A prudência como compreensão do coração. Artigo de Carlo Maria Martini

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05 Novembro 2016

A entrevista do Papa Francisco no voo de volta da Suécia foi marcada por perguntas que ignoraram surpreendentemente o histórico significado ecumênico dessa visita, sinal de uma falta de capacidade de compreensão de muitos observadores.

O comentário é de Christian Albini, teólogo leigo italiano, coordenador do Centro de Espiritualidade da diocese de Crema, na Itália, e sócio-fundador da Associação Viandanti. O artigo foi publicado no seu blog Sperare per Tutti, 03-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Falou-se muito da resposta em que o papa afirmou que a acolhida e a integração dos migrantes requer prudência, que alguns leram como uma atenuação de declarações anteriores. Isso porque, na linguagem comum, associamos a prudência a uma forma de imobilismo, um modo de proceder hesitante, com o freio de mão puxado.

Ao contrário, é preciso ter consciência do que é a prudência na tradição cristã. Um texto de 1989 de Carlo Maria Martini (jesuíta como o Papa Francisco) explica isso muito bem ("O aconselhar na Igreja"), no qual se relê aquilo que Tomás de Aquino escreve em STh II-II, qq. 47-52.

Eis o texto.

Depois de ter tomado as inspirações gerais do Novo Testamento, colocamo-nos no rastro da tradição clássica, aristotélica, retomada depois pelos primeiros Padres da Igreja, de Santo Ambrósio, no De officiis, e amplamente codificada por São Tomás. E, por comodidade, refiro-me àquilo que São Tomás escreve sobre o dom do conselho e do aconselhar.

O pensamento do Aquinate não é totalmente simples, mas eu o considero interessante. Ele parte da afirmação de que o conselho, como dom do Espírito Santo, corresponde à virtude cardeal da prudência. Parece-me útil prosseguir na seguinte ordem: - o que é a virtude da prudência; - o aconselhar/aconselhar-se como parte da prudência; - o dom do Espírito e a bem-aventurança correspondente; - o discernimento; - consequências para o aconselhar na Igreja.

Para São Tomás, o principal ato da prudência é comandar razoavelmente. Logo encontramo-nos em perigo, porque acreditamos que o principal ato da prudência é o ponderar, eu diria quase duvidar, observar cautelosamente. Na visão aristotélico-tomista, em vez disso, é o decidir. A decisionalidade é a característica da prudência cristã.

E São Tomás explica que, para se chegar a essa capacidade de agir razoavelmente, são necessárias três atividades: - pedir conselhos recolhendo dados e pareceres; - julgar e avaliar os dados (ratio speculativa) e, depois, discernir; - decidir (ratio pratica), aplicar os conselhos e as avaliações que emergiram à ação.

Esse é o principal ato da prudência, ao qual estão ordenados os atos precedentes. Só há prudência onde há escuta, conselho, reflexão prolongada, aplicação ao agir. Vemos que, assim, se delineia uma figura moral do cristão muito precisa e, talvez, diferente daquele que imaginamos hoje quando falamos de prudência.

Depois, São Tomás diz que a prudência nos leva a comandar em três grandes âmbitos: - o âmbito do bem próprio (porque eu posso comandar também a mim mesmo), e é a prudência pessoal; - o âmbito do bem da própria família, e é a prudência doméstica; - o âmbito do bem da comunidade, e é a prudência política.

Assim, a prudência é a arte de decidir o justo e o bom para si mesmo, para as realidades que nos foram confiadas – incluindo as da vida econômica, social, produtiva, cultural – para a comunidade. Sem tal prudência, não temos nem justiça, nem fortaleza, nem temperança. Ela é o primeiro degrau do agir moral equitativo e justo.

Estritamente conectada – continua São Tomás – está a eubolia, a rectitudo consili, ou seja, a capacidade de bem aconselhar. Não existe decisão sábia, prudente se, anteriormente, não houve um processo de conselho. Esse processo envolve duas coisas: a capacidade de bem aconselhar naqueles que são chamados a dar conselhos e a docilidade naqueles que devem se disponibilizar àquilo que é aconselhado.

O Aquinate sublinha a importância dessa docilidade que também faz parte da prudência para quem tem responsabilidades. Ninguém, de fato, é capaz de sempre ter o conhecimento suficiente e global da situação sobre a qual deve decidir e, por isso, precisa da colaboração de pessoas experimentadas e prudentes que o ajudem. E uma vez que, ainda segundo São Tomás, a prudência e a capacidade de aconselhar é própria de todos os cristãos, os nossos conselhos também apelam a essa capacidade de aconselhar, pelo bem da comunidade.

Vejamos, então, o que é o dom do conselho. Para São Tomás, é o dom correspondente à virtude da prudência, é a prudência movida por uma particular do Espírito Santo, e é o dom de perceber o que deve ser feito para alcançar um fim sobrenatural. É interessante notar a afirmação de São Tomás segundo a qual a capacidade de aconselhar, movida pelo Espírito como dom, permanece também na vida eterna. Por isso, ele vê como possível o pedido, na oração, dos conselhos dos Santos. Recordem como, em outras ocasiões, eu sugeri de entrar em diálogo com os Santos para nos ajudarem nas nossas necessidades. Para a doutrina tomista, aqueles que já gozam da visão bem-aventurada de Deus continuam tendo o dom de conselho e nos iluminam quando estamos em dificuldades.

Mas há mais: "A mente do homem peregrino nesta terra é movida por Deus no agir, pelo fato de que a ansiedade da dúvida que precede a decisão é acalmada", "per hoc quod sedatur anxietas dubitationis in eis praecedens". Quando somos confrontados com decisões árduas e parecemos nos afogar em um mar de bons conselhos diferentes uns dos outros, se ocorreu uma razoável inquisição e uma razoável escuta, intervém o dom do Espírito Santo, que acalma a ansiedade e permite decidir com paz. É muito reconfortante essa passagem de São Tomás.

Outra anotação. São Tomás, no seu tratamento muito esquemático, quase geométrico, depois de ter falado das virtudes cardeais e depois de ter atribuído a cada virtude um dom do Espírito Santo, tenta fazer corresponder às virtudes e aos dons as bem-aventuranças evangélicas. Portanto, não há solução de continuidade entre a razoabilidade moral das quatro virtudes cardeais, os sete dons do Espírito Santo e as bem-aventuranças; em vez disso, eles estão enxertados uns sobres os outros.

Para minha surpresa – de fato, eu não me lembrava desse ponto da doutrina tomista – a bem-aventurança correspondente ao dom do conselho é a misericórdia, uma vez que as obras de misericórdia são particularmente dirigidas ao fim da salvação: "convenit dono consilii, non sicut elicienti, sed sicut dirigenti".

Como a virtude da prudência e o dom do conselho intuem a relação entre os meios de salvação e o fim, a quinta bem-aventurança evangélica é o mais pertinente para eles. A partir do pensamento de São Tomás, tiro duas consequências: primeiro, que, efetivamente, o dom do aconselhar na Igreja deve estar atento, acima de tudo, aos pobres, às obras de misericórdia. Segundo, que o próprio aconselhar é uma obra de misericórdia, de compaixão, de bondade, de benignidade; não é obra de inteligência fria, de intuição muito elaborada, mas faz parte da compreensão do coração.

Na sua premissa, vocês, justamente, conectaram o discernimento com a arte de aconselhar. O que é o discernimento? São Tomás, a esse propósito, cita uma frase de Agostinho muito bonita e difícil de traduzir em italiano: "Prudentia est amore bene discernens ea quibus adiuvatur ad tendendum in deum ab his quibus impediri potest", a prudência é o amor que faz discernir bem as coisas das quais somos ajudados a tender a Deus, distinguindo-as daquelas que nos impedem isso. O discernimento tem a característica de adicionar a sensibilidade às coisas que podem impedir o fim, enquanto o aconselhar diz respeito, em si mesmo, aos meios úteis ao fim.

Não por acaso, o discernimento nasce, na tradição monástica egípcia que depois se consolida na patrística e, mais recentemente, na tradição inaciana, a partir da reflexão sobre os movimentos dos espíritos dentro do coração. Nem tudo o que parece bom deve ser aconselhado, mas é preciso discernir, ponderar, porque há as inspirações do Espírito Santo e há as moções do espírito do mal, da preguiça, da inércia, da indiferença, da ambiguidade, que sempre se camuflam com inspirações boas.

Podemos dizer que o discernimento é a prudência aplicada à avaliação das moções positivas ou negativas, acima de tudo interiores, e também das moções históricas, na Igreja e na sociedade. Grande parte da história imediatamente sucessiva ao Vaticano II é feita de falsos discernimentos ou de discernimentos rápidos demais, pensando que uma certa iniciativa ou um certo modo de agir fossem bons, quando, na realidade, levaram a consequências negativas! O aconselhar torna-se um discernimento muito delicado. Não é simplesmente uma dedução lógica baseada na consideração do bem em absoluto, mas sim refletir sobre as complexidades e as ambiguidades históricas, sobre a mistura de bem e de mal, de inspirações boas e más, de estruturas de graça e de pecado que estão estreitamente intrincadas umas nas outras e entre as quais é preciso discernir o caminho certo para obter o crescimento da fé, da esperança, da caridade.

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