Misericórdia e amor. 'Amoris Laetitia' como ponto de partida e não somente de chegada. Entrevista especial com Cesar Kuzma

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10 Abril 2016

“O Documento [Amoris Laetitia] é o resultado de uma etapa, mas não o fim de um percurso”, avalia o teólogo.

Foto: catedralviagens.com.br/amoris-laetitia

“A misericórdia é a chave para se ler a Exortação Amoris Laetitia, porque é a maneira como Deus exprime o seu amor e é desta forma que ele nos convida a seu seguimento”, diz Cesar Kuzma ao comentar o documento conclusivo do Sínodo para a Família, publicado ontem (08-04-2016), pelo Papa Francisco.

A convite da IHU On-Line, Kuzma respondeu, na tarde desta sexta-feira, por e-mail, algumas questões, nas quais apresenta suas reações iniciais à leitura da Exortação Apostólica Amoris Laetitia. O teólogo chama a atenção para o sentido do bilhete que Francisco entregou junto com o documento, o qual invoca a proteção da Sagrada Família. Segundo ele, “o iluminar pela Sagrada Família exige de nós, cristãos, um entendimento maior, pois esta família não surge perfeita, não surge plena, mas sim vulnerável. É na vulnerabilidade da família de Nazaré que Deus fez a sua morada”.

Para Kuzma, entre os pontos essenciais para compreender Amoris Laetitia, destacam-se “a realidade das famílias, que mesmo sendo geral, torna possível algumas percepções; a questão do amor, muito bem desenvolvida, quase como um tratado para o casal e para a família, um verdadeiro aprofundar da teologia do Matrimônio enquanto sacramento; e as questões pastorais conflitivas, com destaque ao capítulo VIII”.   

Ele frisa que, conforme esperado, o documento tem limites, mas deve ser visto “como um processo ainda não conclusivo”. Em relação ao entendimento da realidade das famílias, Kuzma pontua que “a multiplicidade das formas" familiares "parece ter ficado um pouco de fora” do discurso do Papa. A reflexão sobre o amor, por sua vez, embora seja outro “ponto chave da Exortação”, é descrita num nível que pode ser considerado “utópico”, “o que justifica a descrição da busca, do caminhar que o documento propõe”. No entanto, menciona, “há um limite humano no amar: somos fracos, erramos, caímos, não conseguimos ver o todo”.

Acerca das questões pastorais, o teólogo ressalta que “Francisco aposta no discernimento da comunidade, no foro pessoal e íntimo (na consciência) e na vigência dos pastores. Mas e aí? Isso será acolhido? De que forma?” E dispara: “Seria mais cômoda uma decisão mais direta, mas por alguma razão ele optou por não a fazer e trouxe o que já se projetava no Relatório Final”.

Kuzma lembra ainda que o capítulo VIII da Exortação recupera três palavras que “surgiram no final do Sínodo, tanto no discurso do Papa quanto no relatório final: ‘acompanhar’, ‘discernir’ e ‘integrar’”. Através delas, conclui, “o Papa sugere um olhar mais à pessoa do que à lei”, porque "Francisco quer sair da normativa, ele quer provocar a Igreja a uma atitude de atenção, cuidado e misericórdia”.

Cesar Kuzma é professor de Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. É teólogo leigo, casado e pai de dois filhos.

Confira a entrevista.

Foto: https://www.youtube.com

IHU On-Line - Depois da realização dos dois Sínodos dos Bispos sobre a Família, qual era a expectativa acerca da publicação de Amoris Laetitia em relação aos principais temas que foram discutidos durante o Sínodo?
 
Cesar Kuzma - Bom, é necessário dizer, antes de tudo, que os dois Sínodos que antecederam e que resultaram nesta publicação (2014 e 2015) foram os Sínodos mais discutidos e mais comentados da história da Igreja recente. É fácil de encontrar os encantos e esperanças que foram suscitados em vários lugares, mas também as inúmeras tensões que “supostas perspectivas pastorais” criaram nas comunidades, entre teólogos e bispos, e ao redor do próprio Papa, inclusive com pronunciamentos contrários (e publicações) de pessoas muito próximas a ele, lançadas, intencionalmente, nas vésperas de cada Sínodo. Estes são fatos que devem ser considerados, pois diante de tudo isso, percebe-se a atitude de Francisco, sempre discernindo, sabendo ouvir e dizer da maneira correta e no momento oportuno. Este cuidado pastoral, mas, ao mesmo tempo, a coragem de uma resposta nova transpareceu nas Assembleias Sinodais e se percebe também no novo documento.

A meu ver, essa proximidade com as discussões tem várias razões: a primeira delas, e a mais óbvia, é a facilidade com que se multiplicam as informações dentro da nossa cultura atual, e elas nos chegam rapidamente, de acordo com a interpretação do veículo e do agente que a transmite, podendo ser fiel ou não, construtiva ou não. Também tem o fato de ter havido duas consultas públicas, os dois questionários que foram enviados a toda a Igreja, que chegaram e foram frutuosos em vários lugares, mas que também não chegaram, por razões diversas, em outros. Esta é uma primeira impressão.

Francisco e a Igreja

Porém, outros fatores favoreceram esta discussão e acredito que precisam ser considerados:

1) a pessoa e a proposta eclesial de Francisco, que desde o momento de sua eleição e desde as suas primeiras atitudes e discursos ofereceu à Igreja a possibilidade de um “novo tempo”, uma primavera, como se chamou. É preciso reconhecer aqui que Francisco, como nenhum outro neste tempo moderno, está nas rodas de conversas e discussões que tocam assuntos de Igreja e além dela, seja por pessoas de Igreja, seja por pessoas de fora;

2) depois, o celebrar dos 50 anos do Concílio Vaticano II, que por sua vez, fez a Igreja revisitar alguns elementos essenciais de sua compreensão eclesiológica e missionariedade, e que, talvez, com Francisco, por tudo aquilo que o envolve, tiveram mais força. Um exemplo disso é o resgate da sinodalidade, a colegialidade eclesial, a liberdade de falar e de caminhar além de uma visão monolítica de Igreja (e da teologia), o desprendimento e a abertura a novas realidades, a proposta de uma Igreja “em saída” e que não tenha medo de enfrentar e se “enlamear” com os desafios que nos chegam, sempre numa atitude de diálogo, num pastoreio, aspectos característicos do Vaticano II;

3) O tema em si. Falar de família na atual sociedade é falar de um tema bastante caro e conflitivo, com muitas atenuações e percepções. No entanto, Francisco entendeu que o tema era necessário e urgente, pois novas situações mereceriam novos posicionamentos e novas respostas, não tanto doutrinárias, mas pastorais;

4) a proposta da misericórdia, que, sabiamente, ele coloca como ano jubilar e convida toda a Igreja a esta reflexão. Um olhar atento às suas catequeses, a muitos dos seus pronunciamentos e mesmo às intervenções das Assembleias dos Sínodos faz notar que o tema da misericórdia que surge como algo fundamental para a Igreja (pois Deus é misericórdia, ele afirma!) sempre foi evocado.

Misericórdia: a chave para ler Amoris Laetitia

E, penso eu, a misericórdia é a chave para se ler a Exortação Amoris Laetitia, porque é a maneira como Deus exprime o seu amor e é desta forma que ele nos convida a seu seguimento, tendo em nós o mesmo sentimento (cf. Fl 2,5). Mesmo sabendo que a sua recepção terá limites, pois ainda que traga e exalte profundas verdades da fé, bem desenvolvidas, é bom que se diga, as mesmas são lidas e entendidas no atual contexto, e sempre há um limite. É assim que ele encerra a Exortação, reconhecendo-os, mas convidando as famílias e a Igreja a um caminhar na esperança.

IHU On-Line - Quais são os três pontos importantes de Amoris Laetitia?

Cesar Kuzma - Não imagino como algo fácil encontrar já, neste momento, os três pontos mais importantes da Exortação. É possível fazer leituras, e aqui faço uma primeira. Contudo, gostaria de elencar três pontos que, na minha leitura, considero que são essenciais, pelo menos, naquilo que busquei compreender do documento: 1) a realidade das famílias, que mesmo sendo geral, torna possível algumas percepções; 2) a questão do amor, muito bem desenvolvida, quase como um tratado para o casal e para a família, um verdadeiro aprofundar da teologia do Matrimônio enquanto sacramento; e 3) as questões pastorais conflitivas, com destaque ao capítulo VIII.  

Tomo a liberdade de me estender um pouco na reflexão:

1. Ao falar da realidade das famílias, Francisco retoma e assume elementos que foram tratados a partir do primeiro Sínodo, buscados em questionários que foram respondidos e rediscutidos no segundo Sínodo. Num olhar geral, e aqui também pode ser um limite do documento, a sua intenção acomoda-se melhor numa visão de família e de Igreja do ocidente, talvez muito próxima a nós, mas distante de outras realidades e culturas, dados que podem se fazer notar com mais presença nos capítulos posteriores. Mas, mesmo em linhas pequenas, é possível observar a preocupação e a chamada de atenção para com algumas realidades, algumas muito críticas e que marcam a realidade de inúmeras famílias e que necessitariam de um olhar mais atento de todos nós; dizem respeito à dignidade da vida e à sobrevivência de muitas famílias que são vítimas da pobreza, vítimas da escravidão, há o drama da migração, a exploração, venda e morte de mulheres e crianças, dentre outros elementos. Alguns dados merecem uma parada e uma reflexão.

Um artigo que chama a atenção é o n. 46, que retrata aspectos de muitas famílias em nosso mundo. Francisco, na Exortação, faz críticas ao modelo de vida da atual sociedade, que causa falência de modelos familiares (n. 41); ao mesmo tempo, tem a coragem de denunciar os abusos contra menores, cometidos no seio familiar, mas também dentro de muitas comunidades cristãs (n. 45). O texto não avança nos muitos e novos modelos de concepção familiar, no entanto afirma que a força de uma família está “na capacidade de amar e de ensinar a amar” (n. 53); chama a atenção para a condição da mulher (n. 54), e aqui é algo que poderia puxar uma reflexão, uma recepção nossa a partir daqui; e diz que não se quer impor ou se chegar a um estereótipo de modelo familiar, mas afirma que as diversas situações nos interpelam num mosaico de muitas realidades, e as realidades que nos preocupam são desafios que não podem ser ignorados (n. 57).

2. A questão do amor transparece por todo o documento, mas ganha uma atenção especial em dois capítulos. É uma parte bela do texto, uma catequese e um convite à experiência do amor, que para o texto é caminho, é busca, é encontro, é um amor que necessita aprender a conviver com a imperfeição (n. 113). Aqui, a beleza não está no contemplar o belo e a retidão, como algo concreto, mas está em amar. Só o amor converte, e converte na acolhida sincera. Pensando para além do texto, mas em sintonia com ele, afirmo que acolher não é ignorar o outro em sua situação, mas é ver no outro algo que nem ele mesmo vê, e por essa razão o acolhe: acolhe num amor que decide amar – amando. O amor é uma busca. E toda esta parte é recheada com um jeito Francisco de ser, ao dizer, recuperando uma de suas mensagens: na família é necessário usar três palavras: “com licença”, “obrigado” e “desculpa” (n. 133). Bem próximo. Vale destacar a bela reflexão que ele faz sobre o hino do amor da Carta aos Coríntios, refletindo cada parte, cada palavra e aplicando esta intenção à vida do casal e na vida familiar. E vai além, aliás, é o nome da Exortação.

3. As questões pastorais conflitivas. Aqui encontramos pontos já no capítulo VII, mas o grande enfoque está no capítulo VIII. Por certo, é onde se esperava uma resposta mais clara de Francisco, até mesmo pelas discussões em períodos sinodais. Todavia, vê-se que ele escolheu um caminho diferente, legítimo, obviamente, e que merece ser evidenciado. O capítulo VIII chama a atenção para três palavras que já surgiram no final do Sínodo, tanto no discurso do Papa quanto no relatório final: “acompanhar”, “discernir” e “integrar”.

E eu diria que a chamada para este trato pastoral deve ser feita na misericórdia, que é a chave para se ler esta parte e uma atitude fundamental para a Igreja, mas que parece estar ausente, ou não tão valorizada. O Papa sugere um olhar mais à pessoa do que à lei, obrigando pastores e comunidade a um despojamento e a um encontro mais próximo com cada realidade. Pede sensibilidade e ternura. Não se pode ter uma normativa geral, já que não somos juízes dos outros, pois cada realidade atende a uma especificidade, chama a uma intenção.

Dito isso, a pergunta que fica é: então, como ficam aquelas situações difíceis, que são tidas como “irregulares”? Estão fechadas? A resposta é não! Contudo, seria um engano se alguém olhasse esta parte como uma busca meramente objetiva: sim e não. A resposta é mais profunda e Francisco quer sair da normativa, ele quer provocar a Igreja a uma atitude de atenção, cuidado e misericórdia.

Ele mesmo diz: na Igreja existem dois caminhos, a misericórdia e a integração (n. 296). Uma realidade leva à outra e ninguém pode estar fora, e a lógica da integração é a chave para o acompanhamento pastoral. Desta forma, a comunidade que acompanha e a pessoa que se encontra em determinada condição terão um processo de discernimento. E, mediante este processo, num caminho que se decide por percorrer de mãos dadas, na experiência do amor que chama ao novo e ao encontro, podemos dizer que não há razão para alguém ficar de fora da comunidade, de fora de uma participação ativa.

E, aqui, é algo que assumo na minha interpretação, mesmo o texto não dizendo diretamente, podemos concluir que também não haveria razão para uma pessoa que tem consciência da sua condição, pois discerniu e busca o encontro e vive um amor verdadeiro e fecundo, que oferece um testemunho firme da fé, não haveria impedimento para um acesso aos sacramentos, sobretudo à Eucaristia. No entanto, a chamada é para a misericórdia e para o discernimento, e esta é uma tarefa de duas mãos, da pessoa (do casal) e da comunidade. Um desafio.

IHU On-Line - Quais são os limites de Amoris Laetitia?

Cesar Kuzma - Os três pontos que mencionei acima apresentam limites em si mesmos. A realidade das famílias em um âmbito maior, a multiplicidade das formas, parece ter ficado um pouco de fora deste discurso. Mesmo não tendo a intenção de ter um modelo único, a linguagem do documento acaba reforçando certos aspectos, o que vai exigir das comunidades uma recepção criativa do próprio documento, buscando verdades além dos contextos, a fim de se encontrar dentro dele e ver passos novos a partir dele.

A questão do amor é um ponto chave da Exortação, é bem descrita e num nível alto - diria até utópico -, o que justifica a descrição da busca, do caminhar que o documento propõe. No entanto, há um limite humano no amar: somos fracos, erramos, caímos, não conseguimos ver o todo. Seria necessário ver a amplitude da misericórdia e a maneira como ela se pautará em todos os níveis da vida cristã.

Diria o mesmo nestas chamadas mais conflitivas. Francisco aposta no discernimento da comunidade, no foro pessoal e íntimo (na consciência) e na vigência dos pastores. Mas e aí? Isso será acolhido? De que forma?... Seria mais cômoda uma decisão mais direta, mas por alguma razão ele optou por não a fazer e trouxe o que já se projetava no Relatório Final, o que em alguns aspectos é um avanço. Seria errado dizer que ele confirmou o que já se havia dito. Não. Ele traz novidade à maneira de falar, os aspectos levantados são novos e as chaves de interpretação de amplitude pastoral também. É evidente que uma linha mais conservadora da Igreja vai se encontrar no documento e vai ressoar aquilo que lhe convém, mas também é certo afirmar que há uma linha e há uma intenção. Faz-se necessário ver um pouco mais à frente. Mas vai requerer um esforço de toda a Igreja, a fim de que a recepção seja eficaz. Ele mesmo apontou que há limites, é a forma como ele termina.

Relações homoafetivas

Outro limite é com relação às novas concepções familiares e aos homoafetivos, principalmente. Não há na Exortação um olhar de condenação, ao contrário, pede-se acolhida e ajuda da comunidade para com as famílias que têm filhos que se descobrem nesta condição. Já era sabido que não haveria uma equiparação ao sacramento do matrimônio, mas deixa lacunas; fala também da integração destes na comunidade. O mesmo para com a fala sobre a mulher. É firme, mas esta ainda é uma causa à qual a Igreja precisa se voltar com mais propriedade. O texto também evita entrar em questões da bioética de maneira mais forte. Ele menciona, trabalha e busca pontos positivos na Humanae Vitae, mas não os desenvolve. Ainda assim, oferece pontos de novidade e de reflexão, além do fato de convidar os teólogos da moral a novas buscas e entendimentos.

Entendo que o texto não precisa me fornecer todas as respostas, mas agora obriga, de nossa parte, a um passo a mais, isto é, de que maneira podemos somar, trazer algo novo. Para alguns, o Documento será um ponto de chegada, mas para muitos - e aí eu me incluo - é um ponto de partida; acredito que há margens para isso. Talvez até aí se possa perceber certo discernimento de Francisco. Para ele, demos um passo, mas outros devem ser dados, e, para que esses passos ocorram, a comunhão de toda a Igreja se faz necessária.    

IHU On-Line - Que avaliação geral faz de Amoris Laetitia como documento conclusivo do Sínodo sobre a família?

Cesar Kuzma - Eu vejo como um processo ainda não conclusivo. Ele trouxe novas respostas, novas chaves de entendimentos, novas provocações pastorais, mas ainda abre espaço para novos caminhos e para novas buscas. Houve uma intenção de respeitar aspectos importantes do Relatório Final e uma tentativa de articular as várias Conferências Episcopais. Percebe-se que há o tom de Francisco, desde a linguagem, a abordagem, o jeito pastoral de tratar as coisas, mas também transparece a causa sinodal, isto é, o resultado do Sínodo se fez presente e é percebido nas linhas do documento.

IHU On-Line - Qual tende a ser o impacto de Amoris Laetitia na Igreja e no pontificado de Francisco daqui para frente?

Cesar Kuzma - Amoris Laetitia reforça a questão da Alegria do Evangelho em toda a Igreja e agora, de modo especial, na intimidade da família, que, como Igreja doméstica, é chamada ao anúncio e a esta nova experiência no amor. Francisco tem um jeito pastoril de conduzir a Igreja, ele não quer estar acima, nem à frente, mas ao lado, e provoca a Igreja a esta mesma atitude: estar um ao lado do outro, pois o caminho de fé é um caminho que se percorre junto, comunitariamente, sendo a força e a esperança do outro, para o outro. Ele tenta trazer isso para o documento e em muitas de suas linhas ele consegue provocar essa reação, quando fala sobre a mãe, sobre os pais, o comparar com a casa, uma casa onde se faz experiência de Deus.

Veja, são riquezas que partem de uma experiência dele e que ele oferece à Igreja, também neste documento. Francisco não teve a preocupação de responder a tudo, há limites no documento, como também há limites no seu Pontificado. Outras leituras mais críticas e mais focadas em partes específicas vão apurar esses dados. No entanto, isso faz parte da natureza humana da Igreja, que é peregrina. Mas ele responde habilmente ao que lhe chega, recheando com docilidade a experiência do Reino, que é sempre vida e liberdade, caminho e prontidão numa fé que exige abertura.

Resultado de uma etapa

O Documento é o resultado de uma etapa, mas não o fim de um percurso. Também Francisco faz parte de um processo. E, como o próprio nome sugere, Francisco é um projeto de Igreja; e este projeto exige de cada fiel, seja ele leigo ou leiga, sacerdote ou bispo, religioso ou religiosa, uma nova atitude, um desprendimento, um abandonar-se na misericórdia de Deus e um arriscar “ousado” na sua graça.

Repito aqui o que ele falou em Aparecida, durante a JMJ: precisamos nos deixar surpreender por Deus. Trazendo isso ao texto, ao que se quis dizer sobre a família e sobre o amor, é na família e na entrega de um para com o outro que este amor acontece e se torna pleno. É no nosso jeito de ser pai, mãe e filho, em cada lugar, em cada tempo, na esperança de uma Igreja e de famílias (que são Igrejas!), que caminham e arriscam se “enlamear” na estrada da vida. O amor é um dom recebido, o que precisamos fazer é acolher e decidir amar, aprendendo e ensinando os gestos do amor.

O documento exige uma decisão, assim como o seu pontificado.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Cesar Kuzma - Sim, gostaria de reforçar uma tese que tenho defendido em outras publicações e que vi ser algo que Francisco apontou, inclusive usou isso na entrega do documento, pedindo as bênçãos da Sagrada Família: de Jesus, Maria e José. E assim ele também encerra o seu documento, com uma oração.

O iluminar pela Sagrada Família exige de nós, cristãos, um entendimento maior, pois esta família não surge perfeita, não surge plena, mas sim vulnerável. É na vulnerabilidade da família de Nazaré que Deus fez a sua morada, numa jovem menina frágil, grávida fora do casamento, e num pobre trabalhador, tido como o homem justo. Em seu tempo, esta família encontrou as portas fechadas, mas viram em Deus um olhar compassivo. Eles aceitaram e se abriram à graça, e a graça os tornou plenos. Vale a pena se ater a esse detalhe, pois vivemos num mundo e estamos numa Igreja onde muitas famílias estão machucadas e é para elas que deve valer a nossa misericórdia. Hoje, muitos Josés, Marias e muitos jovens como Jesus perambulam em nossas comunidades e nem sempre abrimos as portas.

Também, no texto, Francisco nos brinda com inúmeras passagens bíblicas, mas uma em especial, a passagem de Apocalipse 3,20, que diz: “Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo”. Acredito que esta é a resposta para os desafios apontados e para a chamada que o texto nos faz no capítulo VIII, a qual devemos discernir e acolher. Diz o texto que a caridade verdadeira é imerecida, incondicional e gratuita (n. 296). Ora, como não estar à mesa, quando o próprio Cristo nela está, quando ele próprio me convida e se faz refeição?

Por Patricia Fachin

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Misericórdia e amor. 'Amoris Laetitia' como ponto de partida e não somente de chegada. Entrevista especial com Cesar Kuzma - Instituto Humanitas Unisinos - IHU