"Não dá para pensar somente no Brasil, mas temos, sim, que melhorar muito as nossas condições internas para ter um novo momento para repensar a questão do imaginário político", diz a pesquisadora
"Estamos vivendo em um momento de caminho único, não temos alternativas e utopias e isso nos incapacita muito e, ao mesmo tempo, ficamos com essa sensação de insatisfação o tempo inteiro." É assim que Maria do Socorro Sousa Braga, coordenadora do Programa de Pós-Graduação de Ciência Política e do Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-americanos - NEPPLA da Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, resume o sentimento de uma parcela da sociedade brasileira em relação às perspectivas eleitorais deste ano.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, ela reflete sobre o atual cenário social, político e econômico, a possível disputa presidencial entre o ex-presidente Lula e o presidente Bolsonaro, a hegemonia do PT no campo progressista e a crise de partidos tradicionais como o PSDB e o MDB. "Fico impressionada como tudo isso [políticas sociais] foi reduzido de forma tão rápida. Por quê? Porque não foram feitas as reformas estruturais de base", lamenta ao comentar a situação do país.
Na avaliação dela, além da urgência de "repensar como desenvolver um novo sistema econômico, muito mais humano, muito mais preocupado com a pessoa humana e menos preocupado com o lucro, com as riquezas individuais e personalizadas", a prioridade eleitoral deste ano é "tirar a força que nos levou, ao longo desses três anos, a todos os retrocessos, justamente para termos melhores condições, seja na ciência, seja na educação". A eleição do ex-presidente Lula, aposta, poderá ter como consequência "o crescimento do campo progressista" e, quem sabe, "daqui a dez anos, um país com maiores condições de fazer mudanças estruturais de base, o que não vejo nos próximos quatro anos de fato". O PT, lembra, "é um partido que já tem experiência na presidência e, para uma parte dos setores empresariais, ele consegue somar os interesses desses grupos talvez de uma forma muito melhor do que outras forças hoje conseguiriam fazer. Tem esse lado de dar conta de continuar administrando razoavelmente bem o sistema capitalista com maior distribuição de renda e com uma tentativa de dar conta de algumas questões, mas não serão feitas reformas estruturais porque não é isso que o programa do PT prega. Novamente, não vamos ter grande mudanças estruturais neste país, as quais grande parte da população gostaria de ver".
Maria do Socorro Sousa Braga (Foto: Reprodução | Youtube)
Maria do Socorro Sousa Braga é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense - UFF, mestre e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo - USP.
IHU - Em que aspectos o contexto político, econômico e social do país é diferente neste ano eleitoral em comparação com 2018 e como ele pode influenciar na eleição presidencial deste ano?
Maria do Socorro Sousa Braga – Do ponto de vista econômico, já tinha inflação anteriormente, mas hoje ela é maior, cresceu e vai ter um impacto muito maior nas eleições. Com o crescimento da inflação, o custo de vida ficou muito mais alto e está complicado para as famílias de baixa renda, em especial, terem condições de vida melhores. Esse é um ponto que vai afetar a avaliação do eleitor na hora de votar e a tendência é ter um voto prospectivo. Se o aspecto econômico é um dos mais importantes para entender a eleição de hoje, os votos retrospectivo e prospectivo acabam sendo importantes para ler e interpretar as preferências eleitorais.
A inflação é um aspecto tão forte que o próprio Auxílio Brasil, que é uma bandeira da qual o atual governo se apropria para conseguir votos dos setores populares, acaba tendo um peso menor do que em outros momentos, como no início da pandemia, justamente porque a inflação acaba atingindo a capacidade de compra e as pessoas não sentem tanto os efeitos que poderiam advir em outro contexto de baixa inflação. Este é um contexto muito marcado por questões econômicas que atingem os setores mais populares da população, que já sofrem mais com a compra de alimentos e o consumo em geral. Eles sentem muito mais os efeitos da alta inflação e do desemprego.
Outro aspecto a destacar, do ponto de vista social, é a agenda dos direitos civis. Os movimentos LGBTQI+ e outros setores sociais se sentem mais afetados por vários comportamentos misóginos – principalmente nas questões femininas. Nos quatro últimos anos ocorreram mais comportamentos assim, seja do grupo político atual, seja da sua base formada pelo bolsonarismo. Embora a pauta de comportamento e de valores não tenha sido de fato levada para o Congresso Nacional, na prática, gerou muitos efeitos. Embora nada disso seja novo, neste contexto essas questões ficaram mais acirradas e contribuem muito para o nível de polarização radicalizada que temos hoje.
Do ponto de vista político, o Congresso está com muito mais poder em relação ao Executivo porque esse é um aspecto que cresceu ao longo dos últimos quatro anos, especialmente com o Orçamento Secreto, que aumentou o poder do presidente da Câmara. A relação de dependência de múltiplos interesses entre o Legislativo e o Executivo, com o Legislativo tendo mais força em relação às barganhas de destino e distribuição das emendas parlamentares, aumentou. Isso é decorrente das dificuldades que o governo Bolsonaro teve no sentido de não ter uma base em partidos políticos e da sua tentativa de governar com frentes. A consequência disso foi o crescimento dos partidos do Centrão, que são de direita e continuadores do que era a antiga Arena, ou seja, houve um retorno de forças que já eram a favor do Regime Militar e foram o seu principal braço de 1945 a 1964. Hoje, o Partido Progressista e o Republicanos se somam aos partidos que já vinham desde a sustentação do Regime Militar, e a eles se juntaram outros, como o PL, com o apoio de várias lideranças do Democratas, que hoje está em vários estados se colocando como oposição a Jair Bolsonaro, embora ainda existam quadros seus apoiando o governo.
Do ponto de vista político, neste contexto, o sistema partidário e os partidos políticos estão se comportando de uma forma muito dividida – e essa eleição está demonstrando isso –, mas especialmente apoiando o governo. Esse é um elemento importante para distinguir o contexto atual do de 2018, quando Bolsonaro se elege. Ele é o incumbente hoje e está disputando com os outros partidos e forças políticas a continuidade da sua gestão.
IHU - A senhora chama a atenção para a centralidade dos militares como atores importantes deste pleito. Por quê? Quais são os indícios disso? O que a imagem dos "militares" significa no imaginário nacional e como Bolsonaro se utiliza disso?
Maria do Socorro Sousa Braga – Este é um papel que não se pode deixar de fora ao analisar este novo contexto. Os militares sempre funcionaram como força coercitiva do Estado e não eram uma força política no sentido de político-partidário. Mas, ao longo da Primeira República, cada vez mais as forças militares passam a atuar enquanto forças político-partidárias que querem controlar o Estado. Isso está, sim, no imaginário popular porque, de fato, ao longo da história ocorreram várias intervenções militares e, na mais recente, eles atuaram como atores centrais. Os primeiros anos do regime militar foram de bonança, mas depois veio a crise econômica e as pessoas começaram a questionar o governo militar, onde não havia liberdade política e também não havia condições econômicas propícias para se ter uma vida melhor. Mas, mesmo assim, se mantém no imaginário popular a ideia de que os militares são atores mais capazes de colocar ordem no país e o mito de que possam ser uma força que tenha condições de reorganizá-lo.
Se faz muito um paralelo de que o passado teria sido melhor do que o presente. Isso está relacionado também com outro contexto, que tem a ver com o ápice das denúncias de corrupção da Lava Jato em março de 2014. O que se pensava é que se as forças político-partidárias não estavam dando conta da ordem liberal e democrática, teria que se ativar e trazer novamente a força que é capaz de organizar o sistema, mesmo que se abra mão das liberdades políticas. Então, há, sim, um apelo forte de uma geração nesse sentido.
Ao mesmo tempo, é interessante notar que há uma parcela de jovens, até uns 25 anos de idade, que apoia essas ideias, e tanto é assim que o bolsonarismo tem uma parcela de jovens – e isso tem a ver com esse imaginário que acaba influenciando a juventude e com outras pautas, como a questão do desarmamento e da segurança pública.
Mas os militares têm esse histórico de participação política no país e cresceram muito no governo Bolsonaro. Chama a atenção como eles entraram neste governo como força de atuação política, o que não é esperado das Forças Armadas. Sabemos muito bem que elas têm o seu papel de segurança nacional, de fazer a defesa do país em termos de fronteiras, mas elas acabaram voltando e tendo cada vez mais poder no Estado que hoje é controlado pelo atual governo Bolsonaro.
A questão é pensar o quanto a existência do chamado “partido militar” cresceu de poder no atual governo e o quanto isso afeta a política nacional, tendo em vista que há ramificações desse crescimento tanto do ponto de vista de candidatos que são oriundos da área de segurança pública – cresceu muito esse perfil de candidatos para diferentes cargos – quanto na ocupação de cargos do Estado. Isso tudo afeta a atuação do governo hoje.
Por que isso está ocorrendo? A nossa hipótese é que isso está relacionado com o papel que os próprios militares teriam que ter assumido com a redemocratização do país. Foi feito um pacto entre as elites políticas da época e as Forças Armadas, no qual acabou se aceitando muitas demandas das próprias Forças Armadas para que houvesse a redemocratização. Depois, com os governos FHC, começou a haver mudanças como a criação do Ministério da Defesa, com a colocação de um civil à frente deste ministério, no sentido de institucionalizar um novo papel para as Forças Armadas, tal como seu papel tradicional, que está determinado na Constituição. À medida que Temer assumiu o governo, pós-Dilma, houve um retorno dos militares para dentro dos ministérios. Soma-se a isso um elemento anterior, com o PT, que é a questão relacionada às políticas de revisão da justiça de transição e a redução de vários ganhos e usufrutos que os militares gostariam de manter ou expandir em relação a salário ou acrescimento e renovação do parque de armas para as Forças Armadas. Ou seja, tentativas de repensar o formato das Forças Armadas, se contrapondo às novas políticas de fazer a reparação do que houve durante o regime militar.
Esses elementos vão se somar, em certa medida, para trazer às Forças Armadas um novo impulso para se colocar com uma nova força, especialmente no Executivo e no Legislativo. Houve, então, um jogo de forças entre as que estimularam o grupo que levou Jair Bolsonaro ao poder, e um desses braços vem pelas Forças Armadas. Afinal de contas, Jair Bolsonaro não é um outsider na política. Ele já estava há 30 anos na Câmara dos Deputados e já tinha um apoio forte dos partidos do Centrão. Não é nada novo. É como se ele fosse só a face pública desse movimento que estava, em um primeiro momento, bastante insatisfeito com o seu papel no Estado brasileiro e, ao assumir o poder, Bolsonaro conseguiu trazer de novo o protagonismo para as Forças Armadas no Executivo.
Agora, começamos a observar algumas tratativas dessas forças: algumas se retraindo e retirando o apoio ao governo. Começam a aparecer sintomas de que há divergências entre os setores. Ainda não está muito claro até onde vai a rachadura – se é só um racha ou se há mais conflitos internos nessa coalizão que tem um braço armado. Não sei dizer até onde isso pode afetar uma saída das Forças Armadas em seu apoio ao governo hoje. Já estamos quase chegando nas eleições e não houve um movimento muito mais drástico. No máximo, um ou outro militar vai saindo do governo dado os conflitos que acompanhamos, mas não é o grupo todo que está saindo.
IHU – Como o sistema político-partidário e demais setores sociais estão se reorganizando tendo em vista a provável disputa entre Lula e Bolsonaro?
Maria do Socorro Sousa Braga – Estamos observando esse movimento agora. Este é um contexto eleitoral muito diferente. Nunca tivemos um pleito em que um candidato é incumbente e outro é um ex-presidente. Há forças tentando se unir ao ex-presidente Lula, como o campo progressista – só o PSB está dividido e apoia a candidatura em alguns estados –, enquanto a direita brasileira e o centro preferiram Bolsonaro ou ter candidatos próprios. Também começa a haver um movimento da direita mais liberal, como o Democratas, de se aproximar, em alguns estados e articulações, de Lula. Isso era impensável em outros contextos dada a contraposição entre Democratas e PT. Isso faz parte de um movimento de levar o ex-presidente Lula a vencer no primeiro turno, enfraquecendo o grupo de Jair Bolsonaro. Mas isso está acontecendo agora; demorou para acontecer e está em processo, faltando menos de quatro meses para a eleição.
Mesmo assim, vários políticos, dentro dos partidos, estão apoiando Jair Bolsonaro – há um racha entre os deputados dentro do próprio PSDB, que tem um apoio estranho à [Simone] Tebet . Essa situação escancarou o quanto os partidos do centro estão em frangalhos e, por isso, em alguns estados vamos ver um movimento muito forte de os partidos estarem sempre com o candidato que tem mais chances de vencer, que, no caso, é o ex-presidente Lula.
Há um movimento nas bancadas estaduais para dar palanque a Lula e fortalecê-lo. Este é outro elemento interessante desta eleição: a montagem dos palanques estaduais está muito interessante porque em outros momentos esses rachas político-partidários não eram tão evidentes e hoje eles são muito fortes. A maior parte dos governadores vai tentar a reeleição e tem chances de consegui-la. Com apoio ao Executivo nacional, a tendência é ter mais moedas de troca. Hoje, a eleição para governador voltou a ter um peso muito forte, diferentemente de 2018 e de pleitos anteriores; talvez só observável de 1946 a 1964, quando os governadores tinham mais força. No período mais recente, entre 1988 até 2010, as eleições presidenciais tinham maior relevância na organização dos pleitos. Isso é algo que temos que estudar mais, mas tem aí um movimento diferenciado. Uma das explicações para isso é a queda do centro, dos partidos que estão esfacelados e desestruturados. Essa eleição mostra que cada vez mais eles terão maiores dificuldades de se manterem. PSDB e PTB estão com dificuldades, inclusive, de montar chapas para deputados.
IHU - O sentimento antipetista passou ou está mais arrefecido no país ou tende a ficar mais acentuado depois do mandato do presidente Bolsonaro e da candidatura do ex-presidente Lula? Que peso ele pode ter nas eleições presidenciais deste ano? De outro lado, qual tende a ser o eco do sentimento antibolsonarista com a candidatura do ex-presidente Lula?
Maria do Socorro Sousa Braga – Sim, essa é uma questão talvez vá nos fazer repensar várias teses e hipóteses que, por causa dos contextos anteriores, deram muita força ao bolsonarismo. Pelas pesquisas de opinião hoje, o antibolsonarismo cresceu mais do que o antipetismo, que está se esvaziando. Essa é uma demonstração do quanto a sociedade brasileira está rejeitando o atual governo. Aquele 1/3 que apoia o presidente é bolsonarista, realmente rejeita o petismo, não vai mudar e vai permanecer.
Hipoteticamente, tirando uma fotografia do cenário hoje, quem tem mais chances de vencer as eleições é o ex-presidente Lula. Mesmo ele vencendo, o bolsonarismo que mais materializa o antipetismo vai permanecer na política brasileira e pode representar a maior oposição ao possível próximo governo. Agora, tudo vai depender porque o comportamento do eleitor segue muito as condições de melhora das condições de vida das pessoas. Então, se o ex-presidente Lula e seu grupo conseguirem vencer com grande apoio da maior parte da população, as pessoas voltam a ter confiança nesse grupo político que já ficou quase quatro gestões no governo federal. O PT não ficou esse período no governo por imposição; ele ficou porque a população o elegeu nas urnas. Por isso chamo a atenção para o voto retrospectivo.
A tendência, conforme for a capacidade do ex-presidente Lula e seu grupo de fazer um bom governo, vai se somar a essa boa avaliação que sempre se fez, principalmente nos dois primeiros governos petistas, e vai aumentar a confiança do eleitorado nacional nas forças progressistas. Isso é fundamental para o Brasil porque provavelmente vamos sair das eleições com um Congresso não sei se mais conservador, mas com um peso muito forte destes setores.
Quando olhamos para o resultado das eleições de 2020 e 2018, percebemos que os partidos que hoje dão apoio ao presidente cresceram muito, seja em termos de apoio eleitoral, seja na base dos cargos conseguidos. Então o ex-presidente Lula vai precisar aproveitar bem esse período de lua-de-mel, que é o período inicial do governo, para reverter e aumentar a confiança do eleitorado nacional.
O antibolsonarismo cresceu muito e está em torno de 52%. Então, a depender das condições de atuação do ex-presidente Lula nos próximos anos, a tendência é reduzir bastante o antipetismo, que cresceu a partir de 2014 com a Lava Jato. É claro que vai haver sempre as forças conservadoras. Este é um país que tem um grande eleitorado conservador, mas a característica do bolsonarismo em si, em termos de violência e de posições fascistas de matar o inimigo, não é o traço marcante na maior parte da população conservadora no país. Esse não é um traço comum. Isso vem dessa composição do movimento bolsonarista.
Obviamente não vivemos em uma sociedade democrática substantiva em termos largos, mas estávamos em um crescente. Acredito que ainda seja possível voltarmos àqueles patamares e a partir dali retomar o aprofundamento da democracia mais substantiva do ponto de vista dos direitos fundamentais para que esta não se torne só liberal do ponto de vista das instituições democráticas. Isso é muito pouco; temos que ampliá-la, reduzindo as desigualdades sociais para também reduzir o bolsonarismo.
O antibolsonarismo se alimenta, em parte, das contradições de uma democracia como a brasileira, que está baseada em privilégios. Então, temos que reduzir essas contradições. Nesse sentido, a esquerda e os setores progressistas vão ter que ser muito mais atuantes. Não dá para manter parcelas conservadoras da própria esquerda em termos de direitos civis – estou me reportando aos setores LGBTQI+, aos negros, aos indígenas, que são setores que estão precisando cada vez mais da efetivação dos direitos políticos e sociais previstos na Constituição.
IHU – Nos últimos anos, foram dirigidas várias críticas ao PT e à esquerda a partir de vários setores da própria esquerda, inclusive reforçando as autocríticas que o partido teria que fazer a si mesmo. Entretanto, estamos em mais um ano eleitoral em que os grupos de esquerda se reúnem novamente em torno do PT e, mais precisamente, do ex-presidente Lula, para a candidatura que desejaram realizar em 2018: Lula versus Bolsonaro. No seu artigo recente, a senhora destaca o papel proeminente que o PT ainda exerce no campo da esquerda, apesar do crescimento da força partidária composta pelo PSOL, PCdoB, PSB, REDE, PV e Solidariedade. A que atribui a hegemonia petista no campo da esquerda e quais são suas consequências políticas?
Maria do Socorro Sousa Braga – Com certeza o PT conseguiu a sua hegemonia se colocando e defendendo bandeiras muito caras no contexto de uma sociedade marcada por muitas desigualdades sociais. Na década de 1980, isso significou o papel do PT de se colocar contrário, desde a abertura, ao próprio colégio eleitoral – na época se apoiava bastante o Tancredo Neves. Isso marcou porque o PT conseguiu se contrapor às forças liberais mais conservadoras ou mesmo neoliberais, mais recentes, e conseguiu controlar e protagonizar o campo progressista. Ele foi fundamental para estruturar o sistema partidário brasileiro: a partir da organização do PT – e este é um grande traço do partido – do ponto de vista organizacional, com uma estrutura com capilaridade local e nacional – o que era inédito nos outros partidos –, ele fez os demais se organizarem e a formarem quadros também.
Entre as consequências políticas disso, no campo da esquerda destacam-se os conflitos entre as forças intrapartidárias porque, à medida que o partido foi se colocando em vários cargos do Estado, ele foi se acomodando – e isso é muito comum também nos partidos sociais-democratas – àquela lógica pelas disputas eleitorais, ocupações de cargos e foi, cada vez mais, perdendo espaço ou abandonando as lutas dos embates mais radicais dos movimentos. Ele deixou de ser movimento social e passou a ser um partido político, e partido político é isto: quer ampliar cada vez mais seu apoio eleitoral para ir se renovando nos cargos políticos, ocupando os espaços e colocando as lideranças dos respectivos movimentos sociais com suas demandas. Depois, à frente da presidência, o PT foi criando os conselhos para colocar diferentes celebridades, mas também lideranças dos movimentos. Era algo muito novo, mas, obviamente, isso criou conflitos com outros setores que não foram contemplados com essa distribuição de cargos ou programaticamente, como foi o caso do PSOL. Vários membros saíram do PT para criar o PSOL e isso teve a ver com a questão da reforma da previdência à época.
O PT foi cada vez mais tendo mais apoio no campo empresarial, de setores com os quais se contrapunha no período inicial. Mas à medida que ele vai se tornando um partido político, ele tem, sim, que ter recursos e apoio do ponto de vista programático desses segmentos do capital. Obviamente que isso criou conflitos e contradições com a sua origem e com setores ligados às questões trabalhistas.
É muito difícil para um partido que pelo menos vem com a defesa do socialismo – não sabemos muito bem que socialismo seria esse – administrar a atuação do sistema capitalista e da democracia liberal e de todas as contradições que temos. Ele tentou fazer isso fazendo alianças de classe. Ele fez uma administração que chamo de “soma positiva” no sentido de que o partido coloca na mesa de negociação os diferentes setores que compõem a sociedade: empresários, trabalhadores e o Estado e aí vão chegar a algum acordo.
IHU – Aos acordos.
Maria do Socorro Sousa Braga – É, aos acordos, exatamente, porque o Lula é um excelente negociador – ele faz isso muito bem.
IHU - O PT ainda consegue se contrapor ao estado das coisas hoje e oferecer respostas às crises atuais? Ou ele tem eco e acaba sendo predominante na esquerda por causa do diagnóstico de que é o único que tem condições de vencer Bolsonaro?
Maria do Socorro Sousa Braga – Boa pergunta! Penso que as duas coisas se somam: ele é um partido que já tem experiência na presidência e, para uma parte dos setores empresariais, ele consegue somar os interesses desses grupos talvez de uma forma muito melhor do que outras forças hoje conseguiriam fazer. Tem esse lado de dar conta de continuar administrando razoavelmente bem o sistema capitalista com maior distribuição de renda e com uma tentativa de dar conta de algumas questões, mas não serão feitas reformas estruturais porque não é isso que o programa do PT prega.
Novamente, não vamos ter grande mudanças estruturais neste país, as quais grande parte da população gostaria de ver. Vamos ter essa conciliação. Hoje, não há condições necessárias para as reformas estruturais. O setor progressista no país precisaria ser muito mais forte para fazer reformas estruturais de base, para de fato ter a efetivação dos direitos sociais, civis e políticos previstos no estado de direito pleno.
Olhando não só para o PT, mas para o campo progressista no país, vemos que as condições não estão boas do ponto de vista de maiores reformas estruturais. O que o país precisa são de reformas estruturais; não dá para fazer reformas pontuais para resolver algumas questões, que é o que tem sido feito ao longo dos últimos anos.
Uma reforma fundamental que deveria ter sido feita ao longo dos governos petistas é a tributária. Como um partido que vem pela esquerda permanece taxando consumo básico, consumo de comida? O estímulo nos governos petistas foi consumir mais produtos de material de “linha branca”, como geladeiras. Não é isso que a população quer. É claro que poder consumir esses produtos também é importante, mas as pessoas ficaram endividadas ao longo desses três mandatos [petistas] porque o estímulo ao consumo de materiais domésticos foi muito forte. Em contrapartida, a reforma estrutural que seria fundamental, que era reduzir ou tirar a taxa da cesta básica e dos alimentos, não foi feita. Tampouco se taxou grandes fortunas no país; pelo contrário. De novo, não tenho expectativa de que um novo governo petista vá fazer algo muito forte nesse sentido porque não tem base de apoio no Congresso para fazer uma reforma como essa. Mas é isto mesmo: não dá para criar muita expectativa em torno de um novo governo petista achando que ele vai fazer maravilhas, porque sabemos que as condições políticas são vulneráveis.
IHU – Ao analisar os demais partidos, a senhora chama a atenção para o declínio do PSDB desde a eleição de 2018. O que vislumbra para o partido a partir deste pleito?
Maria do Socorro Sousa Braga – Temos que esperar alguns movimentos do partido, mas por enquanto ele vai continuar bastante fraco a ponto de que deve sair com bancadas menores, especialmente se perder a eleição em São Paulo. Com certeza o Rio Grande do Sul pode se tornar um estado mais forte do que o Rio de Janeiro justamente por causa do Eduardo Leite, mas tem um conflito maior que é entre os “cabeças brancas” e os “cabeças pretas”. Pode ser que, conforme a capacidade que os membros tenham de se unir daqui para frente, o PSDB possa voltar a ser um partido não diria grande, mas médio, e depois vai voltando a construir uma trajetória. Aécio Neves e Eduardo Leite são parceiros em contraposição a Doria. Não sei como Doria vai voltar a ser uma liderança importante, dado que ele cria tantos problemas com lideranças internas e de outros estados, ou seja, é uma liderança que mais divide do que soma. Mas há setores que são “pais fundadores” do partido e ainda continuam em São Paulo. Temos que ver se esses grupos vão se reaglutinar para fortalecer o partido, e como os grupos do Ceará vão se recompor. Mas, no geral, é um partido que demonstra cada vez mais fragilidade do que capacidade de se reerguer facilmente ou rapidamente. Ele vai precisar de um tempo maior para se reestruturar. Eu diria até que dois pleitos, porque ele provavelmente sairá muito frágil dessa eleição.
Hoje, nós temos um contexto, em termos institucionais, de cláusula de barreira, de financiamento público, ou seja, a engenharia institucional não contribui muito para os partidos que estão tendo maiores dificuldades de se manter.
A projeção para o PSDB é que novas lideranças, como o próprio Eduardo e outras que vão surgir, consigam apoio e façam alianças com outros grupos. Não vejo que o PSDB vá acabar de vez. Vai ficar, durante um tempo, um partido pequeno ou, no máximo, médio – alguns dizem que pode ficar um partido nanico, mas não acho que seja o caso. Com o tempo ele vai conseguir se reorganizar porque os outros partidos também estão passando dificuldades.
IHU – O MDB também é apontado pela senhora como um partido que está enfraquecido, apesar do papel que sempre desempenhou nas articulações políticas. Que peso o MDB poderá ter nas eleições deste ano?
Maria do Socorro Sousa Braga – O MDB sempre foi uma confederação de forças estaduais, mas nunca conseguiu, justamente por causa das rachaduras internas, ter uma grande candidatura nacional e a tentativa era agora. Mas é um partido que vem tendo cada vez mais dificuldade de formar as suas listas, ou seja, de arregimentar quadros e tem rejeição do eleitorado nacional. Isso acaba pegando de frente o MDB e o PSDB, que são os partidos que têm um grau maior de estabilidade porque ocupavam o centro.
Uma série de partidos do centro foram cada vez mais para a direita – e esse foi um elemento que também trouxe, para o eleitorado, uma insatisfação, porque este fica muito insatisfeito com partidos que mudam muito a sua defesa programática. Isso dificulta o apoio eleitoral. MDB e PSDB são dois partidos que têm muitas disputas internas, com graus de disputas intrapartidárias, e não estão conseguindo se preparar melhor para as disputas.
Observamos uma tendência de o MDB ser muito forte em cidades pequenas e, como a maior parte das cidades brasileiras – 70% delas – é de porte pequeno, obviamente isso acaba parecendo em números absolutos, pois o MDB está praticamente em todas as cidades brasileiras. Mas, na verdade, ele está se interiorizando muito e indo para cidades com magnitude eleitoral muito menor, deixando os grandes centros e capitais.
A tendência do partido, quando faz esse refluxo de ir para eleitores de cidades menores, é a redução em termos de expressão. Obviamente, existem estados em que a interiorização é menor, mas em estados como São Paulo, onde há grandes eleitorados, a redução do MDB é gritante. Para se ter uma ideia, na última eleição, o partido elegeu um deputado – anos atrás isso era impensável. Por isso a tendência do partido de apoiar uma candidatura nacional, porque isso atrai mais candidatos para as suas listas e tem todo um movimento nesse sentido. É interessante pensar como a nossa engenharia política, por ser federalista e com um peso nas chapas que têm candidaturas nacionais, ajuda na montagem das outras chapas dos outros cargos.
Há vários elementos para explicar a queda e a dificuldade desses dois partidos de permanecerem como fiéis nesse equilíbrio do sistema partidário. Eles foram tanto para a direita, apoiando candidaturas como a de Bolsonaro, que as bancadas estaduais e federais se dividiram, o que contribuiu para reduzir sua força entre o eleitorado. Na verdade, eles foram bastante fisiológicos, também, porque quando perceberam que havia no eleitorado nacional um grande crescimento do antipetismo, buscaram se fiar justamente naquele que estava em alta.
Desde quando o MDB não fez parte de governo? Praticamente podemos contar nos dedos as vezes em que isso ocorreu e esse é o padrão do partido, o qual foi mantido com Bolsonaro também. Mas, ao mesmo tempo, o partido sofreu a rejeição do próprio Bolsonaro, porque em vários estados este tentou não se aproximar do MDB, mas sim dos setores que normalmente apoiavam o partido, como o agribusiness e as elites econômicas.
IHU – Hoje, há muitas críticas à política ambiental do governo Bolsonaro, mas muitas dessas críticas também foram dirigidas aos governos petistas. Como a pauta ecológica tende a ser discutida neste pleito?
Maria do Socorro Sousa Braga – Exatamente. É um tema que talvez comece a entrar a partir de agora porque é um ponto muito frágil para a atual gestão. O PT está fazendo alianças com alguns setores que estão trazendo propostas para essa temática. Acho interessante o que [André] Janones está fazendo, embora seja um candidato extremamente desconhecido, de só aceitar fazer parte da coligação com Lula – pelo menos é isso que ele disse – se o PT aceitar as propostas programáticas dele, e uma delas tem a ver com a questão ambiental, enquanto a outra tem a ver com a questão de manter os R$ 600 do Auxílio Brasil.
Talvez a agenda ambiental vá fazer maior diferença agora com a ideia de desenvolver um grande projeto para a Amazônia. Teria ali uma reestruturação de todas as riquezas que a Amazônia possa possibilitar para o Brasil do ponto de vista empresarial junto com saídas mais sustentáveis dessa relação entre o ecológico e o empresarial. Então, teria uma parceria público-privada atuando. Isso vem a partir de um grande grupo que está se organizando ao redor de empresários e setores de movimentos ecológicos para essa candidatura. Isso nos leva a ver o quanto essa questão pode fazer diferença em um possível novo mandato do PT, se houver a colaboração de vários setores de diferentes áreas para a questão programática se fazer de fato efetiva. Penso que daí podem vir novas propostas que são importantes para os setores que estão na franja do PT.
Há setores da sociedade que vão votar no PT para não deixar Bolsonaro vencer, que nunca estiveram no campo petista, mas se aproximam para tirar o atual presidente. Esse movimento vem vindo inclusive de outras campanhas, como a do Ciro, ou outras, menores. Claro que quanto mais consistentes e plurais essas propostas, maior a tendência a essa adesão aumentar. O grande objetivo, que é vencer no primeiro turno, se faz mais forte. Vamos ter que esperar e ouvir um pouco mais as campanhas, porque se vários setores apoiarem a campanha petista, a expectativa é que esta seja bastante plural, assim como o programa político. Agora ainda está na fase de o partido receber as propostas, depois vão fazer uma avaliação e incorporar ou não as demandas. A expectativa é saber, através do programa político dessa gestão, quais os setores que serão contemplados. Aí vamos conseguir ver, de fato, quem vai ter maior peso num eventual próximo governo do PT.
IHU - Alguns teóricos chamam a atenção para a necessidade de uma nova imaginação política. A senhora tem refletido sobre essa questão à luz da política brasileira? O que nos permitiria uma nova imaginação política para o país, especialmente em um momento como este em que, depois da eleição de 2018, voltamos para um quadro muito parecido: Lula versus Bolsonaro? Como pensar alternativas fora desse cenário?
Maria do Socorro Sousa Braga – Essa é a grande questão. Todo o segmento progressista está pensando um pouco nisso. Estamos vivendo em um momento de caminho único, não temos alternativas e utopias e isso nos incapacita muito e, ao mesmo tempo, ficamos com essa sensação de insatisfação o tempo inteiro. Precisamos ter mais intelectuais pensando nessas alternativas – está num momento muito bom para pensar nisso. Fico pensando que se voltar – que é a tendência – um governo petista e se de fato houver melhorias, apesar de as condições macroestruturais não serem as melhores para que haja mudanças, a tendência é que haja crescimento do campo progressista e, daqui a dez anos, tenha um país com maiores condições de fazer mudanças estruturais de base, o que não vejo nos próximos quatro anos de fato.
Do ponto de vista do imaginário, não vai haver mudanças no país no sentido de haver uma democracia mais substantiva em que se reduzam as questões mais estruturais em termos de pobreza, desigualdade social e violências de diferentes naturezas e gêneros. Toda a violência política que estamos vivendo faz com que coloquemos os esforços muito centrados em reduzir tantos malefícios pelos quais passamos nesses três anos e meio, e agora fica até difícil pensar o que pode ser feito. Mas uma coisa com certeza temos que fazer: tirar a força que nos levou, ao longo desses três anos, a todos os retrocessos, justamente para termos melhores condições, seja na ciência, seja na educação.
Fico impressionada como tudo isso foi reduzido de forma tão rápida. Por quê? Porque não foram feitas as reformas estruturais de base. Para haver essa mudança importante no imaginário das pessoas que têm menos conhecimento – mas que precisam tê-lo – é preciso um país melhor não apenas para 1% da população, mas realmente para a população em geral. Vamos precisar, primeiro, retirar essa força que trouxe tantos retrocessos em várias áreas fundamentais para a formação do indivíduo e para as questões ecológicas do país, para, inclusive, lermos mais, nos inspirarmos e pensarmos em novos horizontes.
Estamos em um contexto internacional também de muitos retrocessos. Isso mostra que tem algo aí no sentido de que a democracia liberal tem que ser repensada e sabemos que esta, enquanto regime político, restringe muito a ampliação de várias conquistas e direitos importantes. Não dá só para as cúpulas manterem um nível de enriquecimento tão alto para tão poucas pessoas. Sabemos que democracia liberal e o capitalismo são uma somatória que traz muitos problemas para a população em geral. Então, temos que repensar como desenvolver, quem sabe, um novo sistema econômico, muito mais humano, muito mais preocupado com a pessoa humana e menos preocupado com o lucro, com as riquezas individuais e personalizadas.
Parte do que vivemos tem muito a ver com essa questão – que já sabemos há muito tempo – de pensar o Brasil, seja internamente, com todas as suas contradições, seja diante do contexto internacional. Ou seja, não dá para pensar somente no Brasil, mas temos, sim, que melhorar muito as nossas condições internas para ter um novo momento para repensar a questão do imaginário político. Além disso, temos uma questão séria neste país: uma dependência muito grande do Estado. Não sei até que ponto temos que depender do Estado para resolver várias questões que muitas vezes dependem da formação de uma cultura política em que os indivíduos atuem. Por isso, a educação e a formação podem nos dar capacidade de nos repensarmos enquanto indivíduos. A mudança cultural, seja democrática, seja mais humanizada, mais preocupada com o outro e com a capacidade que cada um tem de fazer e atuar junto e coletivamente, pode nos ajudar, sem necessariamente precisar de um Estado que faça tudo. É a expectativa de alguns setores que o Estado faça muitas coisas por nós mesmos, mas não dá mais para esperar só dele. É preciso uma mudança cultural. Tem algo aí no sentido de que vamos precisar nos repensar muito e que tem expressão e se materializa em diferentes âmbitos: da cultura, da educação, da saúde e em várias outras áreas. É só com o tempo que vamos conseguir.