"A história dos desaparecidos de Zarzis, dos jovens que morreram no mar, é o símbolo - um dos muitos - da total ausência de políticas migratórias de longo prazo, da manifesta ineficácia de todas as medidas de externalização do controle das fronteiras tomadas nos últimos anos. Dinheiro em troca de proteção das fronteiras. Importa cada vez menos, ou não importa nada, qual seja o preço. E o preço não são só os mortos, é também a falta de planejamento dos investimentos econômicos na Tunísia, que durante anos só são condicionadas à contenção e reabsorção de migrantes, com a Europa dizendo: só te ajudo se levar seus cidadãos de volta e os impedir de sair", escreve Francesca Mannocchi, jornalista e documentarista italiana, em artigo publicado por La Stampa, 10-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em 2011, na época da revolução, Walid Zreidat tinha cinco anos, seu pai Salem tinha vinte a mais, saiu às ruas junto com milhares de jovens como ele pedindo ao seu país a mudança que toda uma geração esperava há tempo: fora Ben Ali, que venha o seguinte, ou seja, a democracia. Ao recordar aqueles dias, Salem diz que sorria e todos sorriam, que o futuro era confuso mas muito próximo, e que havia um traço em comum em todas as pessoas que protestavam, ou seja a certeza de que seria iluminados pela dignidade e pelos direitos.
Mas então, algo deu errado.
Hoje, doze anos depois, o rosto de Salem, que não tem nem quarenta anos, é marcado por um tempo acelerado que o faz parecer centenário, ele caminha pela casa, indo e vindo do sofá ao quarto do filho, Walid, que não está vivo nem morto, Walid que é a outra face das viagens pelo Mediterrâneo, um garoto de quinze anos que tentou chegar à Europa atravessando o mar e nunca chegou ao seu destino. Seu corpo, agora, como centenas, milhares de outros, está desaparecido na costa de Zarzis, no sul da Tunísia.
No dia 21 de setembro, dia da partida, o tempo estava bom e o barco que o transportava deixou a costa com mais dezessete pessoas a bordo, rumo a Lampedusa. Em terra, à espera de notícias da sua chegada, permaneciam mães e pais, irmãs e irmãos.
No dia seguinte, porém, nenhum deles recebeu notícias dos garotos e o mesmo aconteceu no dia seguinte, os parentes foram à polícia e às autoridades portuárias para denunciar o ocorrido, pedindo à guarda costeira que colocasse no mar as patrulhas de resgate, mas ninguém fez nada, exceto os pescadores locais que começaram a procurar os desaparecidos. Pescadores no mar e mães na terra, porque - todos dizem aqui - o mar rouba mas às vezes devolve alguma coisa.
O primeiro corpo que o mar devolveu foi o de uma jovem de 23 anos, Malek, seus pais a reconheceram pela pulseira que ela usava.
A corrente a levou a Djerba.
O telefone foi encontrado com ela, apertado na cintura, embrulhado em plástico, as últimas ligações foram para o contrabandista que organizou a partida, aqui o chamam de “el barizi”, o parisiense, todos o conhecem, é ele quem organiza a maior parte das viagens, todas rapidamente, muitas vezes pessoas do mesmo bairro.
Isso aconteceu para a sua viagem, a do "barco dos adolescentes", eram todos muito jovens e todos vizinhos de casa.
Três semanas após a primeira recuperação, uma mulher viu a imagem de um corpo levado à praia por um pescador, reconheceu a camiseta de seu filho e descobriu que, uma vez em terra, as autoridades determinaram que o corpo pertencia a um garoto de origem subsaariana e sem exame de DNA o enterraram onde costumam ser levados os migrantes trazidos pela corrente, no "cemitério dos desconhecidos", uma faixa de terra nascida há dez anos em um terreno que antes era um aterro e agora abriga os cadáveres daqueles que não conseguiram atravessar o mar.
Homens, mulheres e crianças que chegaram de longe, muitas vezes partindo da costa da Líbia e empurrados para a Tunísia pelas ondas. Corpos sem nome, vidas sem identidade, enterrados com uma letra escrita em uma pedra indicando se há ali um homem ou uma mulher, e uma data, o ano em que o corpo foi encontrado. Entre as pedras dos sem nome, então, há pedras com uma flor, ou uma pequena estátua de cerâmica branca. São os cadáveres dos meninos e das meninas.
É ali, no cemitério dos desconhecidos, dos mortos que vieram de longe, viveram e morreram como seres humanos de segunda classe, que as autoridades tunisinas também enviaram os corpos de seus jovens devolvidos à praia após o afogamento.
Quando a mulher reconheceu a camisa do filho e pediu a exumação do corpo do garoto, e assim em meio aos gritos das mães e protestos da sociedade civil, as valas foram reabertas, outros corpos recém-sepultados foram retirados e todos pertenciam aos jovens do barquinho. Desde então, juntamente com a busca pelos corpos dos dez ainda desaparecidos, as famílias buscam a verdade e com o passar das semanas se alimenta a suspeita de que naquela noite de setembro tenha ocorrido uma colisão com um navio ou um acidente que acabou mal com a guarda costeira que, no entanto, continua a não dar detalhes nem explicações.
As mães ficam na praça chorando, os véus cobrindo o rosto, e os quartos dos jovens ficam vazios, o de Omar, como o do jovem Walid. Ficam os cadernos escolares, um pôster do Bob Esponja, a mochila e a janela aberta.
O pai conta que os garotos se encontravam todos os dias no único ponto de encontro, uma antiga central elétrica que eles transformaram em uma pista de boliche.
Dali, sentados num murinho, passavam as noites conversando e olhando o mar em direção à Europa.
Haviam escrito seus nomes: Yessine, Omar, Rayen, Loay, Mouna, Sajda e abaixo: Não abriremos mão de nossos direitos.
Quando fala das responsabilidades dos mortos, Salem não arruma desculpas. O filho tinha vendido a sua moto, e depois pediu-lhe dinheiro, tentou resistir, mas - diz - quando Walid lhe perguntou, olhando para a Europa, “por que não posso ir? Por que não posso ser como os outros?” Salem cedeu. Hoje vive o presente da dor mais difícil, aquela de quem procura um filho desaparecido e espera reencontrá-lo, ainda que morto. Quando o peso do luto deixa espaço à racionalidade, Salem diz que se os cidadãos tunisinos tivessem o direito de sair como os outros, se pudessem obter um visto, as famílias deixariam de contar os cadáveres, porque "se você fechar a porta a um jovem, tem que abrir outra. Já para os nossos filhos, as fronteiras legais estão fechadas e aquelas ilegais são mortais”.
A história do desaparecimento de Walid e seus amigos é tragicamente banal: uma embarcação que parte com 15, 20 pessoas e chega à costa italiana em dez horas. Do outro lado do mar, aqui entre nós, são os barcos fantasmas com os "menores desacompanhados" a bordo, aqui na Tunísia é a rota de fuga cada vez mais comum entre jovens e muito jovens de um país que sente ter perdido a confiança e a esperança.
Mais uma vez os números falam por si, segundo dados da OIM, a organização internacional para as migrações, o número de cidadãos tunisinos que chegam à Itália aumentou exponencialmente nos últimos anos. Eram 1.600 em 2014, cerca de 6.000 em 2017, 12.000 em 2020 e foram 17.000 no ano passado.
Só no ano passado, 30.000 pessoas foram mandadas de volta pela guarda costeira e centenas desapareceram, como Walid e seus amigos. Números altos demais para caber no armazém dos slogans. Para entendê-los é preciso ler, cruzando-as, a realidade econômica e política do país.
A economia tunisiana está em grande sofrimento, vivendo uma crise sistêmica agravada pela invasão russa da Ucrânia. Nos últimos meses, os itens básicos como açúcar e leite começaram a escassear, o desemprego está em torno de 20%, atingindo picos de 30-35% entre os jovens nas áreas mais remotas.
O país espera um empréstimo do Fundo Monetário de quase dois bilhões de dólares, empréstimo que, no entanto, está vinculado a mudanças significativas na gestão dos recursos públicos que encontram a resistência daqueles que, já pobres, correm o risco de ver seu poder de compra despencar. Pouco ou nada resta da democracia multipartidária que surgiu após a revolução. O atual presidente Kais Saied há mais de um ano assumiu plenos poderes, obteve a aprovação de uma nova constituição que efetivamente esvazia o Parlamento de todas as suas funções e convocou eleições em dezembro passado. Mas nove em cada dez tunisianos não foram às urnas.
A maioria dos partidos pediu a renúncia de Saied, o poderoso sindicato tunisiano Ugtt rompeu com o presidente ameaçando-o de bloquear o país, e também nas áreas que haviam mostrado grande apoio às promessas de Saied, eleito com clara maioria em 2019, estão começando a se ver as primeiras rachaduras.
Uma restauração suave, portanto, em que as gerações mais velhas se entregam à resignação ou à nostalgia do que foi, e as jovens tentam sair às ruas quando os protestos não são proibidos ou reprimidos, ou sair tomadas por um estado de espírito que parece cada vez mais a um desespero coletivo.
Em uma crise tão profunda e alargada, a migração está assumindo muitas formas diferentes. Já não são apenas os jovens que não veem perspectivas de trabalho e de desenvolvimento que partem, partem famílias inteiras, mulheres jovens. E também estão saindo aqueles que podem viajar legalmente obtendo um visto, o Fórum Tunisiano de Direitos Sociais estima que trinta mil engenheiros e quatro mil médicos deixaram o país definitivamente nos últimos seis anos.
Para quem fica, as possibilidades são cada vez menores, em Zarzis é o olival, a pesca, o turismo que chega no verão e o inverno encerra tudo, como agora. Ficam cada vez menos jovens, alguns idosos nos cafés, crianças e mães sem filhos, irmãs a se perguntarem quem será o próximo a partir e não chegar.
Mapa da Tunísia. (Foto: Encyclopedia Britannica)
Há três meses, em frente à sede do governo, foram colocadas três tendas, sobre as quais penduradas fotos de mortos e desaparecidos.
Na sexta-feira, os cidadãos de Zarzis voltaram às ruas para pedir às instituições para saber o que aconteceu com seus filhos, onde estão seus corpos.
Fizeram isso com o apoio de toda a comunidade, que os acompanhou pelas ruas. Os mais jovens carregavam caixões vazios nas costas, são aqueles que aguardam os desaparecidos. Havia também o caixão vazio de uma garotinha, é Salima, seu corpo também ainda está no mar. Aquele de sua mãe, Nour, foi encontrado. Elas tentaram pedir o reagrupamento familiar com Karim, o chefe da família na Itália desde 2010. Ele vive na região das Marche, trabalha regularmente em uma empresa que instala painéis solares, mas espera após espera, até para eles a raiva e a resignação venceram a impossibilidade de obter o visto, assim a mulher e a menina partiram, confiando também no "parisiense", no bom tempo e nas estatísticas. Todo mundo aqui tem um parente que conseguiu atravessar o mar, agora está na França, na Alemanha, na Itália, por que - todos pensaram - eu não deveria conseguir?
Salem diz que continua ligado ao seu país, que suas raízes estão aqui e ele, ao contrário dos garotos, nunca pensou em sair. Mas ele também diz que sempre houve um bom motivo para ficar, ou pelo menos até que as esperanças da revolução acabassem sendo frustradas. O que a Europa não compreende, diz, é que estes jovens não têm raízes porque ninguém os representa, não têm nada a que se apegar, nada que esperem que possa mudar "atravessam as fronteiras com uma coragem sem igual, se pudéssemos usar essa coragem, essa força para melhorar o país seríamos um dos países mais ricos do mundo, ricos de nossos jovens, mas estamos perdendo todos".
O Presidente Kais Saied disse que vai abrir uma investigação e que a verdade virá, mas também disse que os migrantes são os responsáveis pela sua escolha e se chamado a dar explicações, muda de ar e discurso.
Por outro lado, é complicado para as instituições admitir que cada vez mais tunisianos querem ir embora, e também é complicado porque boa parte da ajuda que chega da Europa é jogada na dissuasão das saídas para controlar (leia-se militarizar) as fronteiras ao sul do Mediterrâneo.
A história dos desaparecidos de Zarzis, dos jovens que morreram no mar, é o símbolo - um dos muitos - da total ausência de políticas migratórias de longo prazo, da manifesta ineficácia de todas as medidas de externalização do controle das fronteiras tomadas nos últimos anos. Dinheiro em troca de proteção das fronteiras. Importa cada vez menos, ou não importa nada, qual seja o preço. E o preço não são só os mortos, é também a falta de planejamento dos investimentos econômicos na Tunísia, que durante anos só são condicionadas à contenção e reabsorção de migrantes, com a Europa dizendo: só te ajudo se levar seus cidadãos de volta e os impedir de sair.
Significa que os investimentos europeus, ao invés de contribuir para o desenvolvimento, continuam a vinculá-lo ao controle das fronteiras, bloqueando as políticas de redistribuição de recursos. Muito dinheiro para poucos indivíduos. Muitos recursos para poucas instituições. Fatores que continuam a promover mal-estar social e por isso protestos e por isso a tentativa de milhares de jovens de buscar fortuna noutros países, cansados de esperar que apareça trabalho num país onde o controle dos repatriamentos vincula o desenvolvimento econômico.
Assim, de acordo em acordo, de fundos em fundos, de repatriação em repatriação, essa rota se tornou a mais perigosa do mundo.
É difícil explicar às mães que voltaram às ruas na sexta-feira para se manifestar e exigir justiça para seus filhos, que os rostos que seguram nas mãos, relíquias não de um passado, mas de um futuro que não existe mais, representam para Europa uma ameaça à segurança.
Quando Salem volta para casa após a marcha, olha a foto do filho Walid. Ele só quer um osso, uma camiseta, a prova de que esteja morto. Até que o encontrem, diz ele, todos se sentarão em seu quarto, olharão pela janela e esperarão que ele retorne.