"Podemos dizer que foi lançada outra semente na germinação de realidades purificadas do sistema androcêntrico nas comunidades e ambientes religiosos. Orgulhamo-nos desse gesto, conscientes de que apenas mais um passo foi dado e que o caminho será sempre árduo. A desconstrução crítica das formas patriarcais é sempre um trabalho complexo".
O texto é de Paola Cavallari, filósofa e ensaísta italiana, membro da Coordenação das Teólogas Italianas, promotora do Observatório Inter-religioso da Violência contra a Mulher (Ovid), autora de Non sono la costola di nessuno. Letture sul peccato di Eva (em tradução livre: Eu não sou a costela de ninguém. Leituras sobre o pecado de Eva, Gabrielli Editori, 2020), publicado por Settimana News, 15-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
É preciso uma "uma teologia que venha de baixo, onde a ação é quase mais decisiva do que o pensamento": a "maternidade" do enunciado é da teóloga católica Elisabeth Schüssler Fiorenza; o conceito, explicitado nas formas de uma teologia ativa, mas também de uma teologia viva, ou de uma atenção pelas mulheres empenhadas, bem como na frente do pensamento, no concreto do agir (essas escolhas às vezes comportaram heroicas testemunhos, até à morte), esteve entre os mais retomados, em matizes diversos, no dia 2 de dezembro último de 2021, por ocasião da IV Mesa Redonda do Ciclo da Religiões e Violência contra as Mulheres.
Todo o dia de discussão foi organizado pelo Observatório Inter-religioso de Violência contra as Mulheres (OIVD) e em colaboração com a Fundação de Ciências Religiosas João XXIII (FSCIRE), um prestigioso instituto europeu de pesquisa religiosa.
Crenças e feminismos na Itália: a profecia das mulheres; transcendência e experiência no horizonte de uma fé encarnada: esse é o título do encontro, cristalino na sua formulação, capaz de dar conta do recorte de que partimos, nós da OIVD, e que acreditávamos contemplar - quando, com forte convicção, promovemos a aventura - os elementos de construção imprescindíveis a serem postos como tema nos debates.
A Mesa estava marcada para a primavera de 2020, porém a pandemia bloqueou tudo, mas esperamos pacientemente.
Não há soluções fáceis.
Podemos dizer que foi lançada outra semente na germinação de realidades purificadas do sistema androcêntrico nas comunidades e ambientes religiosos. Orgulhamo-nos desse gesto, conscientes de que apenas mais um passo foi dado e que o caminho será sempre árduo. A desconstrução crítica das formas patriarcais é sempre um trabalho complexo; ainda mais se o objetivo não é apenas explorar as captações e as ressonâncias do divino na autêntica busca espiritual de uma mulher, mas ainda mais se, em tal paisagem, se pretende "conversar entre nós", tecer com paixão um percurso transformador, partilhar a busca com contextos alargados, lugares com sede de fé viva, vital, vivida em primeira pessoa; semear em terras inervadas pela convicção da justeza e da beleza do pluralismo no campo religioso.
Na minha apresentação à mesa, destaquei que “as diferenças são substâncias, corpos, prática política, antes que ideias reguladoras. Sobre isso, Audre Lorde, poetisa afro-americana lésbica, militante no feminismo e no racismo, imersa no diálogo - diálogo difícil, mas irredutível e essencial - entre mulheres negras e mulheres brancas, escreve: ‘Não há soluções fáceis’”.
É nesta esteira que não podemos apoiar a retórica que enfatiza as “diferenças” e o pluralismo religioso, sem mergulhar na trama autêntica da experiência vivida, complexa mas sempre fecunda.
As oradoras pertenciam ou representavam várias comunidades religiosas presentes no território nacional ou foram, em todo o caso, expressão de múltiplas esferas religiosas, porque a construção de um pluralismo religioso é uma das nossas almas originárias.
Não posso deixar de lembrar seus nomes. Após a abertura do vice-secretário da FSCIRE, Federico Ruozzi, Cettina Militello apresentou os trabalhos da manhã com uma ampla panorâmica das expressões da profecia feminina; seguiram-se as intervenções de Carla Galetto, Sulamith Furstenberg Levi e Alessandra Trotta, respectivamente pela Igreja Católica (focada no percurso das mulheres nas comunidades de base), o Judaísmo e as Igrejas Evangélicas.
À tarde, após a introdução de Paola Cavallari (que filtrou o tema das "profetas" a partir de testemunhos de mulheres na encruzilhada entre fé e feminismo), seguiram-se as intervenções de Rukmini Devi, Minoo Mirshahvalad, Cecilia Waldkrantz respectivamente pelo Hinduísmo, o Islã e o Budismo.
O diálogo com as palestrantes e a condução geral foi realizado com maestria por Ludovica Eugenio.
Algumas intervenções se posicionaram na encruzilhada entre a radicalidade na recepção da mensagem religiosa e a radicalidade no feminismo, outras se posicionaram principalmente para uma valorização do papel feminino em chave tradicional.
Algumas articularam a questão colocando no centro a categoria do domínio patriarcal, aquela igualmente radical do "partir de si mesma", pedra angular da subjetividade feminista (a teóloga Ivana Ceresa foi orgulhosamente citada "Eu mesma me torno o critério hermenêutico"); algumas se embrenharam em questões estritamente ligadas às genealogias e práticas no feminismo; outras, mesmo de referindo explicitamente a momentos de sua própria experiência consciente como mulher, seguiram uma argumentação voltada para o aprofundamento e leitura dos fenômenos sociais inerentes às questões de gênero. Nem é preciso dizer que a gradação entre uma posição e outra é extensa. Também foi útil monitorar as geografias existentes nas várias comunidades em relação às dinâmicas mulheres / homens.
Obviamente, não posso dar aqui um relato de cada intervenção; só posso abordar alguns traços que - na parcialidade do meu olhar - me parecem sobressair e emergir do fundo de uma partitura repleta de ressonâncias.
1. Existe um fio vermelho que conecta as mulheres e o Espírito. No âmbito católico, o profetismo feminino sempre teve uma implicação pneumatológica. Muitas figuras femininas dos textos sagrados são protagonistas de experiências místicas que fluem ao lado da profecia. A profecia não deve ser interpretada como uma antecipação do futuro, mas como uma inteligência do presente, que justamente por isso abre para o futuro.
2. No âmbito dos grupos de mulheres das Comunidades Cristãs de Base, as mulheres, iluminadas pela Ruah, autorizaram-se, na pegada traçada pela teologia feminista, à interpretação consciente das Sagradas Escrituras, a estabelecer lugares de produção de conhecimento, e a uma prática plurianual de liturgias celebradas por mulheres.
3. No âmbito judaico, nos EUA e em Israel, desde a década de 1970, surgiram numerosos grupos feministas, mais ou menos radicais, que privilegiaram aspectos diversos da gama de temas que a religião judaica reúne. O rabinato judeu ortodoxo não aceitou as inovações das mulheres rabinas, mas as comunidades sim. Muito singular e digna de atenção é a experiência das advogadas rabínicas, bem como aquela da casa de estudos das mulheres. Na Itália não são poucas as mulheres que ocupam o papel de liderança da comunidade (papel leigo), mas a liderança religiosa é toda masculina.
4. Em todas as Igrejas / comunidades - em vários graus – se registram resistência a uma prática de reconhecimento efetivo da plena dignidade da mulher. Nas Igrejas evangélicas - que, com o pastorado feminino, são as que representam os frutos mais maduros - foi dificultoso, contudo, promover o processo de transformação. Elas desfrutam do órgão da "assembleia de igreja", que é um campo de treinamento para a verdadeira democracia, onde um sistema informal de cotas de gênero foi estabelecido; e os órgãos dirigentes desfrutam de uma composição praticamente paritária.
5. O feminismo islâmico acredita que houve uma "realidade supra-histórica e sobre-humana imaculada onde os condicionamentos humanos não penetraram": essa realidade é o Alcorão. O feminismo islâmico, portanto, perdeu seu objetivo fundamental: renunciou a assumir a historicidade do texto fundador do Islã; renunciou a investigá-lo com os instrumentos de uma exegese que se vale do método histórico-crítico; além disso, furtou-se da tarefa de ver suas contradições em relação ao tema das injustiças patriarcais.
6. No ambiente budista, a escolha monástica para uma mulher significou iniciar um percurso emancipatório, motivado pelo desejo de liberdade e autonomia. Mas os mosteiros budistas femininos não receberam as mesmas ofertas que os masculinos: por falta de subsídios, foram extintos.
7. Uma famosa citação de Gandhi reza: “Chamar a mulher de sexo frágil é uma calúnia... Se, por força, se entende a força bruta, então sim, a mulher é menos brutal que o homem. Se, por força, se entende a força moral, então a mulher é infinitamente superior ao homem ... Quem pode apelar ao coração com mais eficácia do que a mulher?”.
8. A profecia nos pede para atravessar a experiência do vazio e do nada, para depois ressurgir com a consciência de um Eu que se purificou da colonização androcêntrica e patriarcal, como indica a teóloga/filósofa Mary Daly: “Tornar-se o que realmente somos requer coragem existencial para enfrentar a experiência do nada ... Com o surgimento do feminismo, as mulheres efetivamente passaram a ver a necessidade do confronto, a necessidade de deixar aflorar sua raiva e deixar nascer uma vontade de libertação. Afirmo que toda esperança humana autêntica é ontológica, exige que se enfrente o nada”.
9. A questão das novas gerações, muitas vezes alérgicas às instâncias do feminismo, nos devem questionar. É bom ouvi-las livres de julgamentos prévios, e depois apresentar-lhes o problema: “Qual teologia, qual Deus é o que resulta das suas afirmações e comportamentos? De qual Deus você dá testemunho?”.