04 Janeiro 2024
"Aos altos salários, multiplicam-se os penduricalhos que conduzem aos privilégios, benesses de vária natureza. Em torno dos mais fortes, seja pelo dinheiro ou pelo poder, fecha-se o círculo de aço, onde um punhado de milionários e bilionários disputam o ranking jornalístico de quem possui a maior fortuna. Ao legalizar as fortunas hereditárias, direta ou indiretamente admite-se que o poder político passe com naturalidade de pai para filho, e deste para o neto, e assim sucessivamente", escreve Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS, Assessor do Serviço Pastoral dos Migrantes - SPM/São Paulo.
O ex-presidente Donald Trump segue a todo vapor com sua pré-candidatura para voltar à presidência dos Estados Unidos. O Tribunal superior do Colorado, porém, o declarou inelegível. Os demais estados ou a Suprema Corte do país poderão fazer o mesmo? Aconteça o que acontecer, o exemplo dos EUA, maior e mais poderosa democracia do planeta (entre outras que poderiam ser nomeadas), coloca em xeque a própria prática democrática. A pergunta torna-se oportuna e fundamental: até que ponto os três poderes democráticos – Legislativo, Judiciário e Executivo – serão capazes de encontrar respostas para os desafios, contrastes e contradições do mundo contemporâneo, onde a o poder da Internet ocupa tamanho e tão decisivo raio de ação? O que teria a dizer sobre isso Alexis de Tocqueville, o autor d’ A Democracia na América?
O certo é que o regime democrático nasceu, cresceu e se consolidou juntamente com o sistema de produção capitalista, o qual, por sua vez, especialmente nas últimas décadas, vem provocando enormes e escandalosas assimetrias sociais. Para usar a frase do Papa João Paulo II, em visita ao México, por volta dos anos de 1980, “os ricos se tornam cada vez mais ricos às custas dos pobres cada vez mais pobres”. Os dados, tabelas, análises e conclusões do economista francês Thomas Piketty dão prova de que profundas desigualdades socioeconômicas veem marcando as últimas décadas do século XX e primeiras do século XXI. Segundo ele, cresce de maneira exponencial e espantosa a discrepância entre o pico e os andares inferiores da pirâmide social. A curva dessa desigualdade se acentua de tal forma, que não é possível esticar a corda por muito tempo. O sistema de produção se revela autofágico e, como alertavam os economistas clássicos, cava a própria cova. O aquecimento global é apenas o sintoma mais sensível desse avanço predatório.
De duas uma: ou a democracia não foi capaz de colocar freios e rédeas ao motor do lucro e, por conseguinte, à exacerbada acumulação do capital em detrimento dos trabalhadores e trabalhadoras; ou vai ficando cada vez mais evidente que democracia e capitalismo são incompatíveis. Ambos dão mostras de se excluírem reciprocamente. A famosa “mão invisível”, termo cunhado por Adam Smith, no livro Uma investigação sobre a natureza e a causa da riqueza das nações (1759), não deu conta de controlar a fúria do mercado e da economia. Um e outra transformam tudo e todos em “mercadoria de troca”. Depois de mercantilizar matéria-prima, modo de produção e mão-de-obra, hoje mercantiliza-se fluxos da moda, tempo e formas de lazer, obras de arte de qualquer campo estético, paixões, sentimentos, sensações, notícias falsa ou verdadeiras, mas de forma toda particular as “narrativas”, por mais esdrúxulas e estapafúrdias que sejam!...
Mais do que nunca, talvez seja o momento de revisitar o filósofo, matemático e historiador Bertrand Russel e sua monumental História do pensamento ocidental, a qual estuda e comenta a filosofia política de Locke. Escreve aquele: “É curioso que a refutação do princípio hereditário em política não tenha tido quase nenhum efeito no campo econômico nos países democráticos. Parece-nos ainda natural que um homem deixe sua propriedade aos filhos; aceitamos o princípio hereditário por aquilo que se refere ao poder econômico, enquanto o rejeitamos no que se refere ao poder político. As dinastias políticas desapareceram, mas as dinastias econômicas sobrevivem. E pensar o quanto nos parece natural que o poder sobre a vida dos outros, derivado de uma grande riqueza, deva ser hereditário”!
Em síntese, as dinastias políticas foram abolidas, ao passo que sobrevivem as dinastias econômicas. E estas últimas, por seu turno, reproduzem as primeiras. O dinheiro herdado (e só Deus sabe como foi acumulado) abre oportunidades para galgar, um a um, os degraus do poder. E o poder, em suas mais variadas instâncias, legitima e sacraliza o legado da riqueza. Mais que isso: pavimenta veredas escusos para assaltar, com o apoio da lei, os cofres públicos. Aos altos salários, multiplicam-se os penduricalhos que conduzem aos privilégios, benesses de vária natureza. Em torno dos mais fortes, seja pelo dinheiro ou pelo poder, fecha-se o círculo de aço, onde um punhado de milionários e bilionários disputam o ranking jornalístico de quem possui a maior fortuna. Ao legalizar as fortunas hereditárias, direta ou indiretamente admite-se que o poder político passe com naturalidade de pai para filho, e deste para o neto, e assim sucessivamente. Do lado de fora ficam os migrantes, excluídos ou descartáveis – “os condenados da terra” (Frantz Fannon).
Esse círculo cerrado e vicioso vem decretando, ano a ano, passo a passo, país a país, o ocaso da democracia, ou do que se convencionou chamar idealmente com essa expressão. Tira-se a conclusão de que democracia e o capitalismo parecem se estranhar. O curto-circuito entre uma prática e outra, diante da natureza e diante da sociedade, vem colocando em dúvida a sobrevivência do planeta e da própria espécie humana. A passadas largas, não estaremos caminhando para o outono da democracia como forma de governo?
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Democracia e capitalismo serão compatíveis? Artigo de Pe. Alfredo J. Gonçalves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU