A transição energética, muito além do lítio. Entrevista com Thea Riofrancos

O projeto Cauchari Olaroz no norte da Argentina, uma nova fronteira para a extração de lítio na América do Sul (Foto: Patricio Alvarez | Governo de Jujuy)

01 Setembro 2023

Estudo mostra: aposta no carro elétrico repete fetiche da mobilidade individual, e tem enorme custo ecológico no Sul global. Há outro via: transporte público digno, para reduzir emissões, construir novas cidades e enfrentar segregação urbana.

A entrevista com Thea Riofrancos é de Alyssa Battistoni, publicada por Nuso e reproduzida por Outras Palavras, 28-08-2023. A tradução é de Rôney Rodrigues.

Após anos de negação total das mudanças climáticas e de intransigência política, o desenvolvimento das energias renováveis está finalmente em curso. Quando se trata de transportes – a principal fonte de emissões de carbono nos Estados Unidos – a estratégia de descarbonização centrou-se principalmente na substituição de carros movidos a gasolina por veículos elétricos recarregáveis. A Lei de Redução da Inflação fornece milhares de milhões de dólares em subsídios tanto aos fabricantes como aos usuários de veículos elétricos, incluindo um crédito fiscal de 7.500 dólares para a compra de um novo veículo elétrico fabricado nos EUA. O projeto de lei de infraestruturas aprovado no final de 2021 incluía 5 bilhões de dólares para ajudar os estados da União a construir uma rede de estações de recarga para veículos elétricos. Nova York e Califórnia anunciaram que, a partir de 2035, será proibida a venda de veículos com motores de combustão interna. Metade dos anúncios de carros exibidos durante o Superbowl deste ano anunciavam veículos elétricos. Estima-se que, até 2030, esse tipo de automóveis representará metade das vendas automotivas nos EUA.

Para que a nossa dependência do transporte privado permaneça como é hoje, todo o resto terá de mudar. Já existem preocupações sobre a escassez de “minerais críticos” necessários para fabricar baterias e outras tecnologias renováveis. Com base nos atuais padrões de consumo, por exemplo, até 2050, a demanda dos EUA por lítio utilizado em baterias exigiria três vezes a oferta existente no mundo, que provém principalmente da Austrália, da América Latina e da China. Antecipando o aumento da demanda, uma série de novas operações mineiras foi lançada em todo o mundo, e protestos também foram desencadeados por aqueles que temem que as minas impactem os ecossistemas, contaminem as fontes de água, gerem resíduos tóxicos e impactem os modos de vida locais.

Que implicações tem a atual trajetória de “transição de energia verde” para a justiça ambiental global? Que outras opções existem? É possível reduzir rapidamente as emissões de dióxido de carbono (CO2) e, ao mesmo tempo, minimizar a extração e manter – ou mesmo aumentar – a capacidade das pessoas de circularem livremente e em segurança?


Thea Riofrancos (Foto: Reprodução)

Um novo relatório do think tank Climate+Community Project apresenta dados ligados a diferentes visões de um futuro ecológico. Um cenário em que os EUA reduzam a sua dependência dos automóveis, melhorando as opções de transporte público, a densidade urbana e a capacidade de caminhar, poderia significar uma diminuição de 66% na procura de lítio, em comparação com o modelo atual. A simples redução do tamanho dos veículos e baterias estadunidenses poderia reduzir o uso de lítio em 42% até 2050.

Em outras palavras, as decisões que os estadunidenses tomarem em relação ao transporte interno, habitação e o desenvolvimento têm impacto global. Nesta entrevista, a principal autora do relatório, a cientista política Thea Riofrancos, explica as implicações que os resultados do estudo têm para a política climática e ambiental dos EUA e do mundo.

Riofrancos é professora associada de Ciência Política no Providence College e bolsista da Andrew Carnegie Fellowship (2020-2022). Ela é autora de Resource Radicals: From Petro-Nationalism to Post-Extractivism in Ecuador [Radicais dos recursos. Do petronacionalismo ao pós-extrativismo no Equador] e coautora de Planet to Win: Why We Need a Green New Deal [Um planeta para vencer. Por que precisamos de um Green New Deal]. Atualmente ele está escrevendo Extração: As Fronteiras do Capitalismo Verde.

Eis a entrevista.

Seu livro Resource Radicals, publicado em 2020, descreve os dilemas que surgiram em torno das indústrias extrativas no Equador, especificamente entre movimentos de esquerda que consideram o petróleo e outros recursos naturais como fontes de riqueza nacional, e um movimento anti-extrativista que critica os impactos ambientais e sociais associados à exploração desses recursos. A maioria das pessoas provavelmente compreende as questões ambientais ligadas à extração de petróleo, mas com o crescimento das tecnologias renováveis, também temos visto as críticas ao “extrativismo verde” intensificarem-se. Como é esse tipo de extração e quais as diferenças entre a dinâmica política deste tipo de atividade e aquela que você estudou em relação ao petróleo? É possível que o capitalismo seja realmente “verde”?

Já ficou claro que combater as alterações climáticas significa deixar para trás a extração de combustíveis fósseis e expandir os setores extrativos que fornecem insumos para “tecnologias verdes”. Existem muitos dilemas e conflitos sociais em torno desta transição. Cabe à esquerda empenhada nesta luta alinhar os objetivos de combater as mudanças climáticas e garantir, ao mesmo tempo, justiça em cada nó da cadeia de abastecimento das tecnologias utilizadas nesta luta. A mineração em grande escala é um setor econômico importante em todo o mundo; fornece as matérias-primas necessárias para inúmeras tecnologias, bens de uso cotidiano e infraestruturas. O cobre, por exemplo, é uma grande indústria com muitos usos finais diferentes. Mas crescerá ainda mais no futuro, uma vez que o cobre é essencial para o cabeado, e o cabeado é essencial para a eletrificação, incluindo a dos veículos eléctricos, das suas estações de carregamento e das linhas de transmissão que ligam essas estações às redes de abastecimento. As necessidades de água para a extração de cobre também aumentarão, num mundo com crescente escassez deste recurso. A mineração também tem um dos piores históricos de violações de direitos humanos entre os setores econômicos. Na América Latina, os ativistas que participam em protestos contra as operações das mineradoras são frequentemente mortos pelas forças de segurança públicas e privadas. No início deste ano, vários ativistas mexicanos desapareceram, provavelmente porque estavam envolvidos em atividades anti-mineração.

Os produtos finais obtidos a partir dos metais industriais mais importantes são utilizados por uma percentagem muito pequena da população mundial. Se o produto final do mineral representa um benefício ambiental, social e econômico, as comunidades que são imediatamente afetadas pela sua extração não são as que o recebem. As minas geram alguns empregos, o que é importante, especialmente em comunidades rurais economicamente vulneráveis. Mas esses postos de trabalho são sazonais, transitórios, mal remunerados e sujeitos às volatilidades do mercado de commodities. Durante a pandemia, ocorreram demissões em massa à medida que os mercados de combustíveis, petróleo e carvão colapsaram.

Os setores mineiros sofrerão alguma mudança quando estes metais forem utilizados em tecnologias e infraestruturas para darem suporte a um sistema de energia renovável? Não há expectativas de uma transformação profunda, mas a intersecção entre a extração e as tecnologias mais ecológicas está exercendo uma nova pressão sobre a indústria mineira. Isto está levando o público a compreender que as empresas mineiras transnacionais não são as salvadoras do meio ambiente; muitas dessas empresas, por exemplo, ainda possuem ativos vinculados ao carvão.

Embora as mineradoras estejam habituadas ao escrutínio dos ativistas anti-mineração, estão menos habituadas à pressão da outra parte da cadeia de abastecimento, sejam os seus investidores que anunciaram o seu compromisso com os princípios ambientais, sociais e de governança corporativa, ou consumidores verdes. As mineradoras e, em certa medida, a indústria automobilísticas sentem-se cercadas de críticas provenientes de todas as frentes.

Você e outros pesquisadores do Climate and Community Project publicaram um relatório argumentando que é possível descarbonizar o transporte e, ao mesmo tempo, aumentar a mobilidade com menos extração de lítio. Esta abordagem é normalmente enquadrada como um trilema, no qual é possível alcançar dois de três objetivos – descarbonizar, aumentar os transportes e a mobilidade e reduzir a mineração –, mas nunca todos os três. Dizem-nos frequentemente que, como as mudanças climáticas são tão prementes, a descarbonização com a maior celeridade possível deve ser uma prioridade e, se o custo for o aumento da mineração, que assim seja. Em vez disso, vocês argumentam que existe uma forma de ser ao mesmo tempo pragmático e justo na descarbonização dos transportes, a fonte número um de emissões de carbono nos EUA atualmente. O que seria esse caminho?

O relatório não diz que não existe trilema, mas sim que pensar sobre estes três objetivos em conjunto permite-nos reduzir os trade-offs entre eles. Muitas vezes, as soluções propostas para melhorar os setores extrativos centram-se nos locais de extração. Num outro sentido, porém, a extração não começa na mina. As decisões que impulsionam a extração ocorrem em lugares muito mais profundos na cadeia de abastecimento. Penso nos problemas e danos da extração como produtos de decisões tomadas em Wall Street e em Pequim, em Washington, DC e em Bruxelas, onde os governos, as políticas públicas e, em teoria, as maiorias democráticas têm um papel para determinar o futuro da transição energética. Da mesma forma, as intervenções que poderiam reduzir a mineração estão ligadas às decisões como tomar um ônibus ou usar carro. Pode parecer que estas decisões não estão diretamente relacionadas com o que está acontecendo no deserto do Atacama do Chile, onde tem origem um quarto do lítio mundial, mas estão.

Durante muito tempo, ativistas ambientais progressistas e até radicais apresentaram o futuro como uma opção binária: manter o status quo ou eletrificar tudo e passar às energias renováveis. Existem boas razões para colocar a situação nestes termos, porque há muita coisa em jogo nessas escolhas básicas. Mas, pouco a pouco, as maiores economias têm-se mostrado dispostas a abandonar os combustíveis fósseis como principal fonte de energia. Não devemos subestimar a necessidade de confrontar política e economicamente a indústria dos combustíveis fósseis, mas uma vez que estamos no caminho da transição energética, torna-se claro que há muitas transições energéticas possíveis. Tão crítica como a escolha entre o capitalismo fóssil e o capitalismo verde é a escolha entre o capitalismo verde não regulamentado ou um capitalismo verde mais socialmente progressista ou a social-democracia verde ou o ecossocialismo. Diferentes lutas, diferentes conflitos e diferentes resoluções provisórias colocarão as sociedades em caminhos diferentes rumo à transição energética.

O nosso relatório aborda apenas um setor, o dos transportes, e nem sequer considera a possibilidade de não o eletrificar. (Adoraria ver relatórios semelhantes sobre outros setores da economia que também precisam de ser descarbonizados, bem como outros conjuntos de cadeias de abastecimento e insumos materiais, juntamente com relatórios que estimem a rapidez com que alcançaremos a descarbonização total.) Partimos do pressuposto de um futuro eletrificado, com 100% de emissões zero até 2050, e delineamos quatro cenários diferentes. Um deles é basicamente o atual, mas eletrificado. Os demais tratam mais do setor de transportes e questionam a dependência do automóvel de forma cada vez mais direta. No cenário mais ambicioso, chegaremos a uma sociedade em que a posse e utilização de automóveis é muito menor, a densidade é maior e a expansão urbana é menor.

No primeiro cenário, substituímos todos os automóveis com motor de combustão interna por um veículo elétrico e adicionamos mais veículos devido ao crescimento econômico e demográfico. Não modificamos as autoestradas, a expansão urbana ou o fato de os estadunidenses terem de possuir um carro para participarem plenamente na sociedade. Em seguida, começamos a introduzir mudanças: o que aconteceria se uma proporção maior de estadunidenses tomassem ônibus, caminhassem ou andasse de bicicleta em vez de dirigir carros? O que aconteceria se menos estadunidenses possuíssem automóveis? O que aconteceria se as nossas regiões metropolitanas fossem um pouco mais densas? Começamos a construir estes mundos diferentes e vemos que existem diferenças significativas no volume de matérias-primas – no caso deste relatório, o lítio – necessárias para abastecer cada um desses futuros. Existem muitas bifurcações possíveis: poderíamos ainda estar dependentes do automóvel, mas ter carros menos gigantescos, por exemplo, e isso faria uma enorme diferença em termos de tamanho da bateria e procura de lítio. Todas estas intervenções políticas e de investimento pesam enormemente em relação à quantidade de recursos necessários para atingir a meta de emissões zero.

O relatório aponta que “o volume de extração não é algo dado”, porque existe a possibilidade de adaptar modos de transporte menos intensivos em recursos e que exigiriam menos extração. Mas também argumenta que a mera utilização de termos como “minerais críticos” escassos pode alimentar uma corrida ao desenvolvimento da mineração e de outras formas de extração. Os modelos podem parecer altamente técnicos e enfadonhos, mas você argumenta que eles afetam a forma como as pessoas agem no presente e, portanto, determinam o futuro.

Uma questão que me interessa particularmente é até que ponto os modelos e projeções têm consequências políticas. A esquerda gera muito poucos modelos e prognósticos próprios. Isso não significa que tenhamos que viver numa realidade alternativa ou ter modelos baseados em números diferentes, mas precisamos saber como eles são construídos. Como você define uma variável? Quais são suas fontes de dados? Estes pressupostos não são alheios aos locais institucionais onde se originam e, em alguns casos, às prerrogativas financeiras ou políticas do órgão ou organização que elaboram o modelo, seja a Organização das Nações Unidas (ONU), o Banco Mundial, empresas de commodities e de análises do setor privado ou da Agência Internacional de Energia. A pergunta que sempre formulam é: “Como podemos mudar o mínimo possível?” Talvez isto seja uma prova de quão hegemônica é a cultura automóvel ou de quão reticentes são os responsáveis de formular políticas, funcionários e burocratas de agências de elite. Seja devido aos seus antolhos que os impedem de fazer certas perguntas ou por que eles queiram preservar tanto quanto possível o status quo, o resultado final é que os modelos existentes de requerimento de matérias-primas são de pouca utilidade se o objetivo for reduzir os danos infligidos pela mineração. O que todos eles estão basicamente dizendo é: “precisamos de muito minério, precisamos dele logo e precisamos dele em todos os lugares onde pudermos obtê-lo”. Não se pensa no planeamento holístico, no que é realmente necessário ou na melhor utilização das diferentes paisagens geográficas.

Quando digo que a esquerda precisa dos seus próprios modelos, digo-o porque os modelos são uma ferramenta política, influenciada por ideologias e determinada e financiada por interesses econômicos que beneficiam suas próprias conclusões. Não devemos alterar os fatos ou os números, mas devemos colocar questões diferentes, fazer suposições diferentes, identificar parâmetros claros e mostrar, empiricamente, que outros futuros são possíveis e têm um peso quantitativo que o respalda.

Os EUA estão tão disseminados no seu território que melhorar o transporte coletivo e densificar o entorno construído parece uma tarefa simples, mas, ao mesmo tempo, são aspectos tremendamente difíceis de modificar. Grande parte da nossa infraestrutura é orientada para o automóvel, o que cria uma sensação de dependência da trajetória (path dependency).A pandemia só agravou esta situação: o uso do transporte público diminuiu e a frota de veículos cresceu. No entanto, o relatório defende que os transportes são construídos através de políticas e medidas públicas, sendo de fato possível fazer algumas intervenções. Que histórias de sucesso podem servir de exemplo? Por onde podemos começar?

Nos EUA, o problema não é apenas político e econômico, mas também social, cultural e de gênero. O outro lado de todos os problemas com fatores numerosos e multifacetados, contudo, é que existem muitos espaços que podem ser explorados para minimizá-los, enfraquecê-los ou desmantelá-los. A dependência do automóvel não é algo isolado: é uma miríade de decisões tomadas por investidores, gestores políticos, consumidores, moradores de subúrbios em diversos níveis. Alguns dos espaços onde essas decisões são tomadas estão mais abertos ao desafio democrático e às prioridades progressistas do que outros. Portanto, precisamos pensar estrategicamente. Há motivos para ter esperança, em parte porque, pelo menos por enquanto, porque temos um poder executivo democrata. Embora eu tenha muitas críticas a Joe Biden, existem algumas pessoas valiosas em organismos que podem ter peso. Poderia ser desenvolvido um pensamento criativo e tecnocrático sobre como implementar parâmetros para produzir uma bateria mais eficiente e com menor consumo de recursos.

Em outro aspecto, experiências interessantes estão sendo realizadas nos níveis municipal e estadual para incentivar o uso do transporte coletivo e desencorajar o uso do automóvel. Denver subsidiou bicicletas elétricas e o experimento funcionou: as pessoas as compraram e usaram menos seus carros para fazer compras ou para se deslocar pela cidade, o que de outra forma exigiria um carro e estacionamento. Moro em Providence onde, como em outras cidades do país, o governo está tornando o transporte público gratuito. Além do mais, a crise habitacional obriga-nos a pensar em questões como a acessibilidade, a densidade e os longos deslocamentos entre casa e trabalho, especialmente para a classe trabalhadora. Zoneamento menos restritivo, aumento da densidade e construção de casas mais ecológicas seriam mudanças positivas. Quanto menores as distâncias que as pessoas devem percorrer, menos lítio será exigido pelo sistema de transporte.

Também li alguns artigos interessantes sobre cidades que querem reduzir o domínio dos lugares de estacionamento nas suas paisagens urbanas. Estas ideias resultam de preocupações com a habitação e o acesso ao transporte, e não com as matérias-primas ou os danos da extração. Mas independentemente da motivação, qualquer coisa que nos aproxime da acessibilidade, do aumento da densidade urbana, do acesso ao transporte e da equidade no transporte é boa por uma série de razões, incluindo a redução da poluição atmosférica, o aumento da igualdade e a diminuição da segregação. Também é positivo globalmente em termos de justiça social e ambiental em toda a cadeia de abastecimento.

Voltemos ao tema da oferta. O relatório fala da realocação de processos dentro das fronteiras nacionais (onhoring), ou seja, da proposta de desenvolvimento de novas minas de lítio no Norte global, em particular, em Nevada, bem como em Estados europeus, como Portugal. O trabalho sobre o extrativismo centra-se frequentemente no fato de o Sul global ser tratado como uma fonte de recursos naturais de baixo valor que o Norte global utiliza para produzir bens manufaturados de valor agregado. O processo de realocação dentro das fronteiras nacionais altera um pouco esta dinâmica, mas a distribuição desigual dos benefícios obtidos a partir dos recursos extraídos pode persistir mesmo quando os recursos são extraídos no mesmo país onde os bens são produzidos. O que significa a realocação dentro das fronteiras nacionais em termos de extrativismo, cadeias de abastecimento e geopolítica ambiental?

Vejo a possibilidade de ocorrerem duas mudanças. Um deles é o desejo dos governos de países ricos de deslocar a mineração de minerais críticos para o seu território, numa corrida para alcançar o domínio ambiental e a segurança da cadeia de abastecimento. Haverá cada vez mais projetos de mineração na Europa, Canadá, EUA e outros locais próximos de onde ocorre o consumo final. Em segundo lugar, estamos assistindo a uma reintegração das cadeias de suprimentos. É um retorno ao modelo fordista, em que as empresas automotivas incorporaram a extração de matérias-primas à empresa para contar com um acesso territorialmente seguro. Estas iniciativas redesenham a geografia da extração e da produção e têm certas consequências para o ativismo em torno das cadeias de abastecimento.

O deslocamento da extração dentro das fronteiras nacionais é uma ideia que surgiu nos círculos de decisão política – tanto entre os falcões da segurança como entre pensadores econômicos heterodoxos – há mais de uma década. Começou a tomar forma durante o boom das commodities, que durou aproximadamente de 2000 a 2014, e também coincidiu com a ascensão de novos centros industriais e políticas industriais chinesas que garantiram cadeias de suprimentos completas de matérias-primas. Esta foi uma mudança no pensamento sobre a organização da cadeia de abastecimento que vimos durante o período de hegemonia neoliberal. As elites políticas nos EUA e na União Europeia começaram a considerar políticas industriais que garantissem o acesso às matérias-primas e repensaram a cadeia de abastecimento existente, espalhada por todo o mundo. Mas essas ideias permaneceram, na sua maior parte, confinadas a think tanks e a certos redutos do Estado regulador, sem muito apelo político.

Depois chegou a pandemia e o início da transição energética. As cadeias de abastecimento ocuparam o centro das atenções pela primeira vez. De repente, tornou-se moda a ideia de que a realocação dentro das fronteiras nacionais e a política industrial eram meios para revigorar a manufatura, ajudar a resolver alguns problemas políticos causados pela desindustrialização e criar uma economia menos volátil tornou uma moda. A relocação fronteira adentro e a política industrial tornaram-se populares no Ocidente. As elites de todo o espectro político se alinharam com o onshoring, seja na mineração, na produção ou em ambos. Isto pareceu resolver uma variedade de problemas políticos, geopolíticos, econômicos e sociais. Hoje existem múltiplas leis nos EUA que incentivam diretamente a extração de minerais críticos dentro das jurisdições dos governos do Norte global.

Quais as consequências no combate às mudanças climáticas, na produção de tecnologias verdes e na justiça social e ambiental?

Há uma linha de pensamento entre alguns ativistas das mudanças climáticas nos EUA de que a onshore é positiva por uma série de razões. Uma é que queremos incentivar a produção de tecnologias verdes, porque precisamos delas para fazer a transição para as energias renováveis. Outra é que apoiar a extração no Norte global é uma forma de redirecionar a desigualdade da extração. Em vez de importar metais de uma zona de conflito longínqua, estamos a extraí-los no nosso quintal e a pagar os custos ambientais.

Não há dúvida de que as políticas públicas e o investimento público devem desempenhar um papel para garantir que produzimos as tecnologias necessárias para combater as mudanças climáticas. Também estou plenamente consciente de que a geografia da extração é extremamente desigual e, portanto, vale a pena pensar em como redistribuir os benefícios e os prejuízos da extração. O que me parece errado, contudo, é acreditar que a abertura de uma mina no Nevada promove a causa da justiça global.

É importante prestar atenção aos locais onde as minas estão a ser abertas, aos seus impactos ambientais e ao “nós” que está sendo afetado. O proprietário da Tesla no Vale do Silício não é afetado pela mineração em Nevada. Estamos falando de periferias rurais ou interiores que durante anos serviram como locais de extração e sofreram formas extremas de danos ambientais. Consideremos, por exemplo, os testes nucleares e a mineração de urânio realizados em Nevada. Um dos locais de mineração que estudamos no relatório foi o local de um massacre de povos originários por soldados estadunidenses. Existem camadas de história, de danos e de sacrifícios que não são diferentes das formas de violência perpetradas contra o Sul global. Ativistas de Portugal, Espanha, Nevada, Argentina e Chile veem pontos em comum, não apenas em termos dos danos causados pela extração, mas também em quem – pessoas marginalizadas e, muitas vezes, embora nem sempre, povos originários – paga os custos ambientais e sociais. As fronteiras entre o Norte e o Sul globais tornam-se um pouco mais difíceis de manter quando falamos de dois grupos de povos originários das Américas que sofreram os danos da mineração ao longo dos séculos.

No mínimo, deveríamos ser honestos sobre quais as empresas que estão se enriquecendo e sendo subsidiadas por estas novas formas de parcerias público-privadas, quais as comunidades que estão pagando o preço e quais são as relações de poder entre esses atores.

Em Resource Radicals, você pergunta como os indivíduos podem se organizar em torno da expropriação de terras e dos danos socioambientais, enquanto constroem uma coalizão massiva que pode se beneficiar de programas públicos financiados por recursos. O relatório adota uma abordagem semelhante ao pensar nos lados da produção e do consumo de energia em conjunto, e não separadamente. Qual é a sua visão ideal de uma coligação destes diferentes atores, aqueles que suportam o fardo da extração, aqueles que precisam de maior mobilidade e aqueles que podem se beneficiar de uma transição para as energias renováveis, seja como resultado de empregos ou rendimentos?

O fardo da organização para se proteger contra os danos ambientais e sociais recai desproporcionalmente sobre aqueles que são diretamente afetados. Mas estas mercadorias afetam o nervo da economia global, e mesmo aqueles que não estão diretamente envolvidos com elas são afetados ou implicados. Devemos pensar de forma mais ampla sobre os locais de luta e protesto, e sobre as táticas, ferramentas e intervenções políticas disponíveis para desgastar o edifício da extração.

No passado, investiguei as condições sob as quais os moradores do campo dependentes da terra poderiam aliar-se aos da cidade e a setores da classe trabalhadora para combater a extração. Hoje me pergunto sobre as condições sob as quais é possível formar uma aliança política entre os usuários dos transportes públicos, as comunidades multirraciais da classe trabalhadora estadunidense e aqueles que sofrem os danos da extração, sejam eles em Nevada, Portugal, Chile ou Argentina. Quer estes grupos estabeleçam alianças explícitas entre si ou não, acredito que as suas ações podem funcionar em conjunto. Se os movimentos sociais dos EUA que lutam por habitação a preços acessíveis, densidade verde e melhor acesso aos transportes públicos se mobilizarem e avançarem ao mesmo tempo que os ativistas na linha da frente tornaram as coisas mais difíceis para as mineradoras, penso que se pode considerar que uma coligação da cadeia de abastecimento existe, quer estejam ou não em uma aliança explícita entre si. Todas estas ações conduzem-nos a uma forma de transição energética menos intensiva na utilização de recursos e mais igualitária e democrática. Parece-me menos importante que os movimentos sociais e os atores envolvidos estejam explicitamente aliados entre si, e mais relevante, em vez disso, que estejamos aguçando o nosso olhar e as nossas táticas em relação à cadeia de abastecimento, o substrato material da economia capitalista e as infraestruturas que estamos construindo para avançarmos em direção a um sistema de energia renovável.

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