12 Outubro 2018
“Quando todos os véus caem e as mesmas palavras passam a nomear muitas vezes a mesma coisa, quando os significantes ficam saturados, parece ser necessário, mais do que nunca, questionar os velhos rótulos”, escreve Julieta Waisgold, em artigo publicado por Página/12, 10-10-2018. A tradução é de André Langer.
E pergunta: “Será que a única saída é esperar pelo fim do governo de Macri ou será que ainda existe um lugar onde as palavras podem articular novas construções de sentido e onde a política esteja viva?”.
Julieta Waisgold é advogada, licenciada em Comunicação e pós-graduada em Comunicação Política pela Universidade Austral.
O espanhol Iñigo Errejón, líder do Podemos, conta em uma recente entrevista que nos últimos anos seu partido entrou em um intenso processo de discussão interna. Na direita, o Ciudadanos começou a disputar-lhe o discurso da renovação política e, mais adiante, a chegada do socialista Pedro Sánchez como presidente do Governo, parecia aumentar as expectativas e as possibilidades de fazer da Espanha um país socialmente mais justo.
O Podemos nasceu no calor dos protestos sociais com uma identidade diferente da esquerda tradicional e hoje parece enfrentar uma armadilha: deve disputar sentido ao PSOE a partir do discurso clássico da esquerda, ou continuar a buscar outras formas de dizer, mesmo que impliquem posições menos confortáveis?
Com um governo de sinal político oposto ao espanhol e deste lado do oceano, a oposição argentina está em uma encruzilhada similar. Até mesmo Cristina Kirchner, sua referência melhor posicionada nas pesquisas, tem um teto.
Apesar da crise econômica, o discurso da oposição parece ter se cristalizado em um ponto a partir do qual ainda não consegue traçar um horizonte amplo, um futuro em que haja esperança. Para furar esse limite, será suficiente abrigar-se nos velhos rótulos até o fim do governo Macri?
A história recente mostra que nos mesmos significantes podem caber sentidos muito diferentes. A ideia da ordem, por exemplo, que hoje está associada à direita, em 2003 era a espinha dorsal do discurso de Néstor Kirchner e significava avanço social em um “país normal” e mais justo.
Ordem era cuidar das contas para alcançar um equilíbrio econômico com justiça social. Ordem eram trajes listrados para os grandes sonegadores fiscais. Ordem eram as Forças Armadas integradas à sociedade e respeitosas dos direitos humanos.
Mais tarde, quando a economia do país começou a entrar nos eixos, o significante da ordem deixou de pesar e abriu caminho primeiro para a politização social e, depois, para a disputa política hegemônica aberta. Nesta última etapa, a encenação do amigo e do inimigo tentou fazer todos os véus caírem. Os sentidos se tornaram fixos, reduzindo a tensão democrática e levando o discurso ao seu ponto máximo de radicalização.
Se lermos com atenção, em lugar algum o teórico do populismo que defende a radicalização da democracia, Ernesto Laclau, recomenda fazer política no deserto do real, onde já não existem mais máscaras. Trata-se, antes, que a linguagem se expressa em significantes vazios suficientemente amplos para que neles caibam diferentes demandas.
O significante nomeia essas demandas que sempre estarão em tensão para dentro e também para fora. A disputa política não ocorre de uma vez por todas por um sentido determinado e fixo. Não há, em termos populistas, vencedores e perdedores definitivos, mas ligados à contingência.
A radicalização da última etapa do kirchnerismo tirou espaço para as tensões internas e muitos aliados foram para a trincheira da frente. O amor não é o único fator pelo qual se constitui o laço libidinal entre o líder e o povo, lembra Laclau. A fé move montanhas, mas não necessariamente revitaliza internamente os partidos. Quando todos os véus caem e as mesmas palavras passam a nomear muitas vezes a mesma coisa, quando os significantes ficam saturados, parece ser necessário, mais do que nunca, questionar os velhos rótulos.
Na Espanha, Errejón disse que se trata de uma luta incansável pelo significado, com vistas a reinventar essa ideia do que significa fazer avançar a sociedade sem se apegar a nenhum termo. Não são as palavras que devem fixar os sentidos, mas o contrário.
E não devemos perguntar ao Perón de 1943 como ele fez para dotar de entidade a ideia abstrata do trabalho e encolunar a maioria dos sindicatos, que até esse momento eram de outras extrações políticas no peronismo. Ou a Néstor Kirchner para fazer o progressismo se encaixar na ideia de ordem.
Devemos perguntar a Perón por que seus discursos incluíam obsessivamente tanto o capital como o trabalho. A Kirchner, por que, em 2003, ele escolheu falar sobre ordem e justiça social e não apenas de redistribuição da renda.
Será que a única saída é esperar pelo fim do governo de Macri ou será que ainda existe um lugar onde as palavras podem articular novas construções de sentido e onde a política esteja viva?
Mudança é o nome do futuro.
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