O desencanto atual do “quarto homem”. Artigo de Enzo Bianchi

Mais Lidos

  • “Os israelenses nunca terão verdadeira segurança, enquanto os palestinos não a tiverem”. Entrevista com Antony Loewenstein

    LER MAIS
  • Golpe de 1964 completa 60 anos insepulto. Entrevista com Dênis de Moraes

    LER MAIS
  • “Guerra nuclear preventiva” é a doutrina oficial dos Estados Unidos: uma visão histórica de seu belicismo. Artigo de Michel Chossudovsky

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

02 Agosto 2021

 

"Mas estamos convencidos de que a crise, o declínio da Igreja - e, é preciso dizer, do cristianismo aqui em nosso país - é principalmente uma crise de fé? Que o que falta é precisamente a 'boa nova', o que é 'Evangelho', e certamente não os discursos morais e de defesa dos valores? Há uma expectativa de profecia nesse 'quarto homem', um desejo de encontrar espaços nos quais acreditar em Jesus Cristo, o Senhor Vivente para sempre", escreve Enzo Bianchi, monge italiano fundador da Comunidade de Bose, na Itália, em artigo publicado por Vita Pastorale, agosto-setembro de 2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

No final de 1967, logo após o concílio, um jesuíta, François Roustang, publicou um artigo que incendiou leitores e revista, causando sua demissão como diretor da Études. O artigo, republicado cinquenta anos depois por Odile Jacob, intitulava-se Le troisième homme e delineava três figuras emergentes do Concílio: um católico conservador e reticente; um cristão conquistado pela reforma conciliar, e um "terceiro homem" inédito e inesperado, um simples cristão, discípulo de Jesus convicto, claro, capaz de ser sujeito adulto na Igreja, mas sem querer ser gregário ou militante eclesial.

Hoje, depois de tantas mudanças sociais, culturais e eclesiais, podemos delinear com maior precisão o retrato desses católicos e avaliar sua situação.

O "primeiro homem", ou seja, o católico ligado à tradição, chegou à ruptura do cisma com a facção ligada a Bispo Lefebvre. Mas, com parcela não desprezível, continua presente e eloquente também dentro da Igreja. Porção que, aliás, certamente cresceu, tendo obtido uma legitimidade quanto à conservação do rito litúrgico pré-conciliar na celebração eucarística e de todos os sacramentos. Sobretudo depois do Motu proprio Summorum pontificum, editado por Bento XVI em 2007, essa porção eclesial foi atestada e ampliada, que inclui mosteiros fervorosos e férteis nas vocações, e pode contar com um número considerável de ordenações presbiterais (cerca de cinquenta por ano).

Este católico conservador e tradicionalista hoje teme a limitação implementada pelo Papa Francisco à liberdade sancionada por Bento XVI. Mas, em qualquer caso, certamente não mostra sinais de próxima extinção. Mantém uma forte convicção e resiste a qualquer tentativa de "atualização" ou renovação não só da liturgia, mas também da pastoral, invocando o princípio enunciado por Bento XVI em um discurso aos bispos franceses: "Na Igreja há lugar para todos!".

Quanto ao "segundo homem", o católico convicto da graça do Concílio e da reforma iniciada com Paulo VI, é preciso dizer que pertence a uma geração que em parte desapareceu por razões de idade: permanecem apenas aqueles que, na temporada conciliar, eram "jovens".

O 'terceiro homem'.

Hoje estão muito apagados, não são mais os protagonistas ativos das comunidades pós-conciliares. E sua voz na Igreja é pouco perceptível e, além disso, diferenciada. Alguns - poucos na verdade - ainda são capazes de contestação e de manifestar insatisfação diante de fatos e palavras que não aderem ao espírito do Vaticano II. Mas a maioria dos demais chega a se definir "rebanho perdido", queixa-se da hierarquia. E como posicionamento se coloca nos movimentos cada vez mais em diminuição, acima de tudo propulsivo.

É deles que nasce o "quarto homem", um católico inédito, mas hoje emergente e que ocupa o lugar também mantido pelo "terceiro homem", em relação ao qual não está em contraposição, mas nem mesmo em continuidade: é um sujeito que testemunha um drama! Porque o “quarto homem” é, antes de tudo, um cristão desencantado. Viveu a graça de um Concílio sem anátemas e sem dogmas; um Concílio que mostrou uma Igreja que começava a se colocar à escuta do mundo. Cheio de entusiasmo e esperança, participou ativamente do grande canteiro de obras eclesial; viu e fez discernimento de contestações e protestos que pediam um retorno ao Evangelho; dialogou, com dificuldade, com o mundo derrubando muros e bastiões ...

Mas, cinquenta anos depois, este "quarto homem" se sente cansado, conhece o desencanto e vê um refluxo inexorável das formas de Igreja que podiam ser reformadas. E, portanto, ser renovadas. E o homem que entende hoje, só hoje, o que escrevia Hans Urs von Balthasar: “Na história da Igreja os invernos são longos, o verão nunca chega, mas chegará no final, e as geadas repentinas se abatem sobre as raras primaveras”.

Assim, os velhos "demônios" da instituição retomam seus direitos; os novos movimentos reassumem formas de tradicionalismo; o caminho ecumênico torna-se cada vez mais gentil, mas sempre menos eficaz; o aprofundamento da palavra de Deus dá lugar ao sagrado das aparições, das curas; a espiritualidade se alimenta de psicologismo amador; a moral da liberdade cristã torna-se rígida e justicialista. E, então, o desencanto ataca e envenena o "quarto homem". Ele não rejeita a Igreja e a Igreja não o rejeita, mas vive etsi ecclesia non daretur, caminha no crepúsculo do anoitecer e muitas vezes conhece a noite. Mantém um vivo amor e um forte vínculo com Jesus Cristo, seu único Senhor, mas Deus é para ele uma palavra ainda demasiado confusa com religião. Um Deus não confessado como encarnado, mas invocado demais como antropomórfico. E a Igreja é para ele um mistério que sobrevive à Igreja instituição, pela qual não sente nenhuma atração.

E também não presta atenção a ela. Sim, a relação com a Igreja instituição marca a dificuldade, o sofrimento até na vida espiritual desse católico.

Já ouvi várias vezes vozes que - certamente não iguais, mas convergentes ao indicar as patologias das quais esses cristãos - se queixam sem raiva, sem espírito de contestação. O que dizem?

Em primeiro lugar, denunciam uma distância entre pastores e fiéis, especialmente no norte e no centro da Itália.

Não acusam os pastores de preguiça, de não fazer nada pela evangelização e pela caridade, mas não sentem uma responsabilidade compartilhada, a vontade de caminhar juntos como paróquia. E, acima de tudo, sofrem com a falta de interpretação do presente. E não suportam mais a cansativa repetição de slogans eclesiais que já se tornaram inconsistentes.

No início da pandemia, escrevi pedindo vigilância aos pastores, para que não aceitassem de cabeça baixa as decisões da política. E sugerindo não suspender com tanta facilidade as liturgias nas igrejas, porque eu temia um desinteresse com aquele que é o ponto culminante e a fonte da vida cristã. Mas, infelizmente, assim aconteceu. E, significativamente, hoje não vemos mais o mesmo número de fiéis na igreja aos domingos. E não é tanto uma questão de números!

É uma questão de acompanhamento dos pastores do seu rebanho em todas as situações da vida.

E de corresponsabilidade do rebanho com os pastores. Assim, muitos sentiram que a Igreja não soube ler, interpretar e discernir a presença necessária na hora do sofrimento. Em todas as igrejas faltam palavras evangélicas de fé. E muitos entenderam que os discursos eloquentes apenas sobre a situação social não são mais suficientes.

Mas estamos convencidos de que a crise, o declínio da Igreja - e, é preciso dizer, do cristianismo aqui em nosso país - é principalmente uma crise de fé? Que o que falta é precisamente a "boa nova", o que é "Evangelho", e certamente não os discursos morais e de defesa dos valores? Há uma expectativa de profecia nesse "quarto homem", um desejo de encontrar espaços nos quais acreditar em Jesus Cristo, o Senhor Vivente para sempre.

Uma recém-formada associação de católicos, Essere qui, nos propõe e nos convida a "procurar as Igrejas fora da Igreja"; convida a colocar um pé fora do recinto e olhar para terras que não se consideravam frutuosas. Mas, enquanto isso, esse "quarto homem" como crente espera caminhar na companhia de outros, na luz crepuscular. E poder partir o pão na mesa da amizade onde a Vida está presente. A sua fé será uma fé noturna, nua, atravessada por dúvidas, pontuada por perguntas, mas uma fé humana como aquela de Jesus de Nazaré. E noturna, nua, modesta não significa fraca ou evanescente. Muitos crentes hoje se reconhecem nesse "quarto homem". E a sua condição certamente não é fácil, porque não é objeto de atenção do cuidado pastoral. Estão fora do rebanho? Não precisam ter medo, porque o Pastor se preocupa mais com as ovelhas fora do aprisco, as perdidas, do que com aquelas que dormem no aprisco.

 

 

 

 

Nota do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

 

De 04 de junho a 10 de dezembro de 2021, o IHU realiza o XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente desafios e possibilidades para o cristianismo em meio às grandes transformações que caracterizam a sociedade e a cultura atual, no contexto da confluência de diversas crises de um mundo em transição.

 

XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição

 

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

O desencanto atual do “quarto homem”. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU