Encontro no Complexo do Alemão revela: o Brasil precisa radicalizar a participação direta. Quais os mecanismos existentes. O que os limita. Como construir, em resposta ao fascismo e à lógica dos mercados, uma democracia real.
O artigo é de Sonia Fleury, doutora em Ciência Política e pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fundação Oswaldo Cruz e coordenadora do Dicionário de Favelas Marielle Franco do ICICT/FIOCRUZ, publicado por Outras Palavras, 13-12-2022.
No dia 8 de Dezembro foi lançado o Plano de Ação Popular da CPX – Complexo do Alemão, uma agenda de políticas públicas para um território heterogêneo, composto por várias favelas com diferentes trajetórias e dinâmicas sociais. O processo de formulação do plano envolveu a articulação de um conjunto de cerca de duas dezenas de organizações locais, além mobilizar o apoio externo de diversas outras. Foram feitas reuniões de capacitação e encontros temáticos itinerantes para mobilização e coleta das demandas da população. Posteriormente, foram organizados fóruns temáticos para debater as propostas e buscar soluções consensuais, uma dinâmica denominada desenrolo.
No lançamento do plano compareceram lideranças locais e de coletivos de várias outras favelas, um dezena de parlamentares, membros da defensoria pública e do ministério público, pesquisadores de diferentes instituições acadêmicas, comunicadores populares. As falas ressaltaram o protagonismo das favelas e sua capacidade de produção de conhecimentos e formulação de políticas. Nas palavras dos organizadores, Alan Brum e Samantha Dias, em tempos de democracia é preciso considerar os novos quadros técnicos e acadêmicos que nas favelas produzem conhecimentos a partir de suas reflexões e vivências comuns:
“Durante muito tempo, a relação das favelas com o poder público foi de subalternidade … induzindo moradoras(es) à passividade. Mas os tempos são outros. (…) Considerando a memória e a história favelada, bem como a atual conjuntura política, faz-se necessário radicalizar a democracia e os espaços de participação direta, principalmente das populações mais vulnerabilizadas. Mas, estamos falando de uma participação efetiva que se traduza em ações, e não de espaços de pseudoparticipação com duplos monólogos no lugar de diálogos entre a Favela e o poder público”.
A Constituição Federal de 1988 estabelece em seu Artigo 1º que a República, constituída em Estado democrático de direito, tem como fundamentos a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; o pluralismo político. Com relação ao exercício do poder, reza no parágrafo único do art. 1º que “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.(grifos nossos)
No Artigo 14 estabelece a possibilidade de participação direta dos eleitores através do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular legislativa. Enquanto os instrumentos do referendo e do plebiscito requerem uma interpelação da sociedade pelo Estado, a iniciativa popular legislativa se origina em uma ação coletiva da sociedade para criar um projeto de lei a ser submetido ao Parlamento. Apesar das restrições impostas para validar este instrumento, como o quórum de 1% do eleitores distribuídos em pelo menos 5 Estados, e da necessidade de que a proposta seja encampada por um membro do Legislativo. Mesmo não sendo assegurada prioridade ao seu trâmite congressual, já deu bons resultados, como a Lei da Ficha Limpa. Outras legislações ampliaram o controle social como a LAI – Lei de Acesso à Informação. Medidas como o Disque-Denúncia também ampliaram a incidência da população nas ações públicas. A interação entre poder público e a sociedade se expandiu também com a criação de ouvidorias públicas e dos mecanismos de controle interno do poder público.
À exceção da iniciativa popular legislativa, a maior parte dessa iniciativas visando aumentar a transparência, a consulta popular e o controle sobre ações públicas, com exceção da iniciativa popular legislativa, envolvem iniciativas individuais e participações fortuitas dos usuários das políticas públicas, carecendo de interação coletiva e monitoramento de uma dada política pública. São, portanto, um tipo de participação que além de individualizada, atribui baixo nível de poder aos indivíduos. Mesmo as audiências públicas, nas quais os poderes Legislativo e Judiciário convidam agentes da sociedade para ouvir suas opiniões sobre temas em disputa, por serem apenas consultivos, não possuem características de institucionalidade, troca mútua de informações e capacidade de incidência. Portanto, chegamos ao cerne da discussão de participação que remete à questão do poder na ação coletiva.
Assumimos que a participação diz respeito à interação entre Estado e Sociedade Civil, materializada em estruturas institucionais relativamente estáveis, que permitem o estabelecimento de um fluxo de informações envolvendo vocalização de demandas, prestação de contas e formulação e controle na execução das políticas públicas. As instâncias participativas variam em termos do grau de institucionalização, modalidades de relação, tipos de recrutamentos, dinâmica de comunicação além do nível de socialização de conhecimentos técnicos e grau de controle sobre operações do aparato público. Considerando as relações de poder é preciso levar em conta o controle da agenda dos processos decisórios sobre definição de planos, prioridades e alocação de recursos públicos.
Tanto Estado quanto a Sociedade têm como atributos comuns a autonomia e inserção, portanto, a interação entre ambos por meio de dispositivos de participação deve preservar essas características em ambos os polos envolvidos. Ou seja, a noção de participação exclui o comum “enfeudamento” de órgãos estatais por interesses empresariais assim como a cooptação de organizações da sociedade civil. Igualmente, a prestação de serviços públicos por organizações sociais se distancia da noção de participação social e até mesmo se opõe a ela, na medida em que reduz a relação a um contrato comercial entre Principal e Agente.
Diferentemente da noção de governança, que diz respeito ao arranjo institucional envolvendo as relações entre os poderes públicos para viabilizar a execução de políticas, a governabilidade é um atributo da sociedade, de sua cultura política e sua capacidade de gerar mecanismos de inclusão social e negociação de conflitos, legitimando, assim, o exercício do poder. Assim, a criação de dispositivos de democracia participativa atua, simultaneamente como potencializador da governança e da governabilidade, aprofundando a democracia.
Os principais canais de participação que caracterizaram a arquitetura democrática brasileira, singularizando-a em relação às democracias já consolidadas foram os Conselhos, as Conferências e o Orçamento Participativo.
No seu primeiro governo o Presidente Lula criou o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – CDES, conhecido como Conselhão, como órgão auxiliar da Presidência da República, com a missão de discutir temas de políticas e sugerir medidas para aprimorar políticas públicas e viabilizar reformas que o governo pretendia enviar ao Congresso. Seguia o exemplo de países europeus, que criaram conselhos como instâncias de negociação e pactuação entre atores sociais. Porém, diferia daqueles que foram criados em outro contexto, por não ter uma composição exclusivamente corporativa – governo, empresários e sindicatos – diversificando e ampliando sua composição para incluir movimentos sociais, organizações não governamentais, intelectuais e organizações religiosas.
Trata-se de um conselho apenas consultivo com limitações tanto por este caráter, que não assegurava maior incidência nas políticas, quanto pelo fato de o governo ter total controle da agenda (posteriormente suavizado) e adotar uma dinâmica bastante rígida em relação à busca de medidas consensuais. Além das plenárias que realmente inauguraram uma inovadora interlocução entre os participantes da sociedade com membros do governo, e mesmo com o Presidente, havia grupos que se dedicavam a tratar temas específicos como as propostas de reforma da previdência e a reforma sindical, com participação ampliada para especialistas em cada tema. No entanto, mesmo aprovadas medidas nos grupos de trabalho, elas poderiam ser vetadas por participantes da plenária que não estiveram presentes nos trabalhos dos grupos.
Apesar do caráter dialógico em uma arena pública na qual se encontravam, naquele espaço, em igualdade de condições discursivas, a enormes desigualdades da sociedade brasileira, impediam a formação de coalizões policlassistas que pudessem encaminhar um projeto de desenvolvimento econômico e social que contrariasse os interesses e hegemonia do capital financeiro.
Os Conselhos Setoriais têm diferentes trajetórias, graus de institucionalidade e capacidades. Mesmo os mais longevos, como o Conselho Nacional de Saúde, adquiriram novas atribuições, novas composições, incluindo a sociedade civil, e distintas competências nos anos 1990, fruto das demandas da sociedade organizada que participara nas lutas pela democratização e no construção da institucionalidade democrática durante a Assembleia Nacional Constituinte em diferentes áreas de políticas sociais, urbanas e ambientais existem Conselhos que têm uma composição mista entre membros do governo e da sociedade civil, a exemplo do Consea na área de segurança alimentar e nutricional ou o CNS, Conselho Nacional de Saúde, o Conselho Nacional de Assistência Social, dentre muitos outros. No caso das políticas descentralizadas, existem conselhos similares nos níveis estaduais e municipais.
Com relação às atribuições, os conselhos têm como missão o exercício do controle social, a elaboração e/ou aprovação de prioridades, planos e políticas em relação aos sistemas nacionais de cada área. Além disso, têm a atribuição de convocar e organizar a realização das Conferências, ou seja, promover, periodicamente, a mobilização social. O grau de institucionalização é variável, sendo que alguns, como o Conselho Nacional de Saúde, foram criados por lei com atribuições de cogestão, enquanto outros foram criados por decreto ou ato normativo. Com o governo Bolsonaro ficou patente a fragilidade institucional neste último caso, quando um de suas primeiras medidas foi a extinção de centenas de conselhos (Decreto 9.759) que não haviam sido criados por lei.
A capacidade da sociedade civil, representada nos conselhos, de incidir na política pública depende da correlação de forças em cada momento, sendo que contribuem para o bom desempenho dos membros dos conselhos a trajetória político-institucional, bem como a permeabilidade do governo ao compartilhamento da gestão. Já a formalização da participação privilegia os grupos corporativos e outros mais fortemente organizados, em detrimento de setores que carecem de recursos e de capacidade organizativa. Em muitos casos, os interesses corporativos se sobrepõem aos interesses gerais e os representantes se distanciam dos movimentos e organizações de base.
As Conferências Nacionais adotaram o modelo criado para a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, um processo ascendente de discussão temática, eleição de delegados em cada um dos níveis de governo, culminando com a aprovação das teses na plenária nacional. A composição dos delegados envolve representantes do governo e da sociedade, com cotas previamente aprovadas. Trata-se de um processo de grande efervescência e mobilização social nacional, no qual se forma a vontade política. Diferentemente dos conselhos que participam da gestão pública, as conferências não têm incidência vinculante na política, a não ser pela sua capacidade de formar valores, consensos, construir alianças e definir diretrizes e estratégias.
No entanto, a grandiosidade das assembleias tem limitado possibilidades de debate e geração de consensos, ritualizando a defesa das posições previamente aprovadas. Assim, perdem a capacidade de, em uma perspectiva dialógica da democracia comunicacional, ouvir os argumentos contrários, aprender com os demais, e até mesmo, alterar posições para construir uma proposta comum.
O Orçamento Participativo – OP foi a mais radical inovação da democracia brasileira, pois é o único modelo de democracia deliberativa, na qual as decisões tomadas em um processo de debates estabelecem prioridades políticas que definem a alocação de recursos para as políticas públicas. Trata-se de uma metodologia extremamente original que implica: 1) a mobilização direta da população que discute suas prioridades de acordo com uma tipologia de áreas de políticas públicas; 2) a discussão e compatibilização das prioridades de diferentes grupos populacionais no território; 3) a ponderação do valor atribuído às prioridades estabelecidas pela população, face a critérios técnicos de abrangência e carência do bem escolhido, cujo valor final definirá o montante de recursos orçamentários alocados; 4) a compatibilização das prioridades ponderadas com critérios de planejamento urbano e social; 5) o acompanhamento da execução da política por populares eleitos para tal fim; 6) a prestação anual de contas e a revisão e aprimoramento dos critérios e do processo.
Trata-se do compartilhamento de poder com a população, já que o Executivo tem a prerrogativa de encaminhar a proposta de Lei Orçamentária para o Legislativo. Experimentado em algumas cidades como, por exemplo, Porto Alegre e Belo Horizonte, foi bem avaliado em relação à transparência pela agência internacionais, enquanto estudos mostravam a redução da desigualdade na distribuição dos recursos públicos no território dos municípios. Também é apontado o fato de que se trata de um processo de socialização do saber sobre uma área tradicionalmente dominada por interesses políticos travestidos de conhecimentos técnicos. Foi, no entanto, criticado por ser uma forma do Executivo pressionar o Legislativo para aprovação de sua proposta orçamentária, quando não tem maioria nessa casa, o que não fere os princípios democráticos. Também criticado por ser limitado aos recursos discricionários, ou a uma parcela deles. Ambas as críticas não invalidam a importância da metodologia inovadora que combina prioridades políticas com critérios técnicos, uma combinação que deveria inspirar outros processos decisórios nas políticas sociais. No entanto, não foi ampliado para os níveis estadual e nacional até o momento.
Emocionado, na sua cerimônia de diplomação, o presidente Lula, afirmou que a população não quer apenas votar, ela quer participar nas decisões políticas. Ela não quer só reclamar das suas carências, ela quer ter os bens públicos a que tem direito. Lula afirma, assim, os compromissos assumidos na sua campanha, na qual prometeu implantar o orçamento participativo em nível federal. Trata-se de um discurso em total sintonia com a realidade apontada pelo Plano de Ação do Complexo do Alemão, um reconhecimento de que a realidade mudou, que a população exige um novo modelo de participação que vá além dos dispositivos existentes em nossa democracia.
Assim como o processo de mobilização pela democratização inspirou o modelo de democracia participativa vigente nas últimas décadas, o mesmo fenômeno se dá agora, com a luta contra um governo autocrático e negacionista, voltado para a corrosão, por dentro, das instituições democráticas, e a desmontagem das política públicas que asseguram direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais. A derrota eleitoral foi fruto da organização de uma miríade de organizações, sua articulação em frentes como a Frente pela Vida, a criação de comitês populares, a reativação de uma teia de militantes políticos e a participação de uma juventude disposta a reconquistar um projeto democrático para o país.
A perspicácia política de Lula o fez construir uma ampla frente democrática, sem renunciar a suas prioridades no combate à pobreza, à fome, à desigualdade e à injustiça, sintetizadas no slogan “colocar os pobres no Orçamento”. Vitorioso o projeto democrático nas eleições, resta a enorme tarefa de reconstruir o país e derrotar a ultradireita, ou seja, o conservadorismo e as diferentes formas de propagação da violência e intolerância. O conservadorismo e a propagação de fake news por meio das bolhas religiosas e neofascistas acabaram capturando uma classe média insatisfeita com o modelo econômico que privilegiou os muito ricos e distribuiu para os muito pobres, deixando os que estão no meio da estratificação social em uma situação de insegurança econômica e medo da perda de privilégios. Dessa forma, a ultradireita foi capaz de construir a ilusão de que poderia oferecer um horizonte em que nada mudará, quando tudo já mudou! Para piorar, todo o discurso de defesa das liberdades e da segurança econômica não é mais do que a amálgama de um projeto neoliberal decadente, hegemonizado pela elite do capital financeiro que é a única a dele se beneficiar.
Para derrotar as forças reacionárias mobilizadas em total sintonia e com apoio de organizações de direita internacional, será necessário manter, nos próximos quatro anos de governo democrático, uma grande mobilização social, a ser conseguida por meio da revitalização da nossa democracia participativa. As Comissões de Transição inauguraram um novo formato, condizente com a existência de uma frente e com a necessidade de eliminação das iniciativas antidemocráticas (“revogaço”), cujo objetivo é a reconstrução da inteligência estatal e das políticas públicas, considerando as transformações sociais e a necessidade de inovação e fortalecimento em relação à arquitetura da participação social.
Por suposto temos que aprimorar o que já existe:
As Comissões de Transição se mostraram um mecanismo ágil, com plasticidade e porosidade necessárias para ouvir os diferentes grupos que se organizaram e formularam propostas concretas para as políticas públicas. Criadas para serem temporárias, deveriam ser incorporadas à arquitetura da participação existente? Manter as Comissões de Transição seria o caminho? Seriam uma alternativa para fortalecer e desburocratizar os mecanismo atuais de participação?
Estou segura de que a democratização da democracia exigirá maior abertura à inovação e uma constante mobilização social, pois a participação será a chave do sucesso do novo governo. Nos termos gramscianos penso na necessidade de construirmos um Estado pedagógico, cuja interlocução com a sociedade será uma via de mão dupla no processo comum de aprendizagem e construção democrática. É um equívoco pensar que as pessoas querem apenas benefícios e serviços públicos. Sim, querem serviços melhores e maior distribuição da renda, assim como a segurança da exigibilidade dos direitos. Falamos que os direitos da cidadania asseguram a inclusão na comunidade de cidadãos, mas essa é uma linda ficção. O que as pessoas buscam nas igrejas vai além da fé, querem pertencimento. As lutas identitárias nos ensinam que as pessoas querem também reconhecimento, que deveria ser elevado à categoria de direito humano básico.
Só derrotaremos o neoliberalismo com sua ideologia meritocrática individualista criando uma perspectiva comum e solidária. Cada ação da sociedade civil organizada, cada posto de serviço do governo deveria estar envolvido na construção dessa nova sociabilidade, na inserção dos usuários em uma comunidade de sentidos e na disputa pela esperança e pelo sentido da vida. Para isso, teremos que nos despojar da arrogância técnica e aprender com os saberes oriundos da vivência, caso contrário, seremos sempre, independentemente das ideologias, intelectuais orgânicos da dominação.
[1] Acesse aqui o Plano de Ação Popular
[2] Uma versão completa com bibliografia sobre o tema pode ser vista em FLEURY, S, DOI: 10.13140/RG.2.2.34639.36002.