18 Janeiro 2017
O conselho e o alerta é de Hans Zollner, jesuíta , diretor do Centro para a Proteção da Criança – CCP, vinculado à Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma, em longa entrevista concedida a Christopher Lamb, publicada por The Tablet, 02-01-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Eis a entrevista.
O Centro para a Proteção da Criança (CCP) tem agora cinco anos de existência. Até agora, o senhor já visitou cerca de 40 países em cinco continentes, a fim de conscientizar e promover medidas de proteção. Qual é o seu conceito de 'Igreja universal' a partir dessas experiências?
Em todos os lugares que visitei, vivenciei uma unidade de fé, uma sensação de estar em casa - seja em uma igreja durante alguma liturgia ou reunião, com pessoas de diferentes culturas em suas escolas, locais de trabalho ou mesas de jantar. Você sente uma conexão compartilhada, independente de como a fé se expressa através das diferentes culturas. Certamente, o catecismo comum, a crença e especialmente a Eucaristia são pontos universais de convergência e unidade.
No entanto, a minha experiência tem mostrado que também há unidade nos problemas que enfrentamos enquanto Igreja global. É alarmante saber que tenham acontecido abusos sexuais de menores em todos os cantos de todos os países da Igreja. Sabendo disso, temos também a consciência de que certos fatores inerentes à organização da Igreja também podem ser parte do problema, incluindo o funcionamento da hierarquia frente a uma injustiça cometida por um dos seus próprios membros, bem como a compreensão da relação de bispos ou provinciais com os sacerdotes que estão sob sua responsabilidade quando é preciso enfrentar algum problema sério.
Em muitos lugares vejo que temos a força e o momento certo para mudar e enfrentar proativamente e em larga escala as dificuldades, que envolvem, por exemplo, uma compreensão básica do papel do padre hoje, questões sobre formação humana para seminaristas e religiosos. Percebemos que em uma época em que a autenticidade é um dos principais valores, somos chamados a avaliar nossos modos de lidar com o poder, o dinheiro e um estilo de vida confortável, confrontando com a mensagem do Evangelho. Não pode haver espaço para tolerar uma atitude de se dar ao direito de fazer o que se quer mesmo que isso implique má conduta sexual.
Então, o que podemos vislumbrar como uma solução possível? Alguma força policial internacional por parte da Igreja?
É claro que não pode haver uma força policial da Igreja, como uma nova espécie de inquisição. A Igreja não atua - e legalmente ou legitimamente nem pode atuar - como um poder de liderança secular no mundo inteiro. Acima de tudo, a Igreja respeita a organização do Estado e coopera com as leis e procedimentos legais sempre que possível. Somos chamados a cooperar claramente com o direito civil nos casos em que se pode falar de crime. No entanto, existem alguns casos em que a acusação não é tão clara, o estatuto não a prevê ou a força policial é ineficaz.
Nestes casos, a Igreja ainda tem a obrigação moral de agir, e, no mínimo, julgar a situação do acusado e determinar se eles podem ou não ocupar um papel de responsabilidade na Igreja. A maneira como a Igreja lida com as alegações de abuso tem evoluído. Quando o cardeal Joseph Ratzinger era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), ele trabalhou para transferir para lá a responsabilidade do processo de casos de abuso sexual clerical. Desde que a CDF assumiu essa responsabilidade, em 2001, há uma abordagem mais completa às acusações, e muitos infratores do clero foram levados à justiça. No entanto, o que a CDF pode fazer é limitado. Também é verdade que o processo canônico geralmente leva bastante tempo, e tanto as vítimas quanto os acusados muitas vezes ficam no escuro, sem saber em que ponto está o processo.
Apesar destas deficiências, há uma clara necessidade de uma agência central para lidar com este problema, e na Igreja esta é uma função da CDF. Ela também está aconselhando sobre a elaboração de medidas de proteção para as conferências episcopais. Enquanto não houver clareza suficiente sobre o que o presidente de uma Conferência Episcopal ou Metropolitana pode implementar, é preciso haver um centro de coordenação, uma entidade global superior, 'super partes'.
No entanto, isso não é suficiente, porque não leva em conta a necessidade e o potencial que a Igreja tem para promover a proteção dentro - e além - de seu próprio domínio.
Esta é provavelmente uma das razões pelas quais o Papa Francisco criou a Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores em março de 2014, que reúne pessoas de diferentes continentes e profissões que atuam em consultoria ao Santo Padre. Como sou o líder do grupo de trabalho da Comissão Pontifícia da educação dos líderes da Igreja, este papel se conecta muito bem ao trabalho dessa Comissão. Mantendo o princípio da subsidiariedade, reiterado pelo Papa Francisco, deve se delegar tarefas que possam ser confiadas a um nível mais baixo (ou local) de responsabilidade, desde que a competência e as capacidades necessárias a esse nível sejam garantidas. Com relação ao seu trabalho de proteção, esta é a abordagem do Centro de Proteção à Criança da Pontifícia Universidade Gregoriana. Oferecemos educação e formação que pode ser adaptada para diferentes idiomas e diversos contextos locais e socioculturais, compartilhando de um projeto global comum para a proteção dos menores.
O senhor destacou as diferenças culturais que existem. Como o Centro de Proteção à Criança se propõe a manter uma abordagem coerente entre tantos contextos variados?
O Centro para a Proteção da Criança funciona a partir de um ponto de vista acadêmico, em conjunto com universidades e pesquisadores. A partir desta perspectiva, manter um padrão científico - que implica pesquisas e publicações baseadas em evidências e avaliadas por pares - é vital para a sua missão. No entanto, os métodos científicos nas diversas áreas envolvidas não independem de fatores históricos e culturais. Pode ser difícil chegar a um entendimento comum, por exemplo, do que "toque" significa em cada cultura, mesmo falando de algo simples como um aperto de mão. Isso pode levar alguns a dizer que não é possível alcançar um padrão comum na questão da proteção. Mas enfatizar as diferenças seria um erro.
Cada cultura tem uma compreensão do que é estupro. Pessoas de todas as culturas sabem o que é perder a confiança. Assim, por um lado, queremos utilizar critérios científicos para medir o impacto do abuso e da eficácia das medidas de proteção. Por outro, se não levarmos a sério as diferenças culturais - as diferentes formas como as pessoas vivem fora da vida familiar, constroem confiança e se relacionam com autoridade, etc. -, podemos perder a noção concreta de como o comportamento abusivo está acontecendo, como é validado dentro da cultura, como é tratado, incluindo a reparação ou a negligência, e onde seria possível intervir ou onde a proteção poderia começar. Se tentarmos impor um padrão ocidental, as pessoas podem aceitá-lo abertamente, mas não torná-lo mais profundo em termos de posicionamento, o que é necessário para uma mudança duradoura.
Posso dar alguns exemplos de lugares que desafiam as sensibilidades ocidentais. Recentemente, quando eu estava no México, um bispo veio até mim e contou a história de uma área indígena onde é simplesmente natural e aceito pelas tribos da região que os pais podem vender suas filhas aos vizinhos. Ou podemos falar da situação da Índia, em outra população indígena, onde quando uma jovem tem relações sexuais fora do casamento e engravida, caso o pai de seu filho não seja o que foi prometido pela família, há um ritual para fazer as pazes. As famílias sacrificam duas cabras e se derrama seu sangue para que a transgressão seja apagada. Em seguida, eles preparam um banquete e a criança fruto da união proibida é dada a uma família adotiva. A jovem fica então livre para casar com quem ela estava prometida. As pessoas parecem estar de acordo com esta solução, mas como uma compreensão ocidental do direito consideraria esta situação?
Podemos dar outro exemplo, das Filipinas. Lá, recusar-se a tocar ou dar carinho às crianças é considerado muito estranho, até mesmo nojento. Para eles, é completamente normal que os homens andem na rua de mãos dadas. Como se ensina limites a crianças e adultos, o que é um toque do bem e o que é um toque ruim?
Seria possível dar muitos outros exemplos como estes que ilustram os desafios da proteção em diferentes contextos em que simplesmente insistir em modelos de proteção "anglófonos" ou "ocidentais europeus" não vai resolver o problema. Enquanto nós não entendermos realmente esses padrões de comportamento profundamente enraizados, e como a afetividade humana é vivida em cada cultura, não seremos capazes de causar impacto algum. Outras culturas precisam da nossa contribuição, mas também precisam traduzi-la em sua própria linguagem, simbologia e formas de educar as pessoas e mudar comportamentos.
É preciso ensinar as pessoas e empoderá-las a se comportarem de um jeito novo - por exemplo, para criticar a autoridade. Imagine a resistência a este tipo de ideia na África, onde em muitos lugares o sacerdote reina como um chefe! Neste momento histórico, a Igreja tem uma capacidade única de promover e apoiar mudanças no pensamento e no comportamento. Temos um único sistema de comunicação global que é baseado na fé e proclama os mesmos valores, mesmo que sejam transmitidos e expressos de forma diferente. Nós podemos alcançar a base, assim como os líderes de organizações e governos. A Igreja pode ser um canal único de comunicação e cooperação, mas nós ainda não tiramos pleno proveito disso. O problema do abuso é um exemplo da nossa falta de cooperação, porque em quase todos os países a Igreja tem repetido os mesmos erros dos países que já tiveram de lidar com crises antes.
O que podemos aprender com os países que já sofreram algum tipo de blitz de mídia, destacando o abuso sexual em organizações da Igreja - países como o Canadá, Alemanha, Estados Unidos, Bélgica, Holanda, Austrália, agora a França...?
De fato, um dos desafios é como lidar com isso como uma comunidade global e desenvolver formas e métodos de trabalho e aprendizagem em conjunto. Vimos que nos lugares onde há uma liderança clara, convicta e convincente, a implementação de um programa de proteção funciona. Nós não precisamos reinventar a roda para responder às principais questões desse tema.
Por exemplo, a Austrália tem investigado muito bem e tem uma riqueza de informações para oferecer. Vários países já aprenderam da pior maneira como responder. E eles podem transmitir os recursos que têm. Em todos os países, só houve tentativas sérias de resposta após alguma tempestade da mídia destacando o encobrimento de abusos. Sem esses escândalos públicos, parece que nada teria mudado.
A nossa mensagem simples para países onde a Igreja ainda não passou por um julgamento pela mídia é: reconheçam potenciais problemas e comecem a mudança agora!
Nós aprendemos que precisamos de uma autoridade central. Quando a liderança não é clara, ou quando estruturas de autoridade e relacionamento são nebulosas, todos os tipos de danos e má conduta tornam-se possíveis e é necessário que uma autoridade superior intervenha, especialmente para trazer justiça aos sobreviventes.
Subsidiariedade significa que é preciso ter alguém com autoridade, conhecimento e posicionamento, mas disposto a compartilhá-los. Então, precisamos de pessoas treinadas, que possam operar mudanças estruturais, e essas pessoas precisam de muita perseverança. Nós também aprendemos que precisamos de medidas educacionais diferentes para alcançar diferentes níveis da sociedade. As pessoas têm diferentes competências, não se pode esperar que todos completem 36 unidades de um programa de ensino à distância. Assim, um programa de "formação de base" também é necessário - sem perder impacto nem o contexto, e com todo o rigor da pesquisa aprofundada.
Considerando tudo o que foi dito, o que precisa acontecer agora? Que direção a Igreja pode tomar para promover o seu compromisso de proteger os menores?
Ao longo dos últimos cinco anos, surgiu uma nova consciência sobre a questão do abuso sexual infantil em todas as partes do mundo. Agora, há uma abertura para falar sobre o problema, e é possível organizar conferências e programas educacionais. Dada a grande necessidade de resposta de dentro e a partir da Igreja e a crescente abertura para trabalhar em conjunto, o Centro de Proteção à Criança pode estruturar um modelo de cooperação entre países e culturas. Nós já estamos indo nesta direção. O PPC oferece um programa de ensino à distância projetado para ser adaptado a diferentes culturas. Pedimos aos nossos parceiros não só feedback, mas também contribuições e colaboração. Estamos trabalhando para construir uma base de conhecimento fundamentada na pesquisa, no ensino de habilidades, em contatos de todo o mundo e na experiência na área. Estamos indo até os países e experimentando como acontece em primeira mão, buscando compreender como as pessoas se relacionam com esta questão e colocando em diálogo todas essas situações. No momento trabalhamos com cerca de 25 parceiros em mais de 15 países em quatro continentes.
Quase todos eles são universidades ou departamentos de pedagogia, teologia, psicologia e medicina. No entanto, não podemos ser os que vêm de Roma para encontrar uma solução para todos.
O que precisa acontecer é que os nossos parceiros contextualizem o programa, tornando-o acessível em sua mensagem central e usando uma linguagem e um método concisos. Isso precisa ser feito para sua própria situação e nós podemos oferecer-lhes assistência. Estamos trabalhando para disseminar o conhecimento de uma forma que seja compreensível em todas as partes do mundo. Por exemplo, muitas pessoas não entendem direito canônico, mesmo que ele se aplique a todos os católicos e a todos os sacerdotes. Então, trabalhamos com especialistas em determinados temas, como o direito canônico, para trazer seu conhecimento a um público muito mais amplo. O PPC se distingue pela sua abordagem multidisciplinar, envolvendo psicologia, teologia, direito canônico, sociologia, pedagogia e mídia. Também é único no sentido que nós decididamente não vendemos o programa, mas pedimos que parceiros sejam corresponsáveis por ele. Esta participação ativa e reflexiva pode trazer mudanças à medida que os próprios formadores desenvolvem a capacidade de se tornarem especialistas na sua situação. Além do programa de ensino à distância, há um curso certificado de um semestre intensivo na Pontifícia Universidade Gregoriana que oferece treinamento aos formadores, reunindo especialistas para o ensino em suas áreas de especialização.
Trabalhamos em conjunto com a Congregação para a Evangelização dos Povos, para atingir áreas onde há muito pouca competência e fornecer bolsas de estudo para que estudantes carentes participem do curso. O curso promove a discussão de casos, da cultura e dos desafios e busca conectar os alunos para uma colaboração contínua. O nosso próximo passo é a criação do Centro Global Alliance de Proteção à Criança, uma rede de instituições parceiras em diferentes países, com as quais haja relações mais profundas de trabalho. Estes parceiros principais tornar-se-ão o nosso ponto de referência para diferentes países e regiões, para a aculturação e disseminação de recursos de proteção, mais uma vez com o objetivo de criar uma rede. Em troca, oferecemos formação continuada para seus formadores, um meio de eles se manterem atualizados com os conhecimentos e métodos mais recentes e uma espécie de sistema de tutoria. Então, o que é necessário para o sucesso de tudo isso e para que se torne sustentável? Diferentes países e igrejas locais precisam apoiar uns aos outros para que ninguém atue sozinho. Poderíamos procurar formas de implementar dioceses e paróquias "irmãs" para apoiarem umas às outras. Nós também precisamos encontrar mais maneiras de trabalhar com organizações de fora da Igreja que partilham da nossa causa comum, e o Centro de Proteção à Criança já começou a fazê-lo. Desta forma, em conjunto, estamos criando um movimento para proteger as crianças que está ficando forte.
Se você pudesse fazer um pedido para o seu trabalho, o que seria?
Primeiro de tudo, gostaria que os que estão envolvidos neste trabalho e se sensibilizam com este tema não desanimem com a resistência e a inércia que muitas vezes encontram, mas que sejam corajosos e fortes! Este tema é desconfortável, e enfrenta barreiras culturais, sistêmicas e individuais. Há um tipo de vergonha associada a este assunto e, por mais que a vergonha possa ser uma resposta normal e saudável a algo que coloca em risco a dignidade de alguém, ela não deve tornar-se uma barreira para que a Igreja aceite e aborde questões difíceis. Eu gostaria de uma infraestrutura melhor, que a Igreja e sociedade investissem em medidas de proteção e que as questões mais pertinentes aos sobreviventes em matéria de justiça sejam abordadas.
Espero que haja melhor acompanhamento espiritual e integração desses sobreviventes que querem transmitir a experiência de sua jornada espiritual para a comunidade. Eu também gostaria que houvesse cuidado adequado aos agressores, especialmente os que têm maior risco de reincidência. Espero viver uma época em que muitas pessoas que estão envolvidas com esta área se conectem melhor e se concentrem nos desafios científicos e metodológicos que conhecemos. Estamos trabalhando por estes objetivos. Um exemplo é que no próximo ano acontecerá o congresso "Child Dignity in the Digital World" (Dignidade Infantil no Mundo Digital), em que queremos reunir os líderes das esferas dos negócios e da internet, assim como políticos, líderes das forças de segurança, psicólogos, psiquiatras e líderes da Igreja, e já recebemos o apoio da Santa Sé.
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Pedofilia – “Reconheçam potenciais problemas e comecem a mudança agora!” sugere expert jesuíta às Igrejas que ainda não foram julgadas pela mídia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU