“Aprender é também aprender a refutar”. Entrevista com Marina Garcés

Fonte: Unsplash

30 Abril 2022

 

A escola pode ser um “espaço de convivência”, que supera a lógica da competitividade e abre à escuta, ao raciocínio, à retificação das opiniões equivocadas, mesmo que legítimas.

 

A entrevista é de Eugenio Giannetta, publicada por Avvenire, 26-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

O que significa aprender? “Aprender – explica a filósofa Marina Garcés, autora da “Scuola di apprendisti” [Escola de aprendizes] (Ed. Nutrimenti, 222 páginas) – significa poder estabelecer uma relação de significado com algo que não sabíamos antes”.

 

E qual é o estado da educação? Em que direção ela está indo? “A educação, como sistema institucional que se ocupa de forma regulada com determinadas aprendizagens, está em crise e em transformação hoje. De fato, a pedagogia é uma ciência e uma prática que se renova constantemente, mas hoje a própria escola como instituição social está em discussão, junto com a sua função. A direção que ela está tomando é em grande parte direcionada pelo mercado de futuros alimentado pelas novas tecnologias, pelo mercado de trabalho em crise e por uma sociedade cada vez mais fragmentada e desigual. Se a escola é um espaço de todos e para todos, como se pode formular hoje essa radicalidade democrática e igualitária em uma sociedade que vai na direção oposta? Acho que, no sistema educacional hoje, mais do que uma crise, há uma luta de classes e de expectativas”.

Em torno dessas perguntas e de outras, como “por que educar?” e “o que aprender?”, a filósofa espanhola se interroga e tenta dar respostas. Em seu último livro, ela parte do resgate da figura do aprendiz, passando pela educação como fundamento da convivência e campo de batalha no qual a sociedade distribui os seus futuros de forma desigual.

 

“Não existe – continua Garcés – um saber não aprendido. Os seres humanos devem sempre aprender, até mesmo a viver, sempre que se possa dizer que realmente aprendemos a fazê-lo. Aprender não significa acumular, possuir ou incorporar conhecimentos. É uma atividade relacional”.

 

Eis a entrevista.

 

Nesse sentido, você acha que é possível um retorno ao conceito de “comunidade educante”, depois de termos passado pela distância do mundo digital e por uma sociedade mais orientada para o individualismo?

 

Sim, acho que a distância imposta pelos efeitos da pandemia sobre as nossas vidas deixou ainda mais evidente que a educação é algo que ocorre por meio da convivência. A educação a distância, hoje pela internet e no passado por outros meios, pode ser útil para determinados fins, como se esquivar de uma pandemia, alcançar territórios e populações remotas ou faixas etárias e setores excluídos da população.

 

Qual a influência da Covid e do ensino a distância?

 

Com a Covid, aprendemos muito, também naquilo que diz respeito a alimentar uma confiança cega nas novas tecnologias. Acho que, nos diferentes níveis e nos vários contextos da educação, tivemos uma experiência concreta da importância do tempo compartilhado para a aprendizagem como experiência de transformação. Para o ensino, incorporar instrumentos digitais é tão importante quanto em outros campos. O acesso aberto ao conhecimento e à informação quebra o monopólio do mestre sobre o saber, e isso é bom. A sua palavra pode ser contestada. Mas continuo pensando que o lugar onde essa discussão crítica deve ocorrer deve ser um espaço de encontro entre iguais.

 

 

Estamos em uma sociedade de especialistas improvisados sobre todos os assuntos: por que tendemos a não confiar nos especialistas de verdade e a questionar tudo?

 

Não sei se realmente questionamos tudo. Pelo contrário, há uma tendência de que cada um tenha a sua própria opinião sem escutar os outros. Acho que, na escola, devemos voltar a aprender a discutir a partir da escuta, a argumentar e a retificar. Foi um erro ensinar às crianças que todas as opiniões estão certas. Não, todas são dignas de serem expressadas, escutadas e, se forem errôneas ou injustas, refutadas.

 

A nossa sociedade está orientada aos resultados e à competição. Como isso influencia a aprendizagem?

 

Antigamente, na educação, reproduziam-se as classes e as hierarquias. Hoje, a relação de competitividade. Devemos nos esforçar continuamente para demonstrar que somos merecedores, não apenas entre estudantes, mas também entre professores, escolas, rankings. O sucesso, entendido como obtenção constante de resultados, depende de tudo isso. Como no capitalismo atual, esse sucesso é sempre frágil e requer cada vez mais. Acho que um dos efeitos dessa modalidade é o esgotamento dos profissionais e a desmotivação dos estudantes.

 

Ainda em termos de resultados, também somos uma sociedade de hiperespecializados. Muitas vezes, porém, nos deparamos com “técnicos” que não estão igualmente preparados fora da sua especialização. Existe o risco de um desequilíbrio de competências no futuro?

 

Acredito que o que está ocorrendo é um fenômeno de polarização: por um lado, a hiperespecialização nos níveis superiores da formação e, portanto, nas mãos de algumas elites. Por outro lado, um abuso da chamada transversalidade nas etapas básicas da educação e para os grupos sociais menos chamados a continuar os seus estudos. A combinação desses dois elementos é perigosa, porque se perde o horizonte do trabalho em favor de uma boa educação coerente para todos, a partir da qual a especialização pode ser concreta e necessária, mas não excludente.

 

A mobilidade social responde às expectativas da aprendizagem?

 

Viemos de uma narrativa da educação como processo de ascensão social ou de melhoria das condições de vida pessoais e coletivas. O tempo da promessa acabou. Mas o problema não é que o elevador quebrou. Acho que devemos nos perguntar acima de tudo: queremos realmente viver em sociedades verticais, em um mundo de crises acumuladas umas sobre as outras: econômica, política, sanitária, ambiental, novamente bélica? Não seria a hora de voltar a pensar na horizontalidade e na pluralidade das formas de vida como em um horizonte de igualdade?

 

O livro aprofunda o conceito de “possibilidade” em relação às “vidas de descarte”, citando Bauman. Quão ampla é a brecha da desigualdade na nossa sociedade?

 

A igualdade falha na desproporção, quando não há tempo em uma vida para se aproximar minimamente daquelas que poderiam ser consideradas as condições mínimas para uma vida digna. Então, a questão não é que alguns têm mais e outros menos, mas que muito pouquíssimos detêm o monopólio tanto da riqueza quanto das possibilidades de vida da maioria. Isso ocorre por meio de regimes políticos fortemente democráticos, mas, se olharmos as coisas em termos sociais, ainda estamos longe de viver em democracia. Há uma ruptura interna nas nossas sociedades que a escola não conseguirá reparar sozinha, mas que também não poderá ser superada sem educação.

 

 

Qual é o papel da escola hoje?

 

Para mim, a escola como invenção institucional tem a função de articular um espaço de convivência em torno da aprendizagem. Em outras palavras, é um tempo e um espaço compartilhados em que o que nos une não são os nossos laços de sangue ou a nossa posição social ou de trabalho, mas o fato de aprendermos uns com os outros. Se pensarmos a sociedade a partir desse vínculo, a “escola de aprendizes” torna-se uma figuração do social como uma relação dinâmica de experimentação, transmissão e compromisso baseados no próprio vínculo.

 

 

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