Hidronegócio atinge a pesca artesanal. Entrevista especial com Maria José Pacheco

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16 Agosto 2012

“Percebe-se claramente que o governo brasileiro, nos seus estudos, nega o potencial da pesca artesanal no país e faz uma leitura conservadora ao incentivar o comércio econômico do setor pesqueiro, numa perspectiva de exportação”, aponta a secretária executiva nacional do Conselho Nacional dos Pescadores.

Confira a entrevista.


Da mesma forma que o agronegócio, o hidronegócio, uma das apostas comerciais do Estado brasileiro, tem gerado conflitos e afetado as populações ribeirinhas e pescadores, que sobrevivem da pesca artesanal. De acordo com a secretária executiva nacional do Conselho Nacional dos Pescadores, Maria José Pacheco, O Brasil “sempre adotou uma perspectiva conservadora desenvolvimentista no mundo da pesca e sempre investiu nas grandes empresas”. Por causa dessa postura, assegura, percebe-se hoje o “declínio da pesca” no país.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Maria José informa que o pescado está diminuindo nos rios brasileiros “por causa de múltiplos fatores, entre eles a poluição dos portos, a diminuição dos manguezais, que são berçários naturais, por conta da política governamental de investir nas empresas de carcinicultura, e a utilização de venenos nos rios e no mar”.

Maria José também comenta a atuação do Ministério da Pesca e assegura que ele “não foi constituído para favorecer a pesca artesanal, mas sim para as grandes empresas e a pesca em grande escala, numa perspectiva industrial e concentradora”. Do ponto de vista artesanal, reitera: “o Ministério tem políticas compensatórias, fragmentárias, ou seja, não se trata de uma política pública que invista no potencial produtivo das comunidades pesqueiras”.

Maria José Pacheco é graduada em Assistência Social pela Universidade Católica da Bahia. É secretária executiva nacional do Conselho Nacional dos Pescadores, onde atua com o Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais – MPP.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que define a pesca artesanal? O que é um território tradicional pesqueiro e qual é o tamanho da comunidade pesqueira artesanal no Brasil?

Maria José Pacheco –
A pesca artesanal é aquela desenvolvida pelo pescador, sozinho, com a sua família, ou com regime de parceria, ou seja, é feita pelo próprio trabalhador para garantir a sua sobrevivência e a da família. O conceito de pesca artesanal adotado pelo governo considera embarcação com arqueação bruta (AB) menor de 20, e pesca desenvolvida de forma autônoma. Nós definimos como a pesca desenvolvida pela própria comunidade, onde os conhecimentos são passados de pai para filho, de geração em geração, reunindo conhecimentos ancestrais e tradicionais. Nesse sentido, a pesca artesanal não é só uma profissão, mas também um jeito de viver e de se relacionar com a natureza; ela é um modo de vida, um trabalho livre, autônomo e coletivo. Os pescadores têm um jeito tradicional de viver e de lidar com a natureza; eles têm histórias e raízes profundas.

É difícil saber o tamanho da comunidade pesqueira artesanal no Brasil, porque o governo sempre tenta negar o número de pescadores, o valor e a importância econômica deles. De todo modo, a estimativa é de que haja mais de 1,5 milhão de trabalhadores envolvidos diretamente na pesca, sem considerar os trabalhadores indiretos, que trabalham nos mercados, nas feiras, e que vivem através da pesca.

IHU On-Line – A quantidade de peixe está diminuindo nos rios e no mar? Por quê?

Maria José Pacheco –
O pescado está diminuindo, sim, por causa de múltiplos fatores, entre eles a poluição dos portos, a diminuição dos manguezais, que são berçários naturais, por conta da política governamental de investir nas empresas de carcinicultura, e a utilização de venenos nos rios e no mar.

O Brasil sempre adotou uma perspectiva conservadora desenvolvimentista no mundo da pesca e sempre investiu nas grandes empresas. Hoje, parte considerável do declínio da pesca é atribuída à atuação irresponsável da indústria de pesca no país, que faz um arrasto criminoso e descarta grandes quantidades de espécies que não têm valor comercial.

As barragens também afetaram a pesca. No rio São Francisco, por exemplo, as barragens de Três Marias e de Sobradinho causaram extremos impactos, porque impedem a piracema e as espécies não podem se reproduzir.

IHU On-Line – Desde quando o hidronegócio está se desenvolvendo no país? Quais são os setores que mais crescem?

Maria José Pacheco –
O crescimento da aquicultura em larga escala, insustentável, tem chamado a atenção. A carcinicultura, por outro lado, está em crise, mas o governo aposta neste setor, principalmente no Nordeste. Por isso, uma das principais formas de hidronegócio no Brasil é a carcinicultura, que, além de destruir manguezais, causa impacto em várias espécies, além de extinguir outras. A carcinicultura também causa impacto nas comunidades, porque elas deixam de ter acesso ao manguezal e sofrem violência por se envolverem em conflitos pesados com as empresas de segurança que estão a serviço das indústrias da pesca. A piscicultura em grande escala tem se desenvolvido ao longo do rio São Francisco. Os impactos desse processo serão vistos no futuro.

IHU On-Line – A pesca industrial é bastante incentivada pelo Estado brasileiro?

Maria José Pacheco –
Existe uma análise da conjuntura da pesca, e alguns setores das universidades sustentam a leitura que orienta uma política governamental para o setor pesqueiro. Percebe-se claramente que o governo brasileiro, nos seus estudos, nega o potencial da pesca artesanal no país e faz uma leitura conservadora ao incentivar o comércio econômico do setor pesqueiro, numa perspectiva de exportação.

O Brasil tem 8.500 km de costa e 13% da água doce do mundo. Um número grande de populações vive em torno dessas áreas e trabalha de forma sustentável e solidária, garantindo a segurança alimentar de milhares de populações de pescadores e outros grupos associados. No entanto, a leitura feita pelo governo considera esse espaço como potencial para produção e exportação de peixes. Como a lógica de exportação precisa ser racional e de maximização da produção, ela nunca vai se adequar à produção a partir das comunidades, mas sim à acumulação, centralização e privatização de alguns grupos econômicos.

IHU On-Line – O que fazem os pescadores artesanais para preservar a pesca? Que tipo de manejo adotam?

Maria José Pacheco –
Os pescadores artesanais têm um profundo conhecimento das espécies, do seu ciclo de reprodução, do tamanho dos peixes. Então, utilizam técnicas de pesca menos agressivas, como a pesca de linha, a pesca de rede, utilizando malhas que são adequadas a determinadas regiões e espécies. Claro que também existe degradação e pesca predatória entre os pescadores, mas isso é infinitamente diferente e numa proporção muito menor. Para sanar esse problema, apostamos na educação ambiental nas comunidades.

IHU On-Line – O que ameaça as comunidades pesqueiras tradicionais? Quais são os principais projetos que impactam a vida dos pescadores e influenciam em sua atividade?

Maria José Pacheco –
As hidrelétricas e o modelo de aquicultura agressivo e insustentável são as principais ameaças, mas existem muitas outras, como o aumento dos portos e o avanço da indústria química, que têm causado bastante prejuízo. As siderúrgicas e mineradoras que existem ao longo do rio São Francisco estão poluindo os lençóis freáticos e impactando diretamente as comunidades da região. A construção do Complexo do Tapajós também tem gerado muita preocupação, porque na região há muitos pescadores. A especulação imobiliária e os projetos de turismo também têm ameaçado as comunidades de Norte a Sul do país, porque elas são expulsas de seus territórios.

Também existem as contradições. Entre elas, destaca-se o investimento em energia eólica no país. Embora essa seja considerada uma energia limpa, a expansão dos campos eólicos tem sido feita através da exclusão e expulsão de comunidades tradicionais, através do uso de violência, do impedimento do acesso dos pescadores às áreas por eles habitadas e da desapropriação dos territórios dos pescadores.

Também tem toda a questão do petróleo, e os conflitos por causa da exploração, que é feita de forma insustentável. Os pescadores da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, estão sendo impedidos de atuar na área da pesca. Por isso vemos com muita preocupação a ampliação do pré-sal. Muitos pesquisadores dizem que a exploração do pré-sal irá trazer recursos para o povo brasileiro, mas, do ponto de vista da pesca, a exploração tem gerado a exclusão dos pescadores.

IHU On-Line – Como os pescadores e pescadoras enfrentam esses projetos? Têm conseguido alguma vitória?

Maria José Pacheco –
Os pescadores tentam resistir. Um exemplo é a resistência diante da reserva extrativista do Iguape, no recôncavo baiano, onde foi implantado um polo industrial naval no lugar de uma das áreas mais preservadas da Bahia de Todos os Santos. Por causa do complexo industrial, a perspectiva é destruir milhares de hectares de manguezais e fazer uma dragagem extremamente impactadora em uma região onde vivem mais de 20 mil pescadores. Os pescadores estão resistindo e buscando parceiros, tais como universidades, movimentos sociais, e o Ministério Público. Ainda que o contexto da resistência seja difícil, há comunidades de pescadores que resistem em várias regiões do Brasil.

IHU On-Line – Qual é avaliação do Movimento sobre a criação e o trabalho desenvolvido pelo Ministério da Pesca?

Maria José Pacheco –
Nossa avaliação é de que o Ministério da Pesca não foi constituído para favorecer a pesca artesanal, mas sim para as grandes empresas e a pesca em grande escala, numa perspectiva industrial e concentradora. O Ministério da Pesca se estrutura principalmente para atender a esse interesse e pouco investe em uma política que desenvolva os trabalhadores que vivem da pesca. Do ponto de vista artesanal, o Ministério tem políticas compensatórias, fragmentárias, ou seja, não se trata de uma política pública, que invista no potencial produtivo das comunidades pesqueiras.

Na tentativa de desregular a legislação que protege as comunidades pesqueiras, temos informações de que o Ministério atuou tentando influenciar na revisão do Código Florestal, no sentido de identificar os “apicuns”, que são áreas dos ecossistemas de manguezais importantes para a reprodução das espécies. O Ministério atuou para que essas áreas não fossem classificadas como áreas do ecossistema manguezal e para que deixassem de ser áreas de proteção permanente, o que facilitaria a exploração e a atividade de cafiniculltura no local. O Ministério também tem feito legislações para intervir no processo de regulamentação da privatização das águas e para criminalizar os pescadores, afirmando que há pessoas que não trabalham realmente com a pesca.

IHU On-Line – O que é a Campanha Nacional pela Regularização dos Territórios das Comunidades Tradicionais Pesqueiras?

Maria José Pacheco –
Os pescadores querem uma lei semelhante a dos indígenas e quilombolas, porque são comunidades tradicionais. De acordo com o artigo 215 da Constituição Federal, o Brasil tem o compromisso de garantir todas as formas culturais que coexistem no país. Os pescadores são um grupo próprio, com uma tradição cultural e um jeito de fazer próprio. Portanto, nesse sentido o Brasil tem o compromisso de manter esse patrimônio cultural.

O governo assinou a Convenção 169 da OIT, que garante os direitos das comunidades tribais, tradicionais. Entretanto, ainda não existe uma lei específica que garanta o direito das comunidades ao território, e elas ficam à mercê de empreendimentos, de fazendeiros e empresas que querem retirá-las das suas áreas. Há uma campanha por uma lei de iniciativa popular que visa juntar mais de 1 milhão e 385 mil assinaturas para que o Congresso Nacional reconheça e aprove uma lei que garanta a permanência das comunidades nos territórios onde estão e de forma sustentável.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Maria José Pacheco –
Para a sociedade brasileira, os pescadores são um grupo peculiar, pois estão presentes na cultura, no imaginário, na música e na soberania alimentar do Brasil. A pesca absorveu boa parte dos negros ex-escravos, comunidades indígenas e comunidades brancas, que são importantes pela sua presença e contribuição social, política e econômica.

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