desenvolvimentismo do PT quanto os indígenas, mas agora vamos defender a democracia para continuarmos fazendo a luta contrária, a pressão. Se a gente perder a democracia, perderemos esse direito”, complementa.
A história de cantora amazonense Djuena Tikuna é a da perseverança. Depois de ter desistido de seguir a graduação na Universidade Estadual do Amazona – UEA, Djuena encontrou no canto a força de sua indigeneidade o caminho para superar os preconceitos. “Nós temos que ser fortes para encarar a sociedade não indígena. Então através da música eu consegui uma forma de ser forte. Temos que levar nossa arte e nossa poesia porque ela é importante para nos fortalecer”, conta Djuena.
“Estou trabalhando também no Mídia Índia, porque o que o que a mídia mostra é quando o índio erra, mas o bom a mídia nunca mostra. Nós queremos mostrar nossa aldeia, esse é o nosso trabalho”, pondera. Antes de encerrar sua fala, Djuena cantou, à capela, uma música em seu idioma nativo. “Vou cantar uma canção que diz que a velha anciã vive em mim, na minha juventude. Escrevi para a minha avó que me ensinou muita coisa, é o conhecimento que passa de geração para geração”, conta, canta e encanta.
“Faço parte de uma mesa composta de sete mulheres. Então eu gostaria que pudéssemos pensar deste lugar de fala, um lugar de fala que é de mulheres negras e indígenas e de mulheres de um modo geral, que nasceram em um tempo e em uma era de grandes desafios”, fala Yashodan. “No nosso lugar de fala, onde estivermos, eu invoco para que possamos repactuar nossa humanidade. Precisamos não de tolerância, mas de respeito. Esse é o meu direito de falar, não quero o lugar de fala de ninguém, mas o meu próprio. Um lugar para a fala dos meus filhos e dos filhos dos filhos de meus filhos”, ressalta.
“Como pessoas, não podemos silenciar quando escutamos ‘vamos fuzilar a petralhada’, isso não é brinquedo. Ninguém brinca ao dizer que preferia a morte a ter um filho gay. Estamos ouvindo e vendo isso. Precisamos olhar para o lado e para dentro de nós para sabermos o nosso lugar de fala e o que sou capaz de transformar”, convoca. Ao encerrar sua fala, e por conseguinte a mesa que reuniu relatos de vidas de várias mulheres, Yashodan pediu a todas e todos para que fôssemos capazes de recuperar nossa humanidade. “Precisamos de um tripé para repactuar a nossa humanidade: cultura, espiritualidade e o nosso lugar de fala (quem somos e quem falamos). A noite escura vai passar, mas precisamos ter fé. Nada justifica a falta de esperança”, finalizou.
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Mulheres da floresta, mulheres da cidade, mulheres guerreiras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU