30 Mai 2022
“O pessimismo dos fortes exclui qualquer esperança sobrenatural. Nietzsche admirava Heráclito, mas não reparou em um de seus aforismos mais proféticos: 'Quem não espera o inesperado, não o encontrará'. O impossível parece incompatível com a razão, mas é necessário, como já advertiu Kant. O pessimismo dos fortes também deveria se abrir ao inesperado, aceitando que o ser pode se expandir para além do que somos capazes de imaginar”, escreve Rafael Narbona, escritor e crítico literário, em artigo publicado por El Cultural, 24-04-2022. A tradução é do Cepat.
Otimismo é uma palavra desacreditada, mas necessária. Às vezes, muda de nome e se apresenta sob a máscara do que Nietzsche chamou de “o pessimismo dos fortes”, segundo o qual é preciso amar a vida e não a desvalorizar por abrigar a ameaça da dor e a morte. Seria conveniente falar de esperança, em vez de otimismo? A esperança é um conceito de maior densidade, mas está associada à expectativa de um estado que transcende o mundo físico, uma possibilidade que hoje desperta ceticismo e incredulidade. A noção de verdade não está mais vinculada a uma revelação ocorrida na história e plasmada em um livro.
Os textos canônicos das diferentes tradições religiosas não são mais considerados sagrados, mas narrativas com um valor simbólico. O eclipse do sobrenatural parece ser um fato irreversível, ao menos no Ocidente. Portanto, a esperança não pode mais se basear em mensagens enviadas do Céu, mas deve extrair seus argumentos da Terra.
Não é uma tarefa simples, porque a terra proclama que tudo é efêmero e frágil. O futuro acaba reduzindo tudo o que existe a pó. O tempo é um rio incessante que afoga tudo o que flutua em suas águas. O pessimismo dos fortes não se deixa intimidar por esse panorama. Embora tudo caminhe para o nada, a vida em si é algo prodigioso, um dom que deve ser amado com coragem, sem lamentar suas arestas.
Ernst Bloch resgatou o conceito de esperança do campo das religiões, afirmando que a estrutura ontológica da vida pressupõe sempre a espera. O ser humano não é algo acabado e inerte: “Vive em tensão rumo ao futuro.” Em seu interior, vibra um impulso que o empurra para a realização do que se encontra em estado de mera possibilidade. Não é uma tendência exclusivamente humana, mas uma pulsão cósmica, um princípio ontológico que amplia o horizonte do ser, em vez de restringi-lo. Bloch seculariza o conceito de esperança, preservando sua dimensão utópica.
Contemplar o futuro com esperança ou, caso se prefira, com otimismo, não é um gesto de inconsciência, mas o justo reconhecimento do potencial criativo do cosmos e do homem. O que está por vir nunca é um terreno baldio, mas um campo fértil que trará novos frutos. Não se deve acovardar porque os golpes de pá do coveiro são as últimas notas de nossa existência. Só precisamos nos preocupar em ter acrescentado coisas valiosas à corrente da vida. Bloch é um exemplo do pessimismo dos fortes, uma atitude que aprecia uma dimensão positiva e frutífera, inclusive, na morte.
No século XVII, Spinoza atraiu o ódio da sinagoga e das igrejas cristãs ao identificar Deus com a Natureza, negando a imortalidade pessoal. O que mais irritou de sua filosofia não foi sua refutação ao transcendente, mas sua exaltação da alegria a partir de uma perspectiva exclusivamente terrena. Spinoza afirma que o sábio não pensa na morte. Sua mente não perde um instante com ela, pois seu objetivo é cultivar a alegria, fonte de toda perfeição.
O que Spinoza entende por alegria? Tudo o que nos move a agir, a satisfação de cumprir uma tarefa, a realização dos nossos projetos, a atualização das potências que abrigamos. Ficar triste porque vamos morrer é uma insensatez, pois a finitude é uma lei da Natureza e não faz nada em vão. Só deve nos abater cair na impotência, não ser capazes de desenvolver nossas ideias e anseios, não participar ativamente do desenrolar da vida.
Poderíamos dizer que Spinoza participa do pessimismo dos fortes, pois concebe a existência como um conjunto de possibilidades infinitas. Agir alegremente significa administrar de forma racional as opções que estão a nosso alcance. O sábio luta por sua autonomia, tentando ser a causa de seus atos e não um simples padecer que se deixa configurar por forças externas à sua vontade. O otimismo é um ideal de emancipação, não uma confiança irreflexiva no acaso. Spinoza é uma ilha na história da filosofia, uma anomalia, pois assume a finitude sem amargura.
De fato, entende que é uma necessidade. Ao contrário, a maioria dos filósofos se rebela contra ela e amaldiçoa possuir uma consciência racional que os revela sua caducidade como indivíduos. Esperneiam como crianças contrariadas, alegando que algo que não dura, nem mesmo é vida. É apenas uma sombra, uma ficção, um sonho ou talvez a obra de um demônio. É o que opina Schopenhauer, que aos dezessete anos descobre a velhice, a dor, a doença e a morte, e conclui que “o mundo não pode ser obra de um Ser que ama tudo, mas, sim, de um demônio, que trouxe as criaturas à existência para se deleitar com o seu sofrimento”.
Schopenhauer se gabava de ter identificado o númeno, esse fundo inteligível que Platão situou para além dos sentidos e que Kant descreveu como inacessível à razão. Sua tese é que o númeno não é uma dimensão espiritual ou um limite epistemológico, mas essa força obscura da qual a vida procede e que podemos designar com o nome de Vontade.
A Vontade é um desejo cego de viver que se objetiva na Natureza através de aparições sucessivas e efêmeras. Falta-lhe finalidade ou propósito. É uma compulsão irracional que se aprecia em todos os seres vivos e que explica a luta incessante para sobreviver e se reproduzir.
Não é uma luta incruenta, mas uma luta terrível caracterizada por sofrimento, conflito e insatisfação. Há apenas uma forma de suportar essa tensão: abolir o desejo, cultivar a ataraxia ou a impassibilidade, abraçar o ascetismo, abster-se do sexo e a reprodução. Poderíamos dizer que Schopenhauer cai no pessimismo dos fracos. No entanto, esse desânimo não se traduz em indiferença à dor alheia. Ao contrário, defende a compaixão e o respeito à vida. Em um cosmos cheio de sofrimento, a piedade é a única alternativa ética e racional.
Nietzsche reconheceu em Schopenhauer um mestre, mas considerou um gravíssimo erro responder à dureza da existência com imperturbabilidade e compaixão. Considerou essas duas atitudes uma herança do platonismo e do cristianismo, que menosprezam o mundo real para exaltar um hipotético pós-mundo. Sacrificar o prazer e renunciar à ambição, compadecer-se dos fracos e praticar o ascetismo, não constitui uma virtude, mas uma atitude decadente. O cristianismo e o budismo nascem do ódio à vida, cuja crueza interpretam como algo maligno.
Ao contrário, Nietzsche argumenta que não há nada desprezível no ser. É preciso acatar a lei da Vontade, obedecer a seu impulso ascendente. Tudo o que é bom para a vida é absolutamente bom. E o que é bom para a vida? Tudo o que aumenta o poder, a força, a saúde. E o que é mau, então? O fraco e doentio, o frágil e decadente, o plebeu e baixo.
A moral do homem superior ordena viver cada instante como se fosse se repetir eternamente, sem lamentar nada do ocorrido. Não se deve ter medo de ser injusto. A vida é injusta. A Vontade sempre é Vontade de Poder. Diante do pessimismo decadente de quem protesta contra o mal físico e moral, o pessimismo dos fortes celebra a dor, a injustiça, a guerra. Viver é lutar sem trégua, subjugar ou ser subjugado, escravizar ou ser escravizado.
Postular pós-mundos para aplacar a insatisfação que o mundo real produz em nós, com suas duras leis e suas terríveis depredações, talvez seja o pecado mais imperdoável. Nietzsche afirma que o otimismo é superficial e aparece em períodos de decadência. Nós o descobrimos em Sócrates e Eurípides, embriagados de razão e convencidos de que tudo pode ser compreendido e esclarecido.
O pessimismo dos fortes se situa para além do bem e do mal. Não tenta compreender. Só se preocupa com saúde, poder, plenitude. Ama a vida e sabe que é absurdo julgá-la do ponto de vista da moral cristã.
Todos aqueles que tentam associar o bem e a justiça à vida nutrem uma profunda hostilidade em relação a ela. “A vida é algo essencialmente amoral”, escreve Nietzsche em um breve ensaio que compôs como introdução à terceira edição de O nascimento da tragédia. Quem não reconhece este fato primordial esconde uma “vontade de ocaso”. Sua negação do caráter trágico e amoral da vida nasce do ressentimento. Em seu interior, fervilha “um instinto secreto de aniquilação, um princípio de ruína, de apequenamento, de calúnia”. A ataraxia de Schopenhauer é resignação, cumplicidade com o fracasso, conivência com o frágil e doentio.
Como então suportar a dureza da vida, a velhice, a doença, a morte, essas calamidades que tanto afligiram Schopenhauer e outros filósofos? Transformando-as em matéria artística. O mundo só se justifica como fenômeno estético. A redenção da dor é alcançada por meio de uma síntese entre o noturno e o solar, o informe e o delimitado, o caos e a harmonia.
Dito de outro modo: fundindo o apolíneo e o dionisíaco, assim como fizeram os grandes trágicos gregos. O equilíbrio sempre emerge do orgiástico e terrível. Não será possível em uma sociedade democrática, onde a moralidade natural foi invertida, transformando a fragilidade em virtude. Nietzsche defende a restauração dos valores da Grécia e Roma, civilizações que identificavam a virtude com a saúde, força e crueldade.
Que lições podemos tirar do pessimismo dos fortes? Que a vida é um bem objetivo, que estar no mundo significa desfrutar de infinitas possibilidades, que a finitude não é uma desgraça, mas uma fonte de renovação, que a liberdade é a meta de uma existência verdadeiramente racional, que somos coparticipantes do impulso criador do cosmos. Morremos, sim. Nossa individualidade se extingue irremediavelmente, mas de alguma forma perduramos, pois fazemos parte do que Spinoza chama de Deus ou Natureza, um binômio indistinguível.
Não somos pontos isolados, meras descontinuidades, mas aspectos de uma totalidade que se renova sem cessar e que seria de outra forma sem a nossa irrupção no tempo e no espaço. Devemos amar a vida incondicionalmente, pois nos traz prazer, beleza, sabedoria. Dizer não à vida só leva ao niilismo, como demonstra a recomendação de Schopenhauer de não multiplicar a dor. A arte nos ajuda a transformar e redimir as imperfeições da vida. A tragédia de Prometeu é avassaladora, mas no palco se torna um hino à liberdade.
O pessimismo dos fortes de Nietzsche se torna estéril quando elogia a crueldade e a injustiça como expressões do poder e da criatividade da vida. Em A genealogia da moral, exalta aquelas raças nobres e aristocráticas que experimentam a necessidade de “retornar” à “inocência dos animais de rapina”, deixando um rastro de “assassinatos, incêndios, estupros e torturas”, com a satisfação de saber que seus estragos servirão como matéria aos poetas para elaborar suas canções. Nietzsche não chegou a conhecer as duas guerras mundiais, nem o medo de um holocausto nuclear. Talvez isso o teria feito entender que a injustiça não é a essência da vida, mas um mal objetivo que pode destrui-la.
O pessimismo dos fortes exclui qualquer esperança sobrenatural. Nietzsche admirava Heráclito, mas não reparou em um de seus aforismos mais proféticos: “Quem não espera o inesperado, não o encontrará”. O impossível parece incompatível com a razão, mas é necessário, como já advertiu Kant. O pessimismo dos fortes também deveria se abrir ao inesperado, aceitando que o ser pode se expandir para além do que somos capazes de imaginar.
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Spinoza e Nietzsche: o pessimismo dos fortes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU