Conservadores e esquerdistas precisariam construir pontes para ampliar as manifestações antigolpistas, diz o ex-presidente da União Nacional dos Estudantes - UNE. Enquanto isso, afirma, "o povão apenas registra que o litro de leite está custando quase o dobro do litro de gasolina comum. Simbolicamente, esta é a eleição do miojo com salsicha, o novo prato nacional, para os que ainda têm um prato"
Se, de um lado, a discussão em torno da construção de uma terceira via para a disputa eleitoral é um tema que está em voga ao longo da última década no país, de outro, este debate é suplantado a cada quatro anos pela defesa da bipolaridade que tem girado em torno do PT, representando o campo progressista, e candidatos de outros partidos, como Bolsonaro, nos dois últimos pleitos. Nos últimos três anos, propostas de vias políticas alternativas foram descartadas, segundo o economista Jean Marc von der Weid, "pela resiliência de Bolsonaro e pela desidratação dos vários candidatos da terceira via".
No atual cenário de polaridade na disputa eleitoral presidencial, contando com uma possível vitória do ex-presidente Lula, pontua, "só nos resta defender pontos de programa político através de candidatos a deputado e senador e, muito eventualmente, governador. E se preparar para pressionar o novo governo de Lula, que virá pesado com os compromissos que está assumindo com o 'andar de cima' e que serão cobrados com juros".
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, von der Weid diz que Ciro Gomes e Simone Tebet "vão fazer figuração nestas eleições", enquanto André Janones "já está tirando o time de campo com muita sabedoria e deve apoiar Lula".
A reeleição do atual presidente significaria, adverte, "o afundamento de qualquer ideia de um Brasil com futuro. Veremos a continuidade da incompetência, do desgoverno, da corrupção, do Executivo dominado pelo Centrão e o orçamento fracionado em interesses locais e eleitoreiros. Veremos os nossos biomas sucumbirem irreversivelmente. Veremos a pobreza, a miséria crescerem com a fome e as doenças".
Já a vitória do ex-presidente Lula, aposta, significaria "a sobrevivência da democracia e do Estado de Direito no Brasil. Lula vai ter uma missão muito difícil de buscar recolocar o país no caminho de uma convivência pacífica entre os diferentes de todos os tipos, em particular os diferentes políticos. Precisamos retomar processos de busca de consensos, de acordos, de aproximações de posições e superar a tendência atual de ver o diferente como inimigo a ser destruído".
Von der Weid também reflete sobre as pautas mais urgentes para o país hoje, como o combate à fome, e as dificuldades em torno da luta pela democracia. "Seria muito importante que fossem feitas pontes entre estes setores, conservadores e esquerda, de forma a ampliarem em conjunto as manifestações antigolpistas. Mas essas pontes, até agora, não apareceram. Muita gente da esquerda assinou a Carta aos Brasileiros e Brasileiras e outros tantos se propõem a comparecer aos atos convocados pelos articuladores da Carta. Mas tudo isto é um tanto delicado. Sem acordos explícitos prévios, essas manifestações podem virar espaços de disputa de hegemonia, com camisetas vermelhas tentando dominar outras cores, como o branco da paz ou o verde amarelo dos patriotas. Ou os vários grupos disputarem palavras de ordem diferentes", afirma.
Jean Marc von der Weid (Foto: Arquivo pessoal)
Jean Marc von der Weid é economista e ex-presidente da União Nacional dos Estudantes - UNE (1969/1971). É fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia - AS-PTA, foi membro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável - CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016 e é militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta.
IHU - Como está o país hoje, quatro anos após a eleição do presidente Bolsonaro?
Jean Marc von der Weid - Seria preciso um livro de umas 500 páginas para responder. Em qualquer tópico que se escolha, o que se pode constatar é uma inacreditável regressão. A terra arrasada é de tal monta que levaremos gerações para dar a volta no acúmulo de desastres.
Sem tentar dar uma ordem de gravidade na sucessão de desastres, anotemos que educação, saúde, pesquisa, meio ambiente, cultura, economia, desenvolvimento social, segurança e relações internacionais, entre outros, são analisados hoje como em estado de profunda crise, com retrocessos gigantescos. Por outro lado, há um imenso enfraquecimento das instituições da República.
O Judiciário está contaminado pelo bolsonarismo e em muitos casos deixa a lei pela ideologia. Os tribunais superiores estão sendo ocupados por juízes próximos do presidente. O próprio Supremo Tribunal Federal - STF está sacudido por um longo período de atitudes contraditórias, caracterizando uma judicialização da política simultaneamente com a politização do judiciário. Diz-se que STF e Tribunal Superior Eleitoral - TSE estão mostrando que as instituições estão sólidas, mas isto é ignorar que em qualquer situação de normalidade o presidente já estaria julgado por inúmeros crimes de responsabilidade. Estas duas instituições estão claramente na defensiva, embora tenham um papel importante ao desafiar os piores arreganhos do presidente.
E o que dizer do Legislativo? Tomado pelas forças obscuras do Centrão, mas também outras, Câmara e Senado têm hoje um perfil de casas municipais, centrados em responder a interesses mesquinhos de deputados e senadores interessados meramente na renovação de seus mandatos, colocando recursos nos seus currais eleitorais. Dominadas por bolsonaristas, essas casas são parte da blindagem que protege os desmandos do presidente.
Por incrível que pareça, apesar de todo o seu ímpeto autoritário e sua vocação ditatorial, Bolsonaro é responsável pela perda de poder do Executivo, hoje dominado pelo parlamento hegemonizado pelo Centrão.
Para completar a desordem provocada por esse governo, não se pode deixar de notar o descontrole das polícias militares e a politização das Forças Armadas. Desde que estas se recolheram aos quartéis após os desastrosos 21 anos de ditadura, os militares não se envolviam tão abertamente em política, abertamente pressionando por seus interesses materiais e por suas ideologias retrógradas, atreladas ao discurso rasteiro do bolsonarismo. Vamos tratar disso mais adiante, mas registre-se aqui as ameaça de golpes não apenas de Bolsonaro, mas dos generais, almirantes e brigadeiros que ele nomeou para o alto comando.
Por outro lado, constate-se que o povo empobreceu e muito. O desemprego está alto, e mesmo quando regride, são os postos de trabalho informal, com baixa remuneração, que avançam. A precarização do trabalho atinge a maioria dos empregados ou dos que estão por conta própria. Trabalho com carteira assinada, que já não dá as garantias sociais do passado, parece se concentrar nos empregos públicos e pouco mais no setor industrial, em regressão contínua. Os níveis de endividamento são astronômicos, atingindo mais de 2/3 dos consumidores. A inflação, em particular a de alimentos, explode, atingindo por vezes mais de 20% ao ano.
O resultado mais espantoso deste quadro é o número de famintos: 33 milhões e subindo sem parar. Ou o de subalimentados, chegando a 50 milhões, enquanto os que se alimentam mal chegam a 40 milhões. Além das agruras imediatas da fome, subnutrição e mal nutrição, o impacto na saúde da população é gigantesco, afetando particularmente as crianças.
E o que dizer das relações entre as pessoas? O país nunca viu tantas manifestações de racismo, de machismo, de preconceito contra os povos originários. É verdade que tudo isto já existia na sociedade brasileira, mas se encontrava reprimido, ao menos em parte. Agora essas posturas são assumidas com descaro e agressivamente.
Ainda na relação entre as pessoas, temos que constatar a vitória do discurso do ódio e da intolerância. O bolsonarista não discute nem escuta qualquer argumento a não ser os que reforçam as suas convicções extremadas. Evidentemente, esta posição provoca um reflexo nos outros e amplia a impossibilidade de qualquer diálogo. O debate político inexiste, concentrando-se as manifestações dentro das diferentes bolhas, de esquerda, de direita e, sobretudo, de extrema direita. Embora muita gente rejeite a definição desta situação como sendo uma expressão do fascismo, não se pode deixar de notar as semelhanças com os períodos de ascensão dessa ideologia, nos anos 20 e 30, na Europa.
Logo depois da eleição de Bolsonaro, discuti com um grupo de ex-militantes dos tempos da resistência à ditadura sobre qual seria o efeito mais perverso do bolsonarismo ao longo de seus quatro anos de governo. Defendi que o impacto mais grave se daria no meio ambiente. Não deixo de notar todos os desastres mais que graves e amplos em todos os setores, mas, na área ambiental, os processos de correção são mais difíceis e mais lentos, sendo que podem não mais ter efeito. A acelerada destruição dos nossos biomas pelos grileiros, madeireiros, garimpeiros, pecuaristas etc. pode já ter deixado marcas irreversíveis.
Só para concluir, não posso deixar de citar que o país se tornou muito mais violento, e olhe que já o era bastante. Milícias e traficantes fazem as leis em amplas áreas de nosso território, de mais da metade dos bairros da cidade do Rio de Janeiro até áreas gigantescas da Amazônia. A polícia, além de muita cumplicidade com milicianos e traficantes, atua com brutalidade, sobretudo movendo uma verdadeira guerra civil contra negros e pobres e, sobretudo, contra negros pobres.
Last but not least, há que se registrar o aumento exponencial da intolerância religiosa, sobretudo nas agressões das igrejas pentecostais às crenças de origem africana. E também a regressão do conceito de Estado laico, com a invasão do pentecostalismo na política de forma a impor suas crenças por sobre todas as outras.
IHU – O que tende a ser diferente nesta disputa eleitoral em comparação com 2018?
Jean Marc von der Weid - Em 2018, como agora, as eleições estão marcadas pelo pano de fundo da economia e da situação social. Há, talvez, um senão neste truísmo. Este pano de fundo não é um dado puro e duro, imutável para todos, mas ele é lido de forma diferenciada pelos diferentes extratos do eleitorado. Mas apesar desta ressalva, o que é claro é que quem tem a sensação de perda econômica e social tende a votar contra o governo e buscar uma alternativa.
Em 2018 o governo era tão fraco que o presidente sequer se candidatou para um novo mandato. Ou seja, o eleitorado queria mudanças e constatava os desastres recentes dos governos de Dilma Rousseff e de Michel Temer. Bolsonaro entra nessa equação como expressão da rejeição de todos os políticos e da política, atropelando os candidatos tradicionais que dominaram as eleições desde o fim da ditadura. PSDB estava tisnado por sua participação no governo Temer; o PT, pelo governo de Dilma. Em ambos os casos havia ainda a acusação de corrupção, que atingiu quase todos os partidos em maior ou menor grau, o que serviu de suporte ao discurso do “contra tudo isso que está aí”. O resultado foi um tsunami de votos, não só para o candidato fake, que posava de impoluto, sendo corrupto, e de antipolítico, tendo mamado nas tetas do Centrão por mais de 20 anos. Tirando o PT, todos os outros partidos congressuais foram muito diminuídos, com deputados e senadores consagrados sendo batidos por ilustres desconhecidos ancorados na maré de Bolsonaro.
Nesta eleição, Bolsonaro não é estilingue e, sim, vidraça. Por ser governo, ele é visto como responsável pela situação de desgraças que descrevi acima. Apesar disto, e de ter renegado todos os discursos da eleição passada, Bolsonaro mantém uma base eleitoral da ordem de 27% a 30%. Estes são os que se meteram dentro da bolha da ultradireita e acreditam em tudo que lhes é entregue. Para estes, Bolsonaro não é culpado pela crise econômico social – os responsáveis são os governadores, prefeitos e STF, que não o deixaram governar. Presos no discurso do ódio, esses bolsonaristas de raiz não viram o voto.
Por outro lado, a maioria do eleitorado parece bem decidida a tirar Bolsonaro da presidência. E as razões, claramente, estão na situação econômica e social. Fome, pobreza, endividamento, inflação, desemprego e subemprego, preços da energia e dos aluguéis, do gás de cozinha e dos transportes definem não só a bolha de esquerda, também uns 30% do eleitorado, mas a grande massa dos que não têm “bandeira”, em torno de 40% a 43%.
IHU – Quais são as perspectivas para esta eleição?
Jean Marc von der Weid - Já tratei algo no item acima, mas vou acrescentar algumas coisas. Esta eleição está sendo decidida entre a percepção, hoje amplamente majoritária, de que Bolsonaro é responsável pelas crises econômica e social e pela distribuição, em uma escala nunca vista na nossa história, de benesses variadas para os mais pobres e para alguns setores privilegiados como caminhoneiros e taxistas. Até agora, a reação do eleitorado que recebe os auxílios do governo não tem sido muito alentadora para Bolsonaro. Temos que esperar para ver o que vai acontecer este mês, quando os 20 milhões de beneficiários do Auxílio Brasil receberem os 200,00 reais a mais. E não se sabe bem quantos milhões vão receber o vale gás. Como o desespero é muito grande, estas dádivas, claramente eleitoreiras, podem funcionar. Os analistas de pesquisas dizem que pode haver uma leve melhoria para Bolsonaro, mas que dificilmente vai dar para encurtar significativamente a distância para Lula. Mas 3% a 5% de diminuição dessa distância pode ser a diferença entre termos ou não um segundo turno, e isso pode ser muito importante por outras razões que veremos a seguir.
IHU - Há risco de golpe?
Jean Marc von der Weid - Eu diria que há quase a certeza de uma tentativa de golpe. Não só porque Bolsonaro vem descaradamente anunciando isto desde antes de sua eleição, mas porque ele não tem outra possibilidade de ficar no poder sem isso. Tirando uma reviravolta eleitoral de todo improvável (mas não impossível), Bolsonaro só fica presidente se as eleições forem adiadas ou anuladas. Acho a segunda hipótese mais difícil pois, a rigor, significaria anular as eleições de todos os senadores, deputados e governadores. Como a direita de todos os tipos está investindo pesado em ampliar seu controle no parlamento, ela não gostaria de ver questionada a sua vitória. É claro que se a direita sofrer uma derrota nas eleições proporcionais, ela pode vir a achar interessante o golpe anulando as eleições.
Como pode se dar este golpe? Bolsonaro e seus minions poderão criar o caos no dia das eleições, e podem fazê-lo por muitas formas. Sabotar o fornecimento de energia para seções eleitorais onde haja forte concentração da oposição é uma possibilidade. Ou atacar essas seções com brutamontes, armados ou não, e dissolver filas, quebrar urnas etc. ou engrossar mais ainda com atentados aos Tribunais Regionais Eleitorais - TREs e TSE. As polícias militares bolsonaristas podem ajudar neste caos, ampliando os tumultos e a pancadaria, fechando seções oposicionistas. E o exército? Não dá para confiar no que as Forças Armadas vão fazer, se proteger os eleitores ou ajudar nas provocações.
Um número significativo de tumultos desta ordem seria o pretexto para dizer que as eleições estão comprometidas e Bolsonaro pedir a sua anulação ao Congresso, junto com a votação de medidas excepcionais do tipo Estado de Sítio.
Acho muito difícil um golpe clássico, com tanques e tropas nas ruas, instituições republicanas fechadas, censura da imprensa, sindicatos e entidades de classe suspensas etc. O golpe deve passar pelo Congresso e, para isso, vai ser necessário criar um estado de caos político e social. A pressão das Forças Armadas sobre o Congresso, além de manifestações de policiais militares e do gado ensandecido nas ruas, deve ajudar a criar o clima.
Este modelo pode ser aplicado antes das eleições, desde que o quadro de caos seja provocado em escala suficiente. O discurso do ódio e o chamado a provocações contra a oposição podem incendiar o país, com choques entre simpatizantes de Bolsonaro e os de Lula, atentados dos bolsominions, repressão policial a comícios da oposição; tudo isso junto ou separado deve dar margem ao pedido de adiamento das eleições.
Como votaria o Congresso? A “seco”, como no presente momento, todos - ou quase todos - os partidos, inclusive o de Bolsonaro, se manifestam pelas urnas eletrônicas, pelo apoio ao TSE e pelo respeito pelos resultados do pleito, com a posse dos eleitos. Mas em uma situação de caos político e social – e todas as pressões mencionadas e mais a “tratoração” da oposição pelo nefando Artur Lira –, essa disposição pode mudar.
Bolsonaro está se isolando na sociedade dia a dia e a novidade é que o “andar de cima” o está abandonando. Mas Bolsonaro não funciona com esses valores. O que conta para ele é o apoio da fração armada da sociedade: polícias (400 mil), milícias organizadas nos clubes de tiro (700 mil) e Forças Armadas (360 mil).
Bolsonaro é o típico protoditador sem raízes nas elites e com um discurso e atitudes populistas. Pode dar uma “banana” para a Faria Lima se tiver o apoio do “povo armado”. A nossa mediocríssima classe dominante, que andou gritando “mito, mito”, está se dando conta de que o buraco é mais embaixo. Quando os platudos acreditavam que estavam usando o energúmeno, quem os usava era ele.
Para que Bolsonaro desista da tentativa de golpe, ele precisa perder suporte pelo menos na alta oficialidade das Forças Armadas. Se elas tirarem o tapete do golpista, ele dificilmente terá coragem de dar seguimento ao seu projeto. Ele poderia apelar para a oficialidade média, de tenentes a coronéis, que parece ser muito mais próxima do bolsonarismo do que a generalada, mas isto seria revirar a hierarquia e a disciplina completamente. Seria, realmente, uma revolução da direita. Não vejo coragem para tanto.
O possível golpe parece estar ficando remoto pelas atitudes recentes dos bolsonaristas do Planalto, que andaram buscando negociar uma “trégua” com o STF, ou um Pacto de Moncloa, em que a atual oposição garanta que os perdedores da eleição serão anistiados de possíveis acusações dos vários crimes que cometeram. Se não for cortina de fumaça do bolsonarismo, esse papo é mostra de desespero nas eleições e insegurança nos esquemas de provocação de golpe.
A nossa sorte é que até para dar um golpe é preciso coragem e competência e isto faz falta a Bolsonaro e seus asseclas.
IHU - Até o momento, a principal disputa eleitoral para a presidência da República gira em torno do ex-presidente Lula e do presidente Bolsonaro. O país está novamente de mãos atadas do ponto de vista político? O que essas candidaturas revelam sobre a política nacional?
Jean Marc von der Weid - Há mais de um ano, quando começou a conversa sobre a “terceira via”, eu defendi que, se esta última afastasse Bolsonaro de um segundo turno, seria interessante ter uma “quarta via”. Essa deveria ser uma candidatura de esquerda, cujo papel seria a defesa do que eu chamei de Programa Necessário ou de Salvação Nacional. A esquerda não teria forças para ganhar o segundo lugar, mas politizaria o debate e, se conseguisse uma votação significativa, poderia negociar, não o apoio ao Lula, que seria inevitavelmente a melhor opção para a esquerda, mas pontos de um programa emergencial.
Esta proposta gerou alguma polêmica, mas ela foi logo descartada pela resiliência de Bolsonaro e pela desidratação dos vários candidatos da terceira via. Só nos resta defender pontos de programa político através de candidatos a deputado e senador e, muito eventualmente, governador. E se preparar para pressionar o novo governo de Lula, que virá pesado com os compromissos que está assumindo com o “andar de cima” e que serão cobrados com juros.
IHU - Qual o significado de uma possível reeleição de Bolsonaro?
Jean Marc von der Weid - A vitória de Bolsonaro só poderia ocorrer, em eleições limpas, se todas as ajudas que fez votar tivessem o efeito de alívio na extrema pobreza ao ponto de esquecerem que as mesmas medidas têm prazo de validade curto. Mas o desespero de tantos milhões é tal que até isso pode acontecer.
Bolsonaro ganhando significa, muito provavelmente, o afundamento de qualquer ideia de um Brasil com futuro. Veremos a continuidade da incompetência, do desgoverno, da corrupção, do executivo dominado pelo Centrão e o orçamento fracionado em interesses locais e eleitoreiros. Veremos os nossos biomas sucumbirem irreversivelmente. Veremos a pobreza, a miséria crescerem com a fome e as doenças. Para usar uma figura metafórica bíblica, vamos ver os quatro cavaleiros do apocalipse trotarem alegremente sobre o cadáver da República. Com mais quatro anos, Bolsonaro vai poder se dedicar a destruir totalmente as instituições e se preparar para mudar a Constituição para ter mais um ou eternos mandatos.
IHU – O que significaria a eleição do ex-presidente Lula para o país?
Jean Marc von der Weid - Em primeiro lugar, significa a sobrevivência da democracia e do Estado de Direito no Brasil. Lula vai ter uma missão muito difícil de buscar recolocar o país no caminho de uma convivência pacífica entre os diferentes de todos os tipos, em particular os diferentes políticos. Precisamos retomar processos de busca de consensos, de acordos, de aproximações de posições e superar a tendência atual de ver o diferente como inimigo a ser destruído.
Em segundo lugar, Lula vai ter que liderar um movimento para recuperar as instituições de Estado e levá-las a assumirem suas funções constitucionais sem atropelarem umas às outras. Isto vale particularmente para o Congresso e o Executivo, sendo que vai ser essencial que o segundo retome o controle do orçamento e o primeiro se concentre nos processos legislativos.
Do ponto de vista da economia, não se pode esperar muito de um novo governo Lula. Ele vai ter que assumir uma verdadeira “herança maldita”, com um país estraçalhado em muitos sentidos, com a economia paralisada, um quadro internacional desfavorável (ao contrário do período de bonança entre 2003 e 2008), um Estado quebrado, uma administração em pandarecos, um meio ambiente arrasado. E vai ter que lidar com um Congresso que pode ser ainda mais Centrão do que o atual.
Já escrevi que o Lula vai governar com tão poucos recursos que o quadro pode ser comparado ao de um médico tentando curar um paciente politraumatizado com band-aid e mercúrio cromo. Lula vai ter que escolher com muito critério onde vai investir os seus míseros recursos. Uma solução seria aprovar uma reforma tributária que aliviasse as classes C e D e carregasse a cobrança de impostos mais robustos dos milionários e bilionários, o 1% mais rico que detém mais do que 50% da renda de todos os brasileiros e que paga pouquíssimo imposto na atualidade. Mas para isso precisaria da aprovação do Congresso, sendo que os ilustres representantes do povo estão entre os mais ricos que serão mais afetados pela nova tributação. Não vai ser fácil.
Lula vai ter que lidar com uma enorme expectativa dos seus eleitores, até porque ele está prometendo muito mais do que sabe que pode entregar. Como está negociando com as elites econômicas para garantir apoio à sua eleição e sua posse, arrisca de manter os privilégios do “andar de cima” e, sem folga orçamentária, vai ter pouca capacidade de enfrentar a maior parte da demanda reprimida por ensino, saúde, alimentação, cultura, energia etc. O risco, em um quadro desta natureza, é ele perder rapidamente o apoio do povão, além de ter que lidar com movimentos reivindicatórios impacientes com o prolongamento do estado desesperador da nossa sociedade. Dilma Rousseff é o melhor exemplo deste tipo de situação, pois elegeu-se prometendo o céu e foi obrigada (ou escolheu erradamente) a fazer uma política de ajuste orçamentário que derreteu em menos de um ano os pouco mais de 50% dos votos que recebeu em 2014.
IHU - Quais as possibilidades dos candidatos da chamada terceira via? Quais os seus projetos?
Jean Marc von der Weid – Ciro [Gomes] e [Simone] Tebet vão fazer figuração nestas eleições. [André] Janones já está tirando o time de campo com muita sabedoria e deve apoiar Lula. Ciro está, infelizmente, atuando como linha auxiliar de Bolsonaro, maculando para sempre a sua biografia. A meu ver ele vai desidratar rapidamente e ver seus eleitores migrarem para Lula ou Bolsonaro ainda no primeiro turno. Tebet está cacifando para o futuro e dificilmente vai passar dos 3% ou 4% das intenções de voto. Isto se o MDB não “cristianizá-la” como fez no passado com um candidato muito mais forte e ilustre, Ulisses Guimarães, em 1989.
Janones, em que pese a fragilidade das formulações de seu programa, foi muito direto e, a meu ver, correto, ao apontar o problema da fome como central para a próxima presidência. Já Tebet, candidata do bloco conservador não bolsonarista, tem o clássico programa neoliberal defendido por Temer na sua carta programa de candidato traíra à sua presidente, Dilma, a Ponte (ou pinguela, segundo alguns) para o Futuro. Ela é, sobretudo, a candidata do agronegócio, muito embora este setor esteja, na sua grande maioria, comprometido com Bolsonaro.
IHU - Quais as pautas mais urgentes para o próximo governo?
Jean Marc von der Weid - Já falei da importância de se recolocar o país nos trilhos da República, reconstruindo os pactos de convivência entre as instituições e o respeito pelo Estado de Direito. Também já falei do necessário esforço de pacificação do país, mas este não vai ser fácil porque o bolsonarismo não vai desaparecer junto com seu mito. Podemos esperar que a massa de fanáticos, muitos deles armados até os dentes, vai continuar as provocações e manter o clima de confronto e violência. Desarmar a população terá que ser uma meta do novo governo, assim como manter as forças policiais e as militares nos seus lugares, isto é, fora da política.
Do ponto de vista das demandas da população, concordo com Janones: o combate à fome e à subnutrição é a chave mestra para começarmos a compor uma sociedade de bem-estar. Precisaremos de um Bolsa Família 2.0, no sentido do programa de renda mínima defendido pelo Eduardo Suplicy. Não só vai ser preciso distribuir mais recursos por família, como vai ser necessário um programa de importação de alimentos ativamente orientado pelo Estado. Sem isso, os recursos entregues às famílias necessitadas serão rapidamente erodidos pela alta dos preços dos alimentos, tal como já vem acontecendo tanto no Auxílio Emergencial da pandemia como no Auxílio Brasil ou “Bolsa Bolso”. Mais ainda, para resolver o problema a médio prazo o país terá que ampliar muito a oferta de alimentos produzidos por aqui. Um programa de produção alimentar centrado na agricultura familiar é muito mais viável do que confiar no agronegócio, que está totalmente atrelado na produção de matéria-prima para ração de bovinos, suínos e aves na Europa ou na China.
Mas este programa vai ter que avançar muito em relação às políticas de apoio à agricultura familiar dos governos de Lula e de Dilma. Crédito, assistência técnica, compras governamentais e garantia de preços terão que ser combinados e dirigidos à mudança dos paradigmas de produção, através da introdução de um processo de transição para a agricultura ecológica. É um longo processo e não pode ser precipitado artificialmente sem provocar desastres como ocorreram no Sri Lanka. A produção convencional de alimentos vai conviver com a produção agroecológica por um bom tempo, mas a transição tem que ser iniciada, tal como está em curso em vários países da Europa.
Uma segunda pauta fundamental tem a ver com o desastre ambiental que Lula vai herdar. As metas de desmatamento zero e queimadas zero terão que ser adotadas. Isto significa, entre outras coisas, retomar o controle de amplas áreas da Amazônia onde o poder do Estado inexiste e quem domina são os traficantes de drogas, de armas, de madeira, de peixes, de animais exóticos. Não vai ser tarefa fácil, já que só o garimpo ilegal mobiliza mais de 300 mil trabalhadores e conta com a colaboração de prefeitos, delegados e policiais.
Um programa de controle dos desmatamentos e de recuperação das áreas desmatadas e degradadas (80 milhões de hectares só na Amazônia) poderá ser amplamente financiado por governos do primeiro mundo, preocupados com o aquecimento global. Pelo menos neste programa vai ser possível contar com recursos para além do magro orçamento do Estado.
Existem muitas outras pautas urgentíssimas, em particular na saúde e na educação. Como não são da minha área de conhecimento, não vou me atrever a dar pitacos. Outros o farão.
IHU - Em artigo recente, o senhor afirmou que não estamos todos juntos pela democracia. Ao contrário, cada grupo do espectro político, unido por determinadas pautas, se expressa em separado. Quais são as maiores dificuldades em torno da luta pela democracia no país hoje?
Jean Marc von der Weid - A reação aos últimos desatinos de Bolsonaro, prometendo suspender as eleições se o TSE não aceitar as exigências das Forças Armadas em relação ao voto impresso, trouxe para a arena da oposição ao golpe amplos setores conservadores, entre eles empresários de vários ramos, juristas, policiais federais e até os funcionários da Agência Brasileira de Inteligência - ABIN! Foi importantíssimo porque, até então, apenas a esquerda andou se manifestando, sobretudo no ano passado. Seria muito importante que fossem feitas pontes entre estes setores, conservadores e esquerda, de forma a ampliarem em conjunto as manifestações antigolpistas. Mas essas pontes, até agora, não apareceram.
Muita gente da esquerda assinou a Carta aos Brasileiros e Brasileiras e outros tantos se propõem a comparecer aos atos convocados pelos articuladores da Carta. Mas tudo isto é um tanto delicado. Sem acordos explícitos prévios, essas manifestações podem virar espaços de disputa de hegemonia, com camisetas vermelhas tentando dominar outras cores, como o branco da paz ou o verde amarelo dos patriotas. Ou os vários grupos disputarem palavras de ordem diferentes. E quem vai falar nestas manifestações? Quem organiza é quem dá a palavra e não sei de ninguém de esquerda convidado a falar no Largo de São Francisco ou qualquer dos outros palanques anunciados Brasil afora.
Se a esquerda, que se organiza hoje essencialmente no movimento #ForaBolsonaro, tiver bom senso, vai recomendar a seus seguidores o uso do branco ou do verde e amarelo e indicar consignas mais amplas para as palavras de ordem. Também seria muito positivo que os conservadores chamassem oradores da esquerda para falar nestes atos. Veremos o que vai acontecer.
Mas os maiores problemas estão mais para o futuro, em particular no 7 de setembro. Bolsonaro está montando mais uma provocação, que ele diz ser a última, embora eu ache que outras virão. Para piorar o quadro, ele vai promover um desfile militar, com as Forças Armadas e as polícias, junto com a massa de seus seguidores. E todos vão assistir aos seus desvarios? Os militares vão ficar para os comícios ou se retirarão aos quartéis? O passo dado por Bolsonaro é o mais perigoso até agora. A mistura dos fanatizados (irão armados para a manifestação?) com os uniformizados é potencialmente explosiva. E, do ponto de vista dos comandos militares, uma clara violação do papel das Forças Armadas. Como vão reagir as Cortes de Justiça do país, em particular o Supremo Tribunal Federal - STF e o TSE, que certamente serão os alvos mais atacados e ameaçados por Bolsonaro?
A esquerda já previu uma reação de massas ao 7 de setembro, embora evitando manifestações no mesmo dia. E os conservadores? Vão se aliar às manifestações da esquerda? A nossa esquerda não é agregadora nem tolerante e dificilmente vai se preparar para atrair os conservadores para suas manifestações, que idealmente deveriam deixar de ser suas para serem de frente única. E tudo isso enfraquece a reação ao golpismo.
IHU – Que peso a inflação, a pobreza, o custo dos combustíveis etc. poderá ter nestas eleições?
Jean Marc von der Weid - Apesar da dramaticidade das ameaças golpistas, não são os riscos que corre a nossa democracia que pautam as opiniões do eleitorado. A prioridade, claramente, está nos temas ditos econômicos. Esta palavra recobre uma série de preocupações do povão: desemprego, qualidade do emprego existente, renda (pobreza), endividamento, inflação (em particular a dos alimentos), fome e má alimentação (afetando 130 milhões de brasileiros), custo do gás, dos transportes públicos, da energia elétrica, dos remédios, outros. O galopar do preço da gasolina, que tantas manchetes apontaram, afeta mais a classe média. O povão apenas registra que o litro de leite está custando quase o dobro do litro de gasolina comum. Simbolicamente, esta é a eleição do miojo com salsicha, o novo prato nacional, para os que ainda têm um prato.