Conflitos ambientais no Brasil: a Retomada Indígena da Flona Canela. Artigo de Lara Ely

Floresta Nacional de Canela guarda um sítio arqueológico que contém artefatos e vestígios da presença de Kaingangs na região

Indígenas da Retomada Indígena da Flona Canela protestam contra o Marco Temporal no centro da cidade, com um dos principais cartões postais da cidade ao fundo (Catedral de Canela). | Foto: Reprodução/Página do Facebook da Retomada Kaingang Canela

02 Agosto 2023

"A raiz do conflito surge a partir da manifestação do interesse de concessão privada pelo poder público, e posteriormente o embargo pela Justiça mediante a presença da comunidade indígena no local. Outro fator que pesa para corroborar o conflito é a especulação imobiliária do entorno, devido ao interesse para construção de hotéis e condomínios de luxo. Influencia sobre o tema, ainda, fatores como o sucateamento da gestão pública das Flonas pelo Ibama".

O artigo é de Lara Ely, doutoranda e mestre em Comunicação Social.

Eis o artigo. 

O Brasil é um país conhecido por sua vasta sociodiversidade, além das riquezas naturais. Enfrenta, apesar disso, uma série de conflitos socioambientais que

desafiam a sustentabilidade das relações etnico-raciais. A exploração desenfreada da natureza e consequente degradação de ecossistemas naturais têm um impacto significativo na conservação das culturas ancestrais e na qualidade de vida das comunidades ameaçadas.

A disputa pela terra - junto aos grandes projetos de desenvolvimento, construção de hidrelétricas e parques eólicos, grilagem, mineração e expansão da fronteira agropecuária - figura como um dos principais conflitos ambientais da atualidade. Para refletir sobre suas causas e consequências, além de pensar caminhos para resolução, o presente artigo enfoca o caso da retomada indígena na Floresta Nacional de Canela (Flona).

Embora possa ser remetido a algo do passado, o conflito entre civilizações marca as relações entre múltiplos atores sociais na contemporaneidade. É a partir da denúncia de grupos, coletivos e movimentos organizados que os impasses ganham visibilidade. O que se tem observado é que sua exposição e denúncia parte de quilombolas, indígenas, trabalhadores rurais e sindicalistas, cuja principal reivindicação é a consolidação de direitos.

De acordo com o artigo 231 da Constituição Federal de de 1988, os povos indígenas detêm o direito originário e o usufruto sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Em 2023, o Projeto de Lei 490, de 2007, sobre o Marco Temporal, foi aprovado com o intuito de discordar das reivindicações dos povos originários. A partir desta ação, apenas terão direitos aqueles que já as ocupassem no marco do dia 5 de outubro de 1988, o dia da promulgação da Constituição Federal.

Dados do último Censo realizado pelo Instituto Brasiliero de Geografia e Estatística (IBGE), demonstram que, em 2010, 897 mil indígenas viviam no Brasil, com 305 etnias e 274 línguas diferentes. Destes, aproximadamente 517 mil estavam distribuídos pelas 688 terras indígenas reconhecidas. Haviam, no entanto, grupos indígenas não-contatados e também grupos pleiteando o reconhecimento de sua condição junto à instituição indigenista Fundação Nacional do Índio (FUNAI). No Rio Grande do Sul, em 2010 viviam 18,5 mil indígenas de grupos étnicos Guarani, Mbia Guarani, Kaingang e mistos (Atlas Socioeconômico do Rio Grande do Sul, 2020).

Mapa das Terras Indígenas no RS (Fonte: Atlas Socioeconômico do Rio Grande do Sul | Atualizado em 2022)

O impasse em relação às demarcações de Terras Indígenas tem dado margem a diversos conflitos ao redor do país - a maior parte deles em relação à terra, como, por exemplo, na Bahia (etnia pataxó) e Mato Grosso do Sul (etnia guarani-kaiowá). No Rio Grande do Sul, há dezenas de comunidades que passam pela mesma situação: o Estado possui em torno de 140 terras indígenas. Destas, a metade se encontra nas mais diversas fases conforme procedimento demarcatório, isto é, “Em estudo”, “Declarada”, “Delimitada”, “Homologada” e “Regularizada”. A maioria situa-se na área de domínio da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica.

Considerando a relativa paralisação dos processos de demarcação de terras indígenas por parte do Governo Federal, é pertinente compreender as dinâmicas territoriais indígenas existentes no Rio Grande do Sul, a fim de subsidiar a formulação de políticas públicas locais/regionais voltadas ao acolhimento e bem viver dos coletivos indígenas. Em sua recente dissertação de mestrado na UFRGS sobre o tema, o pesquisador Fernando Ernesto Baggio Di Sopra ocupou-se da sistematização dos principais fluxos territoriais dos indígenas no RS, os quais poderão ser utilizados pelo poder público para projetar espacialmente as migrações tradicionais dos coletivos indígenas. Outro possível benefício decorrente desta publicação foi o debate sobre a tese do Marco Temporal, cuja argumentação jurídica desconsidera os processos de expropriação colonial de grande parte das terras indígenas atualmente reivindicadas em solo brasileiro.

Partindo do pressuposto de que cada territorialização indígena é única, constituída somente por indivíduos pertencentes a um povo indígena singular, ocorrendo em um determinado contexto histórico e geográfico, pode-se então supor que a referida regra admite exceções, feito nas oportunidades em que dois ou mais coletivos indígenas, pertencentes a distintas etnias, apropriem-se de territórios próximos, inseridos num mesmo contexto socioeconômico e fundiário, como no caso das recentes retomadas das Florestas Nacionais de Canela/RS e de São Francisco de Paula/RS. “Nestes casos, pode haver convergência nas estratégias territoriais utilizadas por coletivos indígenas para retomar a posse de seus territórios ancestrais, fortalecendo-se mutuamente pela utilização das redes de apoio comuns a ambos”, refere o autor.

Mapa da Flona de São Francisco de Paula (Fonte: Reserch Gate | CC)

Delegar esses conflitos ao estado pode representar uma aceitação da não-resolução dos mesmos, além da perpetuação da marginalização dos povos originários ao longo do tempo. Como retratou Binkowski (2018), em agosto de 2016, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), vinculado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, apresentou relatório ao então ministro da justiça e à relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o tema. No documento, diversos casos de violação dos direitos humanos contra os povos indígenas da região norte do Rio Grande do Sul são relatados, como paralisação dos processos de regularização fundiária das terras indígenas, ameaças contra lideranças indígenas, segregação em escolas, desassistência à saúde e levantes organizados contra aldeias indígenas visando sua remoção. O relatório aponta que essas violências são consequência da omissão governamental na conclusão dos processos de regularização das terras indígenas. Daí a necessidade de pensar outras soluções e caminhos para a questão territorial.

De acordo com a autora, “os Kaigang afirmam que sua existência foi atestada em laudos antropológicos através de marcos territoriais como ocas, árvores centenárias, passagens de comunicação nas matas e rios ligando aldeias”. Binkowski reforça que uma diversidade de grupos sociais é submetida a processos de desterritorialização ao tempo em que, paradoxalmente, pela perda dos meios materiais de sua existência, são transformados em público-alvo dos programas de transferência de renda. Outros efeitos das políticas desenvolvimentistas, segundo a autora, remetem a retrocessos nos sistemas regulatórios e ao aumento da violência com tais populações.

Zhouri e Lachefski (2019) analisam os conflitos envolvendo meio ambiente, povos indígenas e comunidades tradicionais no contexto da "era do desenvolvimentismo" introduzida pelo governo de centro-esquerda no Brasil entre 2003-2016. Os autores sublinham as visões eurocêntricas subjacentes às estratégias desenvolvimentistas que entendem as comunidades tradicionais como sendo meramente pobres rurais a serem integradas aos mercados urbanos de trabalho. A luta desses grupos pela autonomia e pelas respostas políticas que ameaçam seus direitos constitucionais, bem como a sociobiodiversidade brasileira, revela uma complexa "questão territorial" compreendendo os metabolismos territoriais urbano-capitalistas e não urbanos a desafiar as expectativas centradas em uma luta unificada de classe (Zhouri e Lachefski, 2019).

Histórico da retomada kaingang na Flona

O Parque da Floresta Nacional de Canela - onde indígenas das etnias Kaingang e Xokleng reivindicam a posse de terras ancestrais - fica situado em uma das regiões mais importantes para o turismo no estado, às margens da ERS-235, em uma área de 557 hectares, com altitudes que variam de 740 a 840 metros. Junto com Gramado, Canela recebe cerca de 9 milhões de turistas ao ano, gerando uma riqueza de, em média, R$1,5 bilhão ao ano para a economia local (dados do Sebrae, 2023). Segundo a Associação de Parques e Atrações da Serra Gaúcha (APASG), esta é a região com a maior concentração de parques da América Latina, o que contribui para aumentar o número de visitantes e, consequentemente, a ocupação dos hotéis. Atrações como o Parque do Caracol, Mundo a Vapor, Museu dos Beatles, Alpen Park e Parque das Sequóias são vizinhos à Floresta Nacional de Canela, onde um parque arqueológico contém artefatos e vestígios da presença de Kaingangs. Desde as casas subterrâneas tradicionais do povo a pontas de lanças em pedra e uma caverna com pinturas e escavações são evidências que levam à reivindicação da terra. O interesse turístico e socioeconômico é um dos fatores que torna mais complexo o contexto da disputa territorial.

A questão envolve o reconhecimento do território indígena e a privatização do parque, atualmente sob gestão do Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio).

A raiz do conflito surge a partir da manifestação do interesse de concessão privada pelo poder público, e posteriormente o embargo pela Justiça mediante a presença da comunidade indígena no local. Outro fator que pesa para corroborar o conflito é a especulação imobiliária do entorno, devido ao interesse para construção de hotéis e condomínios de luxo. Influencia sobre o tema, ainda, fatores como o sucateamento da gestão pública das Flonas pelo Ibama.

Segundo entrevista realizada com membros da comunidade, foi o pai do atual cacique Kaingang Maurício SalvadorZilio Jãgtyg Salvador – quem iniciou o processo de reivindicação do território. Salvador conta que “os espíritos dos antepassados assassinados no Poço dos Caixões, neste território, através dos kujá (lideranças políticas-espirituais) os chamaram de volta, em sonho, e orientaram a liderança a retornar ao território do qual tinham sido expulsos a finais do século XIX”. Em 2008, a Procuradoria da República do Rio Grande do Sul e o Ministério Público Federal realizaram um relatório, pelo cientista social Rodrigo Venzon e a antropóloga Ana Elisa de Castro Freitas, sobre possibilidade de disponibilização de uma área adequada para uso, manejo, residência e preservação, dentro dos costumes tradicionais Kaingang. No mesmo ano, deu-se a entrada no Parque Pinheiro Grosso, em Canela, com estadia por 83 dias a fim de alcançar maior visibilidade sobre suas reivindicações. Em 2015, o grupo chegou à Flona liderado ainda por Jãgtyg e se instalou em uma casa abandonada, mas a justiça estadual do RS determinou a reintegração de posse contra as famílias Kaingang. Eles se retiraram pacificamente após a Funai ter prometido a realização dos estudos de identificação da área. Em 2017, com o falecimento do então cacique Jãtyg, Maurício Vainh Tenh Salvador tornou-se cacique, em lugar de seu pai, assumindo a liderança frente à retomada. Atualmente, o grupo aguarda novos estudos, dessa vez habitando moradias estabelecidas dentro do parque.

Em junho de 2023, em visita técnica realizada ao local pela turma de Mestrado em Ambiente e Sustentabilidade da Uergs, foi possível conhecer a situação pela perspectiva indígena. A trilha foi guiada por Salvador, detentor de conhecimento tradicional sobre as plantas e um potente contador de histórias sobre os hábitos da comunidade indígena. Durante a caminhada na mata, foi transmitido seu conhecimento sobre as propriedades medicinais das plantas. “Nós queremos resgatar esses valores ligados à terra e a nossa ancestralidade, não queremos perder a nossa cultura, o idioma, os costumes”, afirmou o cacique.

Em uma lógica que integra saberes ancestrais e repertório ativista, alguns fatores corroboram a ideia de manter os indígenas na Flona. Dentre eles, a conexão dos indígenas com saberes da florestas; o conhecimento sobre usos potenciais das plantas medicinais; a retomada cultural por meio de rituais e prática do idioma; a construção da casa de cura Inh Kagtã, identificado como um espaço com potencial atrativo turístico; os vestígios dos ancestrais na caverna; a visão conservacionista que visa à proteção do território ante uma noção de desenvolvimento a qualquer custo e a proposta de atuação da comunidade em um projeto de educação ambiental e receptivo turístico da visão Kaingang junto ao ICMBio. Alguns passos identificados no estudo compõem uma possível negociação do conflito. Entre eles estão: a realização de reunião entre ICMBio, FUNAI e representantes das etnias Kaingangs e Xokleng; o diálogo da comunidade indígena com as partes interessadas, como órgãos públicos, imprensa, universidades, entidades locais e indigenistas, como o Centro Indigenista Missionário (Cimi); o alinhamento de parcerias para gerenciamento de turismo no local; a participação no Conselho Consultivo da Flona e o estabelecimento de repertório de comunicação, como a publicação de livros sobre artesanato e lendas Kaingang e a criação de logotipo institucional que reforça o posicionamento da comunidade, como um movimento de articulação coletiva.

Em posicionamento público, pelo site do Governo Federal, o ICMBio manifesta que “os projetos de concessão da Floresta Nacional de São Francisco de Paula e Canela foram pautados em procedimentos técnicos e em obediência aos preceitos legais pertinentes, assim como no amplo atendimento aos princípios que regem a Administração Pública, passando pela análise e aprovação do Tribunal de Contas da União para avaliação da qualidade dos estudos e da legalidade do processo, inclusive quanto aos aspectos ambientais e socioambientais”. Segundo o comunicado, os projetos de concessão abrangem os serviços de apoio à visitação, ao turismo ecológico, à interpretação ambiental e à recreação em contato com a natureza.

Protagonismo indígena como solução

Zhouri e Lachefski (2019) apontam a Modernização Ecológica como estratégia de gestão ambiental destacando a importância da consulta participativa para desenvolver medidas sustentáveis de mediação de conflitos. No entanto, apontam que essa abordagem pode criar desigualdades de poder, privilegiando os interesses das corporações em detrimento da sociedade civil. O processo de negociação, muitas vezes, segundo os autores, coloca direitos constitucionais e humanos na mesa, dificultando o alcance dos objetivos iniciais dos movimentos de resistência. A governança não supera as lutas sociais, e a participação pode se tornar uma armadilha para os movimentos sociais.

Se por um lado a comunicação atual entre os atores interessados no tema apresenta pontos de vista divergentes e interesses conflitantes, por outro lado, a presença protagonista da comunidade Kaingang pode representar um diferencial na gestão do parque, como reforço de interesses turístico-ambiental e fortalecendo atributos sustentáveis, com cunho sociocultural e ecológico.

Desta forma, entre os caminhos possíveis para a dissolução do conflito e manutenção da permanência indígena no local sugeridos pela autora deste artigo estaria a sugestão de implantação de um Arranjo Produtivo Local (APL) que valorize o uso do espaço incluindo a presença protagonista da comunidade Kaingang, sem negar a presença de outras esferas de participação. Entende-se por APL uma aglomeração de atores localizados em um mesmo território, que apresentam especialização produtiva, algum tipo de gestão e mantêm vínculos de articulação, interação, cooperação e aprendizagem entre si e com outros atores locais, tais como: governo, associações empresariais, instituições de crédito, ensino e pesquisa. Neste caso, observa-se possibilidade de atuação desde a entrada no parque, no Centro Turístico, com uma apresentação apropriada de cultura indígena, uma loja com a venda de produtos (livros, cestos, colares, artesanatos) e contratação como guias locais nas trilhas do parque, trazendo informação sobre cultura e educação ambiental, entre outras formas de atuação e participação ativa.

Referências

ATLAS SOCIOECONÔMICO DO RIO GRANDE DO SUL. Áreas Indígenas. Disponível aqui. Acesso em 20 de junho de 2023.

BINKOWSKI, Patrícia et al. Análise de conflitos e relações de poder em espaços rurais. Série Ensino, Aprendizagem e Tecnologias. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2018.

BRASIL. Relatório do grupo de trabalho sobre os direitos dos povos indígenas e das comunidades quilombolas da região sul. Conselho Nacional dos Direitos Humanos. Distrito Federal, Brasília, 2016.

DI SOPRA, Fernando Ernesto Baggio. Territorializações Indígenas no Rio Grande do Sul. Tramandaí, UFRGS, 2022. Disponível aqui. Acesso em 20 de julho de 2023.

MILANEZ, Felipe. Os 10 conflitos ambientais mais explosivos do mundo. CartaCapital, 2016. Disponível aqui. Acesso em 27 de junho de 2023.

LASCHEFSKI, Klemens, ZHOURI, Andréa. Povos Indígenas, comunidades tradicionais e meio ambiente: a questão territorial e o novo desenvolvimento no Brasil. São Paulo, Editora Terra Livre, 2019.

SEBRAE. Gramado e Canela: dois destinos de turismo mais desenvolvidos do país. Disponível aqui. Acesso em 27 de julho de 2023.

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