17 Outubro 2018
Propostas de revogação do Estatuto do Desarmamento ganham corpo no Congresso em meio ao crescimento da criminalidade no país. Especialistas em segurança pública questionam argumentos trazidos por parlamentares e temem escalada da violência caso projetos sejam aprovados.
Pela importância do tema no momento, reproduzimos a reportagem de André Antunes, publicada por EPSJV/Fiocruz, 24-01-2018.
Os dados são ao mesmo tempo estarrecedores e banais: 61.619 pessoas foram assassinadas no Brasil em 2016, segundo informações do 11º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) divulgados em outubro do ano passado. Nunca se matou tanto no país: são 168 homicídios por dia, sete por hora. Em nenhum país do mundo se mata mais do que no Brasil, em números absolutos: um em cada dez assassinatos cometidos no mundo acontecem em território brasileiro. Esse é o lado estarrecedor. O banal? Nada disso é novidade. O país convive há décadas com índices de violência altíssimos, maiores do que os de países em guerra civil. Ainda assim, o Estado brasileiro fez pouco para enfrentar esse quadro. É praticamente consenso entre especialistas em segurança pública que a falta de prioridade da agenda de redução dos homicídios é um problema crônico no Brasil. E eles alertam: no vácuo de políticas públicas de longo prazo ganham força propostas que, amparadas pelo pânico social criado pela escalada dos índices de violência, procuram desmontar as poucas iniciativas efetivas implementadas nos últimos anos.
Uma delas é uma lei que completa 15 anos em 2018: o Estatuto do Desarmamento. Aprovada no primeiro mandato do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, a lei impôs várias restrições ao porte de armas por civis. Entre outros requisitos, estabeleceu que os interessados em adquirir arma de fogo devem ter mais de 25 anos (anteriormente a idade mínima era de 21 anos), e precisam apresentar à Polícia Federal uma declaração que justifique a necessidade da aquisição da arma além de documentos que comprovem que o interessado possui capacidade técnica e aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo, atestada por profissionais credenciados pela própria Polícia Federal. A lei também especificou na legislação penal os crimes de comércio ilegal e tráfico internacional de armas de fogo, e ampliou as penas para o porte de arma em situação irregular. Além disso, o Estatuto criou, por meio do Sistema Nacional de Armas (Sinarm), um banco de dados com as características das armas em circulação no país, permitindo que armas e munições sejam rastreadas em investigações criminais. A partir do Estatuto, o governo federal também instituiu a Campanha do Desarmamento, que previa o pagamento de indenização às pessoas que entregassem suas armas de fogo sem registro à Polícia Federal. A campanha tirou de circulação 570 mil armas entre 2004 e 2011.
A lei vem enfrentando resistência desde que foi concebida, no entanto. Segundo levantamento do Nexo Jornal, desde 2004 o Estatuto sofreu mais de 20 alterações em relação ao texto original. A grande maioria das alterações flexibilizou as regras para o porte de armas no país. No contexto atual, a disputa se acirrou: vários projetos que tramitam hoje no Congresso Nacional propõem simplesmente revogar o estatuto. O principal argumento de quem defende a medida é o de que a lei se mostrou ineficaz para a redução da criminalidade no país. Exemplo disso seria o próprio número de homicídios por armas de fogo, que saltou de 33.419 em 2005 para 41.817 em 2015, segundo dados do Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A taxa de homicídio no país no mesmo período cresceu 10,6%, passando de 26,1 para 28,9 homicídios para cada 100 mil habitantes. Já o número de latrocínios – roubo seguido de morte –, segundo o 11º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aumentaram 57,8% em sete anos no país, passando de 1.593 em 2010 para 2.514 em 2016.
No Senado Federal, uma das principais vozes contrárias ao Estatuto do Desarmamento é a do senador Wilder Morais (PP-GO), autor de três projetos de lei que propõem flexibilizar a legislação sobre porte de armas de fogo, todos apresentados em 2017. Um deles é o Projeto de Decreto Legislativo 175, que defende a convocação de um plebiscito sobre a revogação do Estatuto do Desarmamento. O projeto conta com 95% de aprovação em enquete do portal e-Cidadania: já são mais de 259 mil votos favoráveis contra 12 mil contrários. Morais também é autor do Projeto de Lei do Senado (PLS) 378, que institui o Estatuto do Armamento, que propõe facilitar a fabricação, a comercialização, a posse e o porte de armas no país. Entre outras medidas, o projeto reduz de 25 para 18 anos a idade mínima para aquisição de armas de fogo, amplia de cinco para dez anos a validade do registro e permite que as Secretarias Estaduais de Segurança Pública se responsabilizem pelos registros, o que hoje é uma atribuição da Polícia Federal. Este projeto conta com 102 mil votos favoráveis no portal e-Cidadania, contra 13 mil contrários. Por fim, há também o PLS 224, que propõe alterar o Estatuto do Desarmamento para residentes em áreas rurais de modo a permitir que menores de 21 anos possam adquirir armas de fogo.
Nas justificativas dos projetos, um argumento em comum: um suposto fracasso do Estatuto do Desarmamento em reduzir os índices de violência. “Após mais de dez anos da promulgação do Estatuto do Desarmamento”, diz o texto que justifica a apresentação do PLS 175, “não se apresentam quaisquer dados objetivos que apontem no sentido da redução dos índices de violência: pelo contrário, desde a entrada em vigor daquela Lei, o número total de homicídios no Brasil apresentou um aumento de 20%, atingindo a preocupante marca de 60 mil assassinatos”.
Para ele, os números representam uma falha da política de desarmamento civil, que teria se tornado “insustentável”. “Em um Estado Democrático de Direito, somente se justifica a limitação do exercício de um direito fundamental quando restar patente que essa restrição trará maiores benefícios para a coletividade”, argumenta Morais no texto que justifica o PL, invocando uma ideia que está presente na legislação dos Estados Unidos e que vai na direção contrária ao que diz o Estatuto do Desarmamento, ou seja, a de que o porte de armas é um “direito” dos cidadãos, ao qual o Estado deve restringir acesso apenas em casos muito específicos. “O número de armas de fogo registrados nos EUA é 20 vezes maior do que o número de armas de fogo registradas no Brasil. No entanto, a taxa de homicídios no Brasil é quase quatro vezes maior do que a dos EUA”, indica a justificativa do PLS 378.
No caso do PLS 224, que reduz a idade mínima para aquisição de armas de fogo no meio rural, até as “intempéries do ambiente” são motivo para flexibilizar a legislação. A argumentação confusa, no entanto, não impediu que o projeto recebesse parecer favorável do relator Sergio Petecão (PSD-AC) na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), em novembro.
Na mesma linha dos projetos do Senado segue o PL 3722/2012, que tramita na Câmara dos Deputados. De autoria do deputado Rogério Peninha Mendonça (PMDB-SC), o projeto também propõe a revogação do Estatuto do Desarmamento sob a justificativa de que ele se mostrou “ineficaz” na redução da criminalidade. Por outro lado, o deputado defende que vários foram os efeitos adversos da lei aprovada em 2003. “O comércio de armas de fogo e munição caiu noventa por cento no país, dadas às quase intransponíveis dificuldades burocráticas que foram impostas para a aquisição desses produtos. Dos 2.400 estabelecimentos especializados registrados pela Polícia Federal no ano 2000, sobravam apenas 280 em 2008. Essa drástica redução, comemorada de forma pueril por entidades desarmamentistas, não produziu qualquer redução nos índices de homicídio no país, pela simples e óbvia constatação de que não é a arma legalizada a que comete crimes, mas a dos bandidos, para os quais a lei de nada importa”, diz o texto. Para o deputado, o aumento no número de crimes contra o patrimônio é consequência direta da política de desarmamento da população civil. “A certeza de que a vítima estará desarmada somente torna o criminoso mais ousado”, afirma o deputado em sua justificativa.
Mas é justo colocar a culpa pelo aumento da violência no Estatuto do Desarmamento? A revogação do estatuto, por si só, deve significar uma redução da criminalidade no país? Se não, quais as outras medidas consideradas necessárias para que isso aconteça? Que dados e pesquisas subsidiam o diagnóstico contrário, de que o aumento no número de armas em circulação tem o potencial de reduzir os índices de criminalidade? Essas foram algumas das perguntas encaminhadas pela reportagem da Poli aos parlamentares, mas nenhum deles atendeu à solicitação para uma entrevista nem respondeu às perguntas enviadas por email.
Para pesquisadores da área de segurança pública, os argumentos trazidos pelos parlamentares para defender a revogação do estatuto não têm fundamentação nas pesquisas sobre esse tema desenvolvidas ao longo da última década. Algumas delas, realizadas por Daniel Cerqueira, pesquisador do Ipea, têm apontado que o aumento no número de assassinatos cometidos por armas de fogo na última década no Brasil não significa que o Estatuto do Desarmamento foi ineficaz. Segundo ele, para entender o impacto da lei é preciso comparar o crescimento das taxas de homicídio antes e depois de sua entrada em vigor. Em apresentação feita em audiência pública realizada na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro em 2015, o pesquisador argumentou que a aprovação do Estatuto pode ter poupado a vida de 121 mil pessoas entre 2004 e 2012. Para chegar a essa conclusão, ele comparou o crescimento nas taxas de homicídio no país, ou seja, o número de assassinatos a cada 100 mil habitantes, nos períodos anterior e posterior à aprovação da lei. Segundo ele, entre 1995 e 2003, essa taxa cresceu 21,4%. Já entre 2004 e 2012, esse crescimento foi de apenas 0,3%.
Isabel Figueiredo, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, utiliza esses dados para concluir que o estatuto foi, sim, uma política de sucesso. “É claro que é mais fácil eu entender o sucesso dela quando eu estou com 50 mil homicídios e no ano seguinte cai para 45 mil. Aí não tem discussão. Agora, quando eu estou com 50 mil e a tendência era que eu estivesse no próximo ano com 53 mil e eu aumento só pra 51 mil, isso é um fator de sucesso também. Essa é uma coisa que acho que as pessoas não conseguem direito pegar: a gente estaria numa situação muito mais séria se o estatuto não existisse”, ressalta.
Cerqueira traz ainda outros dados que atestariam a eficácia do Estatuto na redução dos homicídios. Segundo ele, embora sua aplicação não tenha se dado de maneira uniforme pelo país, nos estados que tiveram maior redução no número de homicídios nos anos 2000 – São Paulo, Pernambuco e Rio de Janeiro - houve também maior redução na difusão de armas de fogo. Já nos três estados com maior aumento na taxa de homicídio no período – Pará, Maranhão e Bahia – não houve redução na difusão dessas armas. A relação entre a quantidade de armas de fogo e as taxas de homicídios foi objeto ainda de um estudo elaborado pela Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (Diest) do Ipea. A pesquisa apontou que a taxa média de homicídios entre as 20 microrregiões do país com mais armas de fogo em 2010 chegava a 53,3 a cada 100 mil habitantes; já nas 20 microrregiões com menos armas de fogo, a taxa média de homicídio é consideravelmente menor: 7,2 homicídios para cada 100 mil habitantes.
Por fim, em sua tese de doutorado apresentada em 2011 à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Cerqueira concluiu que 1% a mais de armas nas cidades faz aumentar a taxa de homicídio em 2%, mas não tem efeito para dissuadir os crimes com motivação econômica, como roubos e furtos. Os resultados obtidos por Cerqueira são compatíveis com os do maior estudo feito nos Estados Unidos sobre a relação entre armas e crimes, publicado no American Journal of Public Health em 2013, que concluíram que um aumento de 1% na proporção de domicílios onde há pelo menos uma arma implica um crescimento de 0,9% na taxa de homicídio por armas de fogo.
“A experiência norteamericana é um amplo e dramático desastre”, afirma o sociólogo e ex-deputado federal Marcos Rolim, que ressalta que graças à ideia de um ‘direito às armas’, o acesso se tornou tão facilitado lá que, em alguns estados, é possível comprar armas semiautomáticas até em supermercados. “O resultado dessa política irresponsável comprada pelo lobby das armas são centenas de eventos a cada ano de atiradores disparando contra aglomerações em todo o país”, aponta Rolim, destacando um dos efeitos indesejado do aumento do número de armas em circulação. Nos Estados Unidos, onde existem hoje 270 milhões de armas de fogo nas mãos da população civil, pouco menos do que uma por habitante, são cada vez mais comuns eventos como o massacre ocorrido em Las Vegas em outubro, quando um homem de 64 anos abriu fogo contra uma multidão durante um festival de música country, matando 58 pessoas e ferindo mais de 500. “Os americanos empregam a expressão ‘mass shootings’ para esse tipo de evento. Eles consideram mass shooting todo evento de disparos aleatórios que tenha produzido pelo menos quatro vítimas, entre mortos e feridos, sem contar o atirador. Apenas este ano [2017] já ocorreram 397 casos desse tipo”, aponta. Foi um massacre como esse – o de Columbine, em 1999 – que segundo a Polícia Civil teria inspirado o estudante de Goiás que em outubro abriu fogo contra colegas de sala, matando dois e ferindo quatro. Filho de policiais militares, o adolescente pegou a arma escondido dos pais. “No caso do Brasil, importar a experiência americana tende a produzir uma tragédia muito maior”, ressalta Rolim.
Já de acordo com Isabel Figueiredo, uma análise um pouco mais aprofundada sobre a relação entre armas e violência nos Estados Unidos traz elementos para fazer cair por terra a comparação feita pelo senador Wilder Morais, que na justificativa do PLS 378 traça uma relação direta entre o maior número de armas em circulação nos Estados Unidos e a menor taxa de homicídios registradas lá em comparação com o Brasil. “As coisas não são tão simples assim”, reitera, destacando que a legislação sobre armas no sistema federativo norteamericano é de competência estadual. “A lei federal vai falar que todo mundo pode portar, mas os estados lidam com isso de jeitos completamente diferentes. Juntar tudo em um mesmo ‘balaio’ é um jeito deturpado de ler os dados”, completa.
Isabel cita um relatório de 2014 elaborado pelo Law Center to Prevent Gun Violence, centro que promove a prevenção da violência causada por armas de fogo no país. Nele, a organização identificou que nos estados onde há menos controle sobre armas, como Lousiana, Kentucky, Mississippi e Arizona, o número de mortes per capita causado por armas de fogo é até cinco vezes maior do que estados onde a legislação sobre armas é mais rígida, como Nova York, California, Nova Jersey e Massachussets. Um outro levantamento da mesma organização apontou que, dos 600 mil suicídios ocorridos nos Estados Unidos desde 2000 – entre eles 20 mil menores de idade – 50% foram cometidos com armas de fogo. “Suicídios em geral são atos impulsivos utilizando quaisquer métodos disponíveis naquele momento. 48% das pessoas se ferem no espaço de 10 minutos após decidirem se suicidar. 71% o fazem dentro de uma hora”, diz o levantamento, que também traz conclusões similares às encontradas com relação aos homicídios: entre os estados, quanto menor for o controle sobre a circulação de armas de fogo, maiores são as taxas de suicídio registradas.
A ideia de que o porte de arma de fogo oferece à vítima de um crime melhor condições de defesa, argumento comum entre os que defendem a revogação do Estatuto do Desarmamento, também carece de sustentação, segundo Marcos Rolim. “Todas as pesquisas disponíveis a respeito de ocorrências em que vítimas reagiram com armas mostram exatamente o contrário”, diz Rolim, citando como exemplo uma pesquisa realizada em 2009 pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser), no Rio de Janeiro. O estudo, que examinou 3.394 registros policiais de roubos, concluiu que reagir a um assalto com uma arma aumentava em 180 vezes as chances de morte da vítima e em 57 vezes as chances de ela ser gravemente ferida. “Um detalhe importante: nesse estudo, mais da metade das vítimas que reagiram eram policiais, vale dizer, profissionais treinados no uso de armas de fogo”, destaca. A mesma pesquisa traz ainda um dado que contribui para desconstruir o argumento usado pelo deputado federal Rogério Mendonça na justificativa de seu projeto de lei, o de que não são as armas legalizadas que são usadas para cometer crimes, e sim a dos bandidos. Em muitos casos, não é possível fazer essa distinção: o estudo do Iser constatou que 30% das 77.527 armas apreendidas com criminosos no Rio de Janeiro haviam sido obtidas no mercado formal e depois roubadas.
Delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Orlando Zaccone acredita que o alto número de policiais militares mortos no estado em 2017, número que até o início de dezembro chegava a 126, é um indicativo de que portar uma arma não traz mais segurança. “Esses policiais têm sido mortos, muitas vezes, principalmente por estarem portando uma arma. O assaltante vai querer se antecipar para não sofrer uma reação por conta daquele que está armado”, argumenta Zaccone, para quem a presença da arma de fogo tem o potencial de tornar situações cotidianas mais tensas, ampliando o risco de que uma disputa que poderia ser resolvida de maneira pacífica se torne violenta e potencialmente letal. “Recentemente a gente teve um caso aqui no Rio de um policial militar que se deparou com uma briga de casal em um ponto de ônibus, interveio e acabou atirando e matando o rapaz, sem que ele estivesse armado nem nada. Um erro de percepção”, diz Zaccone. E completa: “Se isso existe entre policiais, imagina em relação a particulares. Ainda mais com essa tensão e com esse medo que hoje circunda o ambiente social. Nós vamos ter uma quantidade imensa de homicídios que vão ser praticados mediante uma precipitação”.
O Brasil precisa de menos pesquisa em segurança e mais armamento. Foi assim que o então Ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, hoje no STF, resumiu, em agosto de 2016, as prioridades na área de segurança pública do governo, que à época ainda era interino. O Ministério vinha sendo pressionado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que em julho daquele ano havia emitido um acórdão solicitando que o governo federal enviasse em 60 dias um plano de ação para implantação do Pacto Nacional de Redução de Homicídios, anunciado pelo Ministério da Justiça em 2015, quando o titular da pasta era José Eduardo Cardozo. A resposta oficial do MJ ao TCU, no entanto, foi a de que o Pacto, que estabelecia a meta de reduzir os homicídios no país em 5% anualmente, “não diz respeito às ações deste governo”.
O caso é emblemático de problemas apontados por especialistas em segurança pública como os maiores desafios para a redução dos homicídios no país: falta prioridade para essa agenda, e falta também capacidade de articulação entre as diferentes esferas de governo para implementação de políticas de longo prazo voltadas para prevenir e também solucionar os homicídios que são registrados todos os anos. “Toda política de segurança séria deve começar por um diagnóstico a partir de evidências e pela definição de prioridades. A redução das taxas de homicídio deveria ser a mais importante dessas prioridades em um país com as taxas que temos, mas não é e nunca foi. Os diferentes governos brasileiros nunca focaram sua atenção nesse tema”, destaca Marcos Rolim.
Isabel Figueiredo cita como um dos principais problemas a falta de um arranjo federativo que diga, por exemplo, quais são as atribuições de cada ente federado e quanto cada um deve investir na segurança pública. “Na educação e na saúde temos um desenho constitucional de sistemas, que vão dizer exatamente o nível de atribuição de cada ente da federação, trazendo também informações sobre o financiamento, com vinculações orçamentárias, que é uma coisa importantíssima. No SUS, por exemplo, tem uma série de instâncias que, bem ou mal, asseguram essa política pública. No caso da segurança pública não tem”, afirma Isabel. Uma das consequências desse quadro é a variação ao longo dos anos nos recursos destinados para o Fundo Nacional de Segurança Pública, criado em 2001 no âmbito do Ministério da Justiça para apoiar projetos nessa área e prevenção à violência nos estados e municípios. Sem nenhum tipo de vinculação orçamentária, o valor do Fundo caiu de R$ 187 milhões em 2005 para R$ 143 milhões em 2015. “Como é possível fazer uma política de segurança pública se a cada ano você pode ter orçamento ou não? Esse é um problema grave”, aponta Isabel. Historicamente, a maior parte dos recursos do fundo vem sendo destinada para a compra de equipamentos para as polícias.
A escassez de recursos é apontada por Isabel como um problema para o trabalho de investigação conduzido pela Polícia Civil. A situação é especialmente complicada atualmente, com vários estados em situação de crise fiscal adotando políticas de contingenciamento de recursos . “Em São Paulo há denúncias de que o contingente hoje é menor do que era há 20 anos atrás. Aqui no Distrito Federal o contingente hoje da Polícia Civil é menor do que no início do século. No Ceará é a mesma coisa”, enumera a pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Sucatear a Polícia Civil significa ir contra a investigação policial. Mesmo que eu tenha a melhor política sobre armas do país, não adianta nada se eu tiver uma polícia que não está dando conta de investigar de onde estão vindo as armas do crime. Isso é coisa que investigação resolve, mas se não tem o braço da política pública responsável por investigar conseguindo trabalhar, fica difícil”, ressalta.
Mas o que seria uma política de segurança pública eficaz para a redução dos homicídios e da criminalidade violenta? Para Isabel, ela deve ter como foco invariavelmente a prevenção da violência. “Aí entra o policiamento comunitário, as políticas de criar oportunidade de emprego e renda para jovens, criação de espaços e oportunidades de convivência, projetos de cultura e esportes, até políticas mais focadas como, por exemplo, trabalhar com os meninos que estão saindo do sistema socioeducativo e sistema carcerário. Essas pessoas saem do sistema hoje sem terem passado por nenhum tipo de qualificação ou cuidado lá dentro e são jogadas de novo na rua sem nada para os acolher. Elas vão voltar para o crime”, opina a pesquisadora.
Apesar dos problemas que afetam o planejamento de políticas de segurança pública no país, o Brasil possui algumas experiências bem sucedidas de redução dos homicídios implementadas nos níveis municipal e estadual que, não por acaso, adotaram medidas de prevenção da violência como as enumeradas por Isabel. O Atlas da Violência 2017 do Ipea cita como exemplo o caso do programa ‘Pacto pela Vida’, implementado em Pernambuco no governo de Eduardo Campos.
O programa foi uma tentativa de elaborar uma política de segurança pública sob um paradigma diferente, com base em valores que orientaram sua construção: articulação entre segurança pública e direitos humanos; compatibilização da repressão qualificada com a prevenção específica do crime e da violência; transversalidade e integralidade das ações de segurança pública; incorporação em todos os níveis da política de segurança de mecanismos de gestão, monitoramento e avaliação; participação e controle social desde a formulação das estratégias à execução da política. Na esteira da implementação do programa, o estado reduziu em 36% a taxa de homicídio entre 2007 e 2013. “O que Pernambuco fez? Unificação territorial da Polícia Civil e da Polícia Militar, porque, normalmente, uma área de um batalhão não corresponde a uma área de um distrito, e para gerir, o território fica confuso; fez um sistema de metas e de controle externo dessas metas, e investiu também em capacitar as polícias para o cumprimento das metas”, enumera Isabel Figueiredo.
Desde 2013, no entanto, a taxa de homicídios no estado voltou a subir, passando de 33,9 a cada 100 mil habitantes em 2013 para 41,2 em 2015. Para Isabel, o caso de Pernambuco exemplifica o problema da fragilidade das políticas de segurança pública, que em geral dependem da vontade política dos gestores. “Falta uma política de Estado mesmo, que de alguma forma sobreviva a essas mudanças. É muito ruim um projeto que dependa fundamentalmente da liderança do gestor porque política pública não é de curto prazo”, lamenta.
No nível municipal, um exemplo de política eficaz na redução dos homicídios frequentemente citada na literatura é o de Canoas, no Rio Grande do Sul. Inspirada em políticas de sucesso na redução da criminalidade violenta adotadas em cidades como Nova Iorque, Bogotá, e em estados como Pernambuco, a cidade implantou um programa que reduziu o número de homicídios em 22% entre 2009 e 2016, na contramão dos números apresentados pelo estado como um todo, que registrou um aumento de 65% nos homicídios no mesmo período. “Canoas é uma experiência interessante porque é articulada a partir do município, que é quem aciona o estado e eles, em conjunto, vão desenhar um pacote de medidas de prevenção, que é a parte que cabe mais ao município, que não tem polícia propriamente dita”, explica Isabel. Com esse objetivo, o município criou um Sistema Municipal de Prevenção à Violência, por meio do qual foram criados mecanismos para monitorar situações de violência nas escolas. Também foram criados programas para o monitoramento e atendimento de jovens que apresentassem comportamentos considerados de risco para a violência, como evasão escolar e abuso sexual. Foram criadas ainda as Casas da Juventude, para atendimento a jovens em conflito com a lei, e as Casas de Cidadania, para atender egressos do sistema prisional e suas famílias, bem como um serviço municipal para reabilitação de homens autores de violência contra mulheres, entre outras iniciativas.
A cidade de Diadema, na Grande São Paulo, é outro exemplo citado por Marcos Rolim. O município, que em 1999, tinha a maior taxa de homicídios do estado, com 102,8 assassinatos para cada 100 mil habitantes, identificou que o consumo de álcool era um fator de risco com peso grande nos homicídios cometidos na cidade, e havia um grande número de casos registrados em ou próximos a bares, entre as 23h e 4h da manhã. “Com base nisso Diadema implantou medidas como o controle sobre a venda de bebidas alcoólicas com horários obrigatórios para o fechamento de bares, o que reduziu significativamente o número de homicídios”, explica Rolim. Em 2011, a taxa de homicídio na cidade havia caído para 9,52 para cada 100 mil habitantes, uma redução de 90%. “Na América Latina, o que ocorreu na Colômbia segue sendo uma referência fundamental. Por conta de políticas públicas inteligentes que investiram na prevenção, cidades como Bogotá e Medellin, que já estiveram entre as mais violentas do mundo, são hoje bem mais seguras que a maioria das capitais brasileiras”, conclui Rolim.
Como ressalta Isabel Figueiredo, são vários os exemplos de políticas eficazes no combate à violência, e nenhum deles trouxe como proposta o armamento da população civil. Segundo ela, existem hoje consensos sobre o que funciona para a redução da violência. “Existem temas na segurança que são bastante polêmicos, mas há muitos temas importantes que têm consenso, da Polícia à academia, passando pelo gestor. Uma delas é a necessidade de construção de um arranjo federativo. É sobre os consensos que o Congresso deveria estar trabalhando”, diz Isabel. E complementa: “Do ponto de vista do desarmamento, o Estatuto é ótimo. A gente estaria no caos absoluto se ele não existisse. Mas falta um ‘conjunto da obra’ para efetivá-lo como parte de uma política de segurança pública decente. Temos que andar para frente, e não retroceder com base em ‘achismos’”.
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Mais armas, menos crimes? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU