Professor, que está lançando livro sobre a conjuntura que desemboca na adesão social a valores da extrema-direita, reconhece o avanço da vitória de Lula nas eleições, mas diz que ainda é preciso muito mais
Caímos num labirinto. E, para sair desse lugar, muitas vezes nos debatemos, corremos, até fracassamos e nos desesperamos. Segundo Valério Arcary, seguimos nesse labirinto, um “labirinto reacionário”. “Ainda não se reverteu a situação reacionária. Mas a vitória de Lula foi gigante. A esperança pode vencer o medo. Só que a luta contra o bolsonarismo não pode parar”, segundo ele. É preciso ter consciência de que “o bolsonarismo não é um ‘cadáver insepulto’. A ‘massa da burguesia’ abraçou um programa de extrema-direita. O bolsonarismo é a principal força política e social de oposição”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Arcary observa que “a capacidade de mobilização da esquerda é baixa. Ainda assim, existiram alguns pequenos, mas animadores sinais de uma recuperação do estado de espírito, em setores de vanguarda, ou em algumas categorias de trabalhadores melhor organizados”. Por isso, ele indica que “o papel da esquerda deve ser aumentar o nível de consciência. Só que não se trata somente de um problema de comunicação. É verdade que a agitação nas redes sociais é insuficiente. Mas este não é o problema fundamental. A questão central é que as frentes amplas precisam acreditar que é possível vencer para se mobilizarem aos milhões”.
Tais movimentos consistem naquilo que o professor chama de uma inversão de forças na relação social, pois foi justamente nas falhas de uma construção democrática à esquerda que a extrema-direita encontrou terreno para germinar seus ideais. “O mundo e o Brasil mudaram. A questão estratégica central é inverter a relação social de forças e abrir o caminho para um ascenso de luta de massas. Sem luta social, o governo Lula irá fracassar”, sintetiza.
Valério Arcary (Foto: Revista Herramienta)
Valério Arcary possui graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo – USP. É professor aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo – IFSP. Está lançando o livro “Labirinto reacionário: o perigo da derrota histórica” (Usina Editorial, 2023). Entre outras obras, também é autor de “Ninguém disse que seria fácil” (Boitempo, 2022).
IHU – Como fomos parar dentro de um labirinto reacionário? E já encontramos uma saída?
Valério Arcary – Sim, é decisivo compreender o labirinto reacionário: afinal, como foi possível? Aconteceu e foi terrível. Por quê? Um bom critério é colocar as “sandálias da humildade”. Esse tema será investigado nos próximos anos e, como todo problema complexo, tem muitas determinações.
Labirinto reacionário: o perigo da derrota histórica (Usina Editorial, 2023), de Valério Arcary Arcary. | Imagem: divulgação
A avalanche bolsonarista culminou em uma dinâmica social contrarrevolucionária muito profunda, algo só comparável ao que o país viveu sobre a ditadura. As três variáveis mais importantes foram:
(a) um processo de passagem da maioria da burguesia do apoio crítico aos governos do PT, entre 2003 e 2013, à oposição moderada, entre 2013 e dezembro de 2015, até à oposição frontal e o impeachment de Dilma Rousseff;
(b) a derrota da onda de mobilizações de junho de 2013 – só comparáveis pela sua massividade com as Diretas Já, em 1984 – que explodiu, essencialmente, de forma espontânea e acéfala;
(c) o que nos remete ao deslocamento radical da classe média à oposição aos governos do PT, assim como de setores massivos da classe trabalhadora, no Sudeste e no Sul.
Esse giro político-social começou com o mensalão, passou pela degradação da situação econômico-social depois da crise de 2008-2009, deu um salto a partir de 2013, quando grupos fascistoides se atreveram a sair às ruas, e agravou-se, qualitativamente, com a Lava Jato, a partir de novembro de 2014. Os fatores determinantes parecem ter sido quatro:
(a) a estagnação com viés de queda da renda dos setores médios, com o impacto da inflação dos serviços e o aumento dos impostos;
(b) a percepção de que a vida piora porque os governos são corruptos, muito especialmente os do PT, porque líderes dos trabalhadores no poder “se lambuzam”;
(c) o aumento da violência urbana, das taxas de homicídio, e o fortalecimento do crime organizado;
(d) a reação de um setor mais retrógrado da sociedade, mais racista, misógino e homofóbico, ao impacto da transição urbana, geracional e cultural da sociedade.
Resumo da ópera: surgiu um movimento político-cultural neofascista de massas. Ainda não se reverteu a situação reacionária. Mas a vitória de Lula foi gigante. A esperança pode vencer o medo. Só que a luta contra o bolsonarismo não pode parar.
IHU – Em que medida esses fatos de 2013 e 2015 alimentam uma ação reacionária no país? Por que, diante desses acontecimentos, ao invés de cairmos na extrema-direita, não fizemos uma curva acentuada à esquerda?
Valério Arcary – 2015 não foi uma continuidade das jornadas de 2013. A partir de junho de 2013 havia uma disputa em curso. Dilma Rousseff venceu o segundo turno em outubro de 2014. Mas, depois, sofremos derrotas duras. A ofensiva burguesa em 2016 foi monumental, fraturou a sociedade, ganhou os setores médios, deslocou uma maioria social que elegeu Bolsonaro em 2018.
Fatores objetivos e subjetivos explicam por que, desde 2016, ainda é tão difícil a entrada em cena da classe trabalhadora em grandes mobilizações:
(1) o desemprego, portanto o medo das demissões, e a ferocidade da luta diária pela sobrevivência alimentam a insegurança social e a desesperança política;
(2) as políticas públicas dos últimos 30 anos, como a criação de uma rede de seguridade social com a Previdência, o SUS, o Bolsa Família, entre outras, não existiam em 1984, quando das Diretas Já, ou em 1992, quando do Fora Collor, e, paradoxalmente, atenuam o impacto da crise econômico-social;
(3) outras redes de amortecimento da crescente pauperização, como a expansão das igrejas evangélicas, e outros processos, como a imigração e as remessas dos imigrantes;
(4) o aumento do medo da repressão;
(5) a desindustrialização, as transformações estruturais no mundo do trabalho, portanto a maior debilidade orgânica dos setores organizados da classe e a expansão do semiproletariado;
(6) o peso das derrotas acumuladas na consciência da classe, em especial, o impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro;
(7) as ilusões em Bolsonaro ou o giro à direita de uma parcela da classe trabalhadora mais conservadora nos valores e mais vulnerável, politicamente, ao discurso da guerra contra a criminalidade, ou até contra a corrupção;
(8) a força da ofensiva burguesa e sua narrativa de que o crescimento econômico é uma questão de tempo, desde que sejam feitas as reformas;
(9) o deslocamento da classe média para a extrema-direita e a pressão do impacto das suas mobilizações desde 2015-2016;
(10) os gravíssimos erros dos governos do PT, em especial da política de Dilma Rousseff depois das eleições de 2014.
Alguns desses fatores pesam mais e outros, menos. O papel da direção tem que ser inspirador. Mas a autoridade da esquerda diminuiu, e muito. Mesmo quando o fenômeno é contraditório. A do PT caiu muito e a do PSOL aumentou um pouco.
Sim, há responsáveis. Eles têm nome. Mas dizer que a culpa é, em primeiro lugar, do PT, e repeti-lo todos os dias, não vai mudar a insegurança do povo que está atormentado na luta diária pela sobrevivência. Um balanço rigoroso deve ser justo.
Os limites do PT ficaram evidentes: mantém compromisso com um projeto de regulação do capitalismo. O desafio é que mesmo reformas elementares precipitaram como reação um golpe. E as expectativas das massas permanecem muito pequenas. A crise terá que ser muito mais grave para que a disposição de luta ganhe impulso mais radical.
Ninguém tem o tipo de autoridade que Lula teve no seu auge, nem o próprio Lula, mas ele é a liderança mais respeitada. Ainda falta autoridade moral, política e intelectual na esquerda. A moral vem do exemplo. Lula e Boulos a tem. Mas ninguém tem muita.
A intelectual vem da força das ideias. Nesse terreno, permanecemos na defensiva. Nada disso quer dizer que a relação social de forças entre as classes não pode se alterar. Claro que pode. O papel da esquerda deve ser aumentar o nível de consciência. Só que não se trata somente de um problema de comunicação. É verdade que a agitação nas redes sociais é insuficiente. Mas este não é o problema fundamental. A questão central é que as frentes amplas precisam acreditar que é possível vencer para se mobilizarem aos milhões.
IHU – A esquerda nacional, hoje, é capaz de compreender as novas formas de organização do trabalho e, especialmente, essa nova classe trabalhadora que emerge neste cenário?
Valério Arcary – Sim, há uma nova classe trabalhadora, tanto na dimensão objetiva quanto subjetiva. Temos duas componentes na classe. Os 37/38 milhões com carteira assinada, entre eles 12 milhões de operários industriais, e os 13/14 milhões de funcionários públicos. A outra componente são os 10 milhões que têm patrão, mas não têm contratos, e os 25 milhões que trabalham por conta própria, um semiproletariado. Mas estou entre os que defendem que as maiores mudanças são subjetivas. A classe trabalhadora é um gigante social. É imensamente grande e poderosa. Mas não sabe a força que tem. Perdeu confiança e está dividida.
Já a esquerda é muito plural. Temos uma esquerda política organizada em partidos, como o PT, PSOL, PCdoB e outros. Temos uma esquerda social nos movimentos populares, sindicais e agrários, negros e feministas, estudantil e LGBTs, ambientais e da cultura, etc. Temos uma esquerda acadêmica. Há setores moderados e radicais e, entre eles, muitas correntes intermediárias. A esquerda é, em sua imensa maioria, muito moderada. Dramaticamente, moderada.
Entretanto, acredito que toda a esquerda foi sacudida, em algum grau, por cinco grandes mudanças:
(a) pelo impacto da restauração capitalista há 30 anos;
(b) pela ofensiva neoliberal na América Latina e a onda de desindustrialização;
(c) pela emergência do aquecimento global;
(d) pelas jornadas de junho de 2013, dez anos atrás;
(e) pela tragédia do golpe institucional e o perigo neofascista de uma derrota histórica desde 2016.
O mundo e o Brasil mudaram. A questão estratégica central é inverter a relação social de forças e abrir o caminho para um ascenso de luta de massas. Sem luta social, o governo Lula irá fracassar.
IHU – O que deve estar na pauta do progressismo de esquerda no século XXI? Qual é a luta central e como ela vem sendo tratada?
Valério Arcary – A luta central é a luta pelo poder. Uma esquerda que perde o “instinto de poder” é impotente. Irá se perder sem bússola de classe. O programa da esquerda dever ser o socialismo. Um socialismo que vá além das tragédias do século passado.
O mundo não vai mudar de “baixo para cima” em uma eterna luta por concessões negociadas. Mesmo quando conquistamos alguns direitos, como o Bolsa Família, eles permanecem ameaçados, são efêmeros, transitórios. O caminho não poderá ser outro que a mobilização permanente para ir além do capitalismo. Esta luta pela revolução brasileira passa pela luta por reformas que podem mobilizar as amplas massas. Mas há obstáculos e devemos ser lúcidos.
Fatores objetivos e subjetivos explicam por que ainda é tão difícil a entrada em cena da classe trabalhadora. Estes, como citado anteriormente, são:
(1) temos dez milhões no desemprego, quatro milhões no desalento;
(2) as políticas públicas dos últimos 30 anos atenuam o impacto da crise econômico-social;
(3) há outras redes de amortecimento da crescente pauperização;
(4) o aumento do medo da repressão com o surgimento de milícias nas periferias e o papel desagregador do crime organizado;
(5) a desindustrialização, as transformações estruturais no mundo do trabalho;
(6) o peso das derrotas acumuladas na consciência da classe;
(7) o giro à direita de uma parcela da classe trabalhadora;
(8) o deslocamento da classe média para a extrema-direita;
(9) os gravíssimos erros dos governos do PT; e
(10) a tragédia da dispersão e até fragmentação da esquerda radical.
IHU – O governo Lula 3 é/será um governo de esquerda? Pelos movimentos que temos visto nesses cinco meses da posse, qual a estratégia central do governo? É o caminho certo?
Valério Arcary – O governo Lula é um governo de colaboração de classes, com setores capitalistas que são uma representação orgânica de frações da classe dominante. Há burgueses no governo, mas é um governo de gestão anormal dos negócios, porque tem na liderança Lula e o maior partido é o PT. Sim, o governo está em disputa. Mas tudo que existe na vida tem contradições e está em disputa.
A questão estratégica central é que o bolsonarismo ainda não foi derrotado. Bolsonaro está na defensiva, mas a extrema-direita permanece muito forte. Não se deve apoiar incondicionalmente o governo. Mas não se pode estar, incondicionalmente, contra o governo, diante da ameaça neofascista.
O caminho da mobilização social é a chave para desbloquear a situação. A história do capitalismo refuta a possibilidade de uma gradual, crescente, ininterrupta redução da desigualdade. Somente quando estiveram ameaçados seriamente pelo perigo revolucionário – pela Comuna de Paris em 1871, na sequência da revolução de outubro na Rússia, ou depois da derrota do nazifascismo, por exemplo –, o capital aceitou fazer concessões. Nenhuma classe proprietária, em nenhuma experiência histórica, renunciou voluntariamente aos privilégios. Foi a luta pelas revoluções que abriu o caminho das reformas.
O projeto histórico de reforma do capitalismo tem fracassado repetidas e incontáveis vezes. Todas as experiências de reformas foram passageiras e efêmeras. Assim que o capital conseguiu neutralizar a força social dos trabalhadores, anulou para a geração seguinte as conquistas da geração anterior
IHU – A extrema-direita, no Brasil e no mundo, já viveu seu ápice? Ou ainda tem muito espaço para sua reação e viradas, voltando a grandes pontos de poder?
Valério Arcary – No mundo o neofascismo ainda é uma corrente muito poderosa. Trump disputará com Biden nos EUA. Marine Le Pen é a principal liderança de oposição na França, ainda hoje disputando com Mélenchon contra Macron. No Cone Sul, vem crescendo, como vimos na recente eleição no Chile e como indicam as pesquisas das presidenciais argentinas.
No Brasil, o ápice foram os últimos quatro anos. Mas a classe dominante ainda está dividida, mesmo depois da vitória eleitoral de Lula em 2022. A derrota eleitoral de Bolsonaro não mudou ainda a relação social de forças. O bolsonarismo não é um “cadáver insepulto”. A “massa da burguesia” abraçou um programa de extrema-direita. O bolsonarismo é a principal força política e social de oposição.
A fração mais reacionária dos capitalistas se deu conta da gravidade do impasse estratégico imposto pela estagnação de longa duração. Esta foi uma das determinações que explicam o golpe institucional dissimulado de impeachment em 2016. Defendem um novo projeto estratégico: a subversão do pacto social estabelecido nos últimos 30 anos, desde o fim da ditadura militar, o intervalo mais longo de regime democrático-eleitoral da nossa história. Esse pacto passou pelo reconhecimento de direitos, como a Previdência, o SUS (Sistema Único de Saúde) e a universalização do acesso à educação básica, entre outros. Querem voltar ao poder e serão uma oposição implacável a Lula.
IHU – Fala-se em derrota da extrema-direita no Brasil, por meio da vitória de Lula nas urnas. Mas temos um dos congressos mais conservadores e reacionários da história. Afinal, que derrota é essa?
Valério Arcary – Foi uma derrota eleitoral. Um novo momento na conjuntura não equivale a uma nova situação da luta de classes. A situação, paradoxalmente, ainda é defensiva. A relação social de forças ainda não mudou, como podemos observar pelo ambiente dentro das grandes empresas e constatar pelas pesquisas de opinião. Nas fábricas e nas escolas, nos bairros e nas famílias, permanece a fratura política. Na métrica das redes sociais, o engajamento da esquerda ampla até diminuiu um pouco. A capacidade de mobilização da esquerda é baixa. Ainda assim, existiram alguns pequenos sinais, conquanto animadores, de uma recuperação do estado de espírito, em setores de vanguarda, ou em algumas categorias de trabalhadores melhor organizados.
O mais importante foi a mobilização nacional de 9 de janeiro, um dia depois do ensaio golpista de Brasília que, em São Paulo, superou 50 mil na Paulista.
IHU – Para além das questões políticas e político-partidárias, quais são os elementos que fazem germinar a semente da extrema-direita? Qual o papel da tecnologia nesse processo?
Valério Arcary – Esse giro político-social começou com o mensalão, passou pela degradação da situação econômico-social depois da crise de 2008-2009, deu um salto a partir de 2013, quando grupos fascistoides se atreveram a sair às ruas, e agravou-se, qualitativamente, com a Lava Jato, a partir de novembro de 2014.
Os fatores determinantes parecem ter sido os mesmos quatro citados anteriormente: (a) a estagnação com viés de queda da renda dos setores médios; (b) a percepção de que a vida piora porque os governos são corruptos; (c) o aumento da violência urbana; (d) a reação de um setor mais retrógrado da sociedade.
Estivemos quatro longos anos, dois de pandemia, com falta de oxigênio. Respiramos, nestes quatro meses. Mas Bolsonaro ainda está, politicamente, “vivo” e não deve ser subestimado. A derrota eleitoral de outubro não enterrou o bolsonarismo. A extrema-direita continua sendo a maior corrente política de oposição ao governo nas ruas e nas redes.
As campanhas diárias dos neofascistas nos grupos de Telegram e WhatsApp são uma intoxicação ininterrupta. Há um envenenamento ideológico com a denúncia sistemática de que a esquerda é corrupta. Não é alimentada, somente, pelo ressentimento social e ideologia fascistizante. Há um caldo de cultura que “naturaliza” a violência. O horror da onda de ataques insanos nas escolas é, tragicamente, uma expressão.
IHU – De forma breve, como o senhor explica a queda do capitalismo brasileiro? Como esse capitalismo tem reagido para se manter?
Valério Arcary – A decadência de uma nação é um processo histórico grave. Nenhuma sociedade mergulha em decadência, indefinidamente, sem que precipite, em algum momento, uma crise social explosiva. O capitalismo brasileiro não está somente atravessando uma crise econômica, como tantas outras do passado. Ele entrou em decadência.
O Brasil se transformou muito desde o fim da ditadura militar. Aconteceram, neste intervalo de uma geração, fases mais intensas de declínio, como a década perdida dos anos 1980, e fases de recuperação, como a partir da segunda metade da primeira década do século XXI. Mas a tendência histórica não foi interrompida depois que se encerrou a etapa dinâmica de transição do mundo agrário para o mundo urbano em 1980.
Entre 1950/80, o Brasil foi o primeiro destino do investimento estrangeiro entre as nações da periferia, e duplicava o seu PIB a cada década. A desaceleração do crescimento médio anual, desde 1980, de taxas em torno de 7% para taxas inferiores a 3%, e a estagnação econômica desde 2014, é um indicador dramático da decadência. O argumento liberal é que se impõe para “ontem” a necessidade de um choque de redução de custos para atrair investimentos, sobretudo estrangeiros. Sonham que uma parte da imensa massa de capitais, que se deslocou para a China e Ásia desde a década de 1990, possa se interessar pelo Brasil. Por isso, defendem um ajuste fiscal draconiano de despesas públicas e a redução da carga fiscal.
A extrema-direita defende que a “democracia ficou cara demais”. Ambicionam impor uma derrota histórica à classe trabalhadora. Querem uma mudança de regime, inclusive com ameaças às liberdades democráticas, que seria instrumental para a destruição das conquistas sociais. Bolsonaro foi a personalização deste programa contrarrevolucionário.
IHU – No que consiste o eleitoralismo, que aparece em seu livro, e como ele se move no cenário nacional?
Valério Arcary – Eleições são um terreno de luta de classes. Mas um terreno limitado. Uma estratégia estritamente eleitoral não é séria no Brasil. Não aprendemos nada com o golpe de 2016? Sem grandes rupturas, não vamos mudar o país.
O eleitoralismo é, também, uma forma política de “vale tudo” em função do desejo de ganhar votos e eleger deputados a qualquer preço. Pensamento mágico é deixar-se seduzir pela força do desejo. É, também, uma degeneração carreirista de quem ambiciona “subir na vida” em voo solo. É um mau critério, mesmo quando as perspectivas eleitorais da esquerda são boas. Mas quando são difíceis, como confirmamos dramaticamente em 2022, porque a vitória de Lula foi muito estreita, o eleitoralismo é a antessala de um pessimismo por antecipação. E o pessimismo é a antessala da desmoralização.
Na história, existem derrotas eleitorais que são vitórias políticas, como a de Lula em 1989, e vitórias eleitorais que são derrotas políticas, como a de Dilma Rousseff em 2014. Mas a pior derrota é a derrota sem luta. Quando o trabalhador comum, o cidadão médio, se sente encurralado, ele tende a abandonar a credulidade política. A credulidade é uma forma da inocência política. Esta é a janela por onde passa a onda de radicalização social.
Quando esta radicalização social virá, não sabemos, porque se decide no campo da luta política, que é o campo das conjunturas, dos ritmos curtos, das respostas rápidas, das iniciativas inesperadas, das surpresas, dos golpes e contragolpes, das respostas instantâneas. Mas nenhuma sociedade mergulha em decadência sem que haja resistência, portanto, luta social.
A psicologia social não opera da mesma forma, nos mesmos ritmos, que a psicologia dos indivíduos. Na dimensão pessoal, qualquer ser humano pode desistir de lutar em defesa de si mesmo. Quando faz isso, está desgastado pelo cansaço, ou pelo desânimo, até pela desilusão. As classes sociais, não. As classes têm que lutar. Sempre lutam. Na maior parte do tempo, resistem, e só um setor mais ativo avança. E esse setor que vai na dianteira da luta se sente, incontáveis vezes, frustrado ou abatido, porque sabe que luta pelos outros, luta por todos, no lugar dos que não se movem, não se arriscam.
É comum que esse desenvolvimento desigual das mobilizações gere um certo desespero na vanguarda. As amplas massas não lutam com disposição revolucionária de vencer, a não ser excepcionalmente. Mas quando surge essa disposição, ela é a força social-política mais poderosa da história. Não será possível transformar o Brasil em um Bangladesh sem grandes lutas sociais. Mas grandes lutas podem ser vitoriosas ou derrotadas. Oportunidades podem ser aproveitadas ou desperdiçadas.
IHU – Em que medida as investigações, e até eventuais julgamentos e condenações, sobre ações e agentes do governo Bolsonaro, incluindo o próprio Jair e seus filhos, podem representar contenções à extrema-direita e seu ideário?
Valério Arcary – São uma forma de contenção. O desenlace dos processos na Justiça contra Bolsonaro é, por enquanto, incerto, ainda que a hipótese mais provável, depois de 8 de janeiro, seja a perda de direitos políticos. Se confirmada, a impossibilidade de concorrer às eleições abrirá uma disputa pela sua substituição.
Bolsonaro permaneceria a liderança mais importante do movimento político-social da extrema direita, e teria a última palavra na escolha. A “normalização” do bolsonarismo como uma legítima corrente política, que já se insinua na mídia burguesa, é uma aberração, uma atrocidade. A prisão de Bolsonaro, sem uma mobilização popular de massas, não será possível. Mas a sua punição é uma condição incontornável da defesa das liberdades democráticas. Qualquer vacilação diante do neofascismo será fatal.
IHU – Como analisa a direita tradicional no cenário nacional? Podemos vê-la em representações na Câmara ou no Senado, ou ela reside na extrema-direita ou centro-esquerda?
Valério Arcary – A influência política da direita tradicional, que se fez representar entre 1985/2015, por 30 anos, pelo MDB, PSDB e os herdeiros do PFL/Democratas, foi devorada pelo bolsonarismo. Por quê? Porque a “massa” da burguesia girou, politicamente associada à radicalização da classe média, na direção dos neofascistas para derrubar o governo Dilma Rousseff. Ambicionavam um choque brutal de capitalismo e impor uma derrota histórica à classe trabalhadora.
Estudar os inimigos de classe é essencial. É preciso evitar um erro metodológico da inversão de perspectiva. Não é nunca o futuro que explica o passado, mas o contrário. O que passou é que determinou o desfecho. Toda luta político-social, inclusive as eleitorais, são um processo em disputa. O desenlace da luta não explica o processo. Tal erro é uma ilusão de ótica. Esse método anacrônico chama-se finalismo. Fatalismo não é análise séria. São as condições concretas da luta travada que explicam por que os vencedores prevaleceram. Isso é bom marxismo.
Mas o governo Bolsonaro foi uma catástrofe tão grande que precipitou uma divisão na classe dominante. Um setor mais concentrado tentou a construção da terceira via e fracassou e deu um apoio tático a Lula. Agora quer cobrar a fatura. Tem um pé no governo e outro na oposição. Estão abraçados com Arthur Lira.
IHU – Como explica o que foi o 8 de janeiro? Hoje, depois de todas as reações e desdobramentos daqueles atos terroristas, podemos afirmar que o ânimo que moveu àquelas pessoas é coisa do passado?
Valério Arcary – Não é passado. É um perigo latente. Mas não é provável que haja, em prazos previsíveis, um novo levante. O que aconteceu ontem foi uma semi-insurreição, ponto. Caótica, demencial, obscura, mas uma insurreição.
O objetivo era a derrubada do governo Lula. Felizmente, não houve mortos. Não foi uma manifestação de protesto. Não foi o descontrole de uma “explosão” de radicalização espontânea. A aparente “acefalia” da subversão não deve esconder a responsabilidade de quem preparou, organizou e dirigiu a tentativa de tomada do poder. Obedecia a um plano. Foi uma tentativa amalucada de provocar uma quartelada. Um levante desarmado, mas não por isso menos perigoso. Obedecia ao cálculo delirante de que bastaria uma fagulha para que alguns generais colocassem os tanques nas ruas.
Que a faísca não tenha gerado um incêndio com a saída às ruas de tropas militares dispostas a oferecer sustentação ao golpe de Estado não diminui a gravidade da sublevação. E não anula o perigo que é uma evidente simpatia policial e militar pelo movimento bolsonarista. Uma desconcertante operação articulada, planejada e, minuciosamente, orquestrada que não pode ser subestimada.
A “desbolsonarização” deve ser uma estratégia permanente. Abriu-se um novo momento na conjuntura, uma oportunidade que não podemos perder, com o fiasco da aventura golpista. A hora é de contraofensiva implacável. Infelizmente, é necessário que sejamos conscientes que a sociedade brasileira continua muito fraturada.
IHU – O que essa experiência de degradação social, ambiental, econômica, política e moral legou ao Brasil?
Valério Arcary – Um trauma histórico. Foram sete anos de derrotas acumuladas. Muito sofrimento. Nesse contexto, a vitória de Lula foi gigante. Uma regressão histórica é mais do que um processo ininterrupto de decadência econômica, ou estagnação na longa duração, de degradação social pelo desemprego crônico, ou de degeneração política pelo abuso de poder de um governo de extrema-direita liderado por um presidente neofascista com projeto bonapartista. Uma regressão histórica é uma catástrofe civilizatória.
Certa vez, Marx comentou que a história podia ser estupidamente lenta. É bom lembrar que a ditadura militar tinha muito apoio popular no início dos anos 1970, mas perdeu as eleições em 1974 e, depois, em 1984, mais de cinco milhões de pessoas foram às ruas nas Diretas Já em 1984: demorou mais de dez anos; que o governo Sarney foi ultrapopular no ápice do Plano Cruzado em 1986, mas depois milhões aderiram à greve geral em 1989, e Lula chegou ao segundo turno: foi muito mais rápido; que o governo Collor era superpopular enquanto a inflação não disparou em 1991, mas depois, outra vez, alguns milhões foram às ruas para derrubá-lo: dois anos; que o governo FHC era megapopular em 1994 e foi reeleito em primeiro turno em 1998, mas depois, em 1999, a campanha Fora FHC mobilizou centenas de milhares, e abriu caminho para a eleição de Lula em 2002.
IHU – O senhor milita há cinco décadas pela construção do socialismo. Como resume essa luta? Quais os desafios para a construção do socialismo no século XXI?
Valério Arcary – Até na esquerda são muitos os que consideram que o socialismo, como aposta histórica de ir além do capitalismo, fracassou. Não são poucos aqueles que, na esquerda, argumentam que o socialismo seria uma solução excessivamente radical. Afirmam que a desigualdade social poderia ser diminuída corrigindo as diferenças da distribuição de renda, mas preservando o capitalismo. Afinal, nos países centrais, a desigualdade social não foi reduzida no pós-guerra, depois de 1945? Sim, foi reduzida na Europa, nos Estados Unidos e no Japão, enquanto aumentava no resto do mundo, assim como, no final do século XIX, o padrão de vida médio das classes trabalhadoras elevou-se em alguns países europeus. Mas foi uma experiência histórica excepcional e transitória. Nos últimos 30 anos, aumentou a desigualdade entre o centro e a periferia, e aumentou, também, a desigualdade social dentro dos países centrais.