14 Mai 2021
“A Colômbia implantou um sistema de seguridade centrado no hospital e na enfermagem, onde o próprio sistema de saúde institucionalizou os interesses privados e a intermediação financeira, que reproduzem fragmentação, segmentação, estratificação e, principalmente, desigualdades na saúde coletiva da sociedade colombiana. Esses objetivos são os que prevaleceram nas reformas empreendidas no país, aprofundando as desigualdades e, ao mesmo tempo, precarizando radicalmente as condições de trabalho dos próprios trabalhadores da saúde”, escreve em declaração o Grupo Regional de Saúde Internacional e Soberania Sanitária do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais – CLACSO, 11-05-2021. A tradução é de Wagner Fernnades de Azevedo.
A Colômbia está encurralada entre a intensificação da violência estatal, a criminalização do protesto social, a epidemia de covid-19, a deterioração do sistema de saúde financeirizado, a precarização do trabalho, a crise social e econômica e as políticas governamentais arbitrárias, autoritárias, desiguais e injustas.
A onda de repressão sistemática governamental, com uma evidente política pública de vulneração dos direitos humanos por parte das autoridades do governo colombiano, ficaram refletidas nos últimos dias em sangrentos números que refletem tal repressão: 37 pessoas assassinadas; 381 pessoas que sofreram lesões pessoais; 58 defensores de direitos humanos que sofreram algum tipo de agressão violenta; 19 mulheres que sofreram violência por gênero, incluindo estupro; 1180 pessoas que foram presas de forma arbitrária, algumas das quais submetidas a tratamento vexatório e/ou torturas/ 239 que foram presas e desaparecidas; e mais de 500 pessoas que denunciaram abusos de poder, agressões ou violência policial com a criminalização do protesto social.
A repressão oficial se estendeu até a extrema militarização de cidades, como Cali e Palmira que estão em risco de ficar sem abastecimento de alimentos e medicamentos; também foram bloqueados os sinais de internet e as redes sociais que foram utilizadas pela cidadania e as comunidades para denunciar estas formas de repressão oficial, e se utilizaram de maneira dissuasiva a possibilidade de declarar o Estado de Comoção Interior, para gerar medo e incerteza na população.
Todo esse contexto foi desencadeado por protestos sociais contra o governo, devido às recentes medidas que foram tentadas de forma arbitrária, autoritária, desigual e injusta pelo atual presidente da Colômbia, Iván Duque. Um dos gatilhos foi a tentativa de implementar uma reforma tributária em que um imposto de renda incidisse sobre um grande número de pessoas com baixa renda ou salário; ademais, o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) foi aumentado sobre produtos essenciais para a maioria da população colombiana. O desconforto gerado por esta medida, aliado ao descontentamento social acumulado pela gestão negligente da epidemia de covid-19, aliado ao agravamento da crise social e econômica no país, precipitaram um massivo protesto social. A criminalização do protesto pelo governo Duque implicou uma resposta autoritária e violenta das autoridades com uma violação sistemática dos direitos humanos. A seguinte frase de uma das muitas bandeiras levantadas em manifestações públicas dá um bom relato do sentimento do povo colombiano que está se manifestando:
“Se um povo sai para protestar no meio de uma pandemia, é porque o governo é mais perigoso do que o vírus”.
No caso da Colômbia, a violência faz parte de um processo substantivo de determinação social da saúde e da vida coletivas.
Por muitos anos, as desigualdades sociais e econômicas foram especialmente intensificadas e exacerbadas pelo conflito armado colombiano e as diferentes formas de violência local e regional sistemática, perpetradas por grupos paramilitares e promovidas por elites locais, regionais e nacionais, com o objetivo principal de mantendo seus privilégios e benefícios em uma democracia privatizada.
Lideranças sociais e comunitárias que lutam pela defesa do território e dos direitos coletivos e dos bens comuns, que denunciam e enfrentam situações de injustiças e desigualdades por classe social, etnia e gênero em diversas regiões do país, têm sido sistematicamente alvo dessa violência mesmo com assassinatos direcionados.
Nesse sentido, também é importante destacar que nos últimos anos os jovens foram presos por essa espiral sistemática de violência que vive no país. Ser jovem na Colômbia representa uma imposição permanente de nos perguntarmos de que morrem os jovens colombianos? Para responder a essa pergunta, devemos fixar nossos olhos em dois aspectos. Por um lado, nas formas simbólicas da existência e nos limites do cotidiano que ameaçam a vida digna dos jovens, como é o caso da precariedade educativa e laboral e das representações midiáticas que desacreditam as suas palavras; por outro lado, em formas específicas de violência – execuções extrajudiciais, perseguições – que dão conta do que na retórica da violência colombiana são conhecidos como “falsos positivos”.
Neste contexto de violência, o rompimento dos Acordos de Paz já causou 126 massacres, que deixaram 513 mortos entre 2020 e até agora em 2021 (Indepaz). Por outro lado, mais de 900 líderes homens e mulheres assassinados e mais de 276 signatários do acordo de paz – ex-combatentes das FARC –, desde a sua assinatura em 2016 (Indepaz); ademais, em março deste ano (2021) foi denunciado o atentado a bomba contra um campo de dissidentes das FARC, contendo meninas e meninos classificados como “máquinas de guerra” pelo Ministro da Defesa da Colômbia.
Em meio a esse clima de descontentamento e massivos protestos sociais, de criminalização e repressão sistemática, de mortes e sofrimentos do povo colombiano, o governo do presidente Duque quer promover uma nova reforma da Lei 100 de 1993 que já havia se cristalizado em uma fragilização, precarização, fragmentação, privatização e financeirização do Sistema de Saúde colombiano. No marco teórico-conceitual do pluralismo estruturado, como política de Estado, promoveu-se a desregulamentação do mercado de cobertura financeira em saúde, as parcerias público-privadas e a destruição da saúde pública.
Neste momento está em tramitação no Congresso colombiano o Projeto de Lei 010 de 2020 que busca aprofundar o modelo de seguro e intermediação financeira em saúde, enfraquecer a fragilidade da saúde pública, aumentar a lacuna entre o atendimento em áreas urbanas e rurais, aumentar empresas e negócios oligopólio das seguradoras de saúde, acentuam as responsabilidades dos cidadãos por sua própria saúde e, em última instância, continuam a violar o direito universal fundamental à saúde. Adicionalmente, com esta lei se viola a autonomia universitária, tanto que, de maneira sutil, propõe que alguma formação pós-graduada saia do núcleo da academia para se realizar através das mesmas figuras que realizam a intermediação da saúde.
O projeto de Lei 010 de 2020 segue fazendo parte de uma estratégia das elites colombianas por aprofundar a mercantilização sanitária sob o pluralismo estruturado e a expansão de bens de mercado dentro do próprio sistema sanitário.
O Sistema de Saúde colombiano denominado Sistema Geral de Seguridade Social em Saúde financeiriza as coberturas de saúde, pensões e riscos laborais, é um caso que exemplifica perfeitamente a influência geopolítica dos organismos como o Banco Mundial, o BID, OPS-OMS e corporações nacionais e multinacionais que representam a materialização da agenda de saúde global neoliberal.
A estruturação da reforma colombiana institucional sofisticadas tramas de companhias farmacêuticas, corporações multinacionais de hospitais e seguradoras privadas, empresas compradoras de insumos e tecnologias médicas, entre outros.
O mercado (des)regulado de coberturas com intermediação financeira, de um mercado de prestadores público-privado, implica geopoliticamente na instalação de um capitalismo sanitário mundialmente periférico na Colômbia com a presença da United Health Group, multinacional estadunidense de empresas seguradoras e prestadoras de serviços de saúde, AUNA a multinacional peruana proprietária de um conglomerado empresarial, a multinacional espanhola Keralty (antiga Organización Sanitas Internacional), proprietária de uma grande rede de empresas de seguros, prestação de serviços de saúde (mais de 200 neste país), de Steward Health Care, multinacional estadunidense que integra prestadoras e seguradoras privadas, a multinacional estadunidense Christus Health, proprietária do componente saúde do Grupo Coomeva, Quironsalud multinacional espanhol integrante da multinacional alemã Fresenius Helius, Fresenius Medical Care, entre outras.
Em outras palavras, a Colômbia implantou um sistema de seguridade centrado no hospital e na enfermagem, onde o próprio sistema de saúde institucionalizou os interesses privados e a intermediação financeira, que reproduzem fragmentação, segmentação, estratificação e, principalmente, desigualdades na saúde coletiva da sociedade colombiana. Esses objetivos são os que prevaleceram nas reformas empreendidas no país, aprofundando as desigualdades e, ao mesmo tempo, precarizando radicalmente as condições de trabalho dos próprios trabalhadores da saúde.
Nesse aspecto específico, é muito importante não perder de vista que essa precariedade atinge fundamentalmente as mulheres, já que o campo da saúde é particularmente feminilizado. A precarização do trabalho dos trabalhadores da saúde na Colômbia é responsável pela terceirização do trabalho, pela eliminação das garantias e dos direitos trabalhistas, o que significa: trabalho sem descanso, contratos curtos, bem como experiências de trabalho em que os trabalhadores e as trabalhadoras da saúde praticamente “doam” meses de trabalho para garantir esses contratos, entre outros. Situação que foi especialmente exacerbada durante a pandemia de covid-19.
A Colômbia, como muitos outros países da região, vive atualmente uma intensificação da crise epidemiológica e das mortes associadas à epidemia de covid-19 no território colombiano.
De fato, de acordo com dados oficiais do próprio Ministério da Saúde, mais de 76 mil mortes foram registradas até agora, com quase 400 mortes por dia. Em termos de vacinação, a Colômbia apresenta uma das taxas mais baixas da região, principalmente devido a um plano de vacinação que priorizou critérios políticos sobre critérios epidemiológicos ou de saúde pública e, em segundo lugar, para os efeitos decorrentes do monopólio dos direitos de propriedade intelectual (patentes) de produtos biológicos, como vacinas, por grandes multinacionais farmacêuticas, protegidas por países por governos do norte global. Segundo dados do próprio governo nacional, desde meados de fevereiro, apenas pouco menos de 2 milhões de pessoas foram imunizadas com as 2 doses indicadas. Como já aconteceu em outros países da região, o sistema hospitalar nas principais cidades está entrando em colapso devido à epidemia de SARS-CoV-2 e há uma escassez significativa de oxigênio medicinal.
Como já reiteramos em diversas ocasiões, os efeitos da epidemia de covid-19 são fruto de determinações sociais que dão conta do processo saúde-doença-atenção no país, em seus diversos territórios.
A Colômbia é um dos países latino-americanos e caribenhos com maiores desigualdades sociais e econômicas, com diferenças locais e regionais especiais e significativas que afetam fundamentalmente as populações camponesas, indígenas e afrodescendentes, nas quais mulheres e meninas são particularmente afetadas. Em muitas das cidades da Colômbia, a informalidade e a precarização do emprego, que afetam mais de 50% da população entre 18 e 64 anos, são mais constantes do que exceções. Nesse contexto de profundas desigualdades sociais e econômicas, tanto a pandemia quanto as medidas adotadas para controlá-la, bem como a virtual ausência de medidas de proteção social, levaram cerca de 21 milhões de colombianos a viver na pobreza até 2020. Neste ano, a pobreza aumentou em 3,5 milhões de pessoas e a pobreza extrema atingiu a cifra de 7,5 milhões de pessoas.
Desde o Grupo Regional de Saúde Internacional e Soberania Sanitária do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO):
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Colômbia: entre a violência estatal, a militarização e a nova reforma autoritária do sistema de saúde - Instituto Humanitas Unisinos - IHU