Entenda a determinação do STF de que governo aja contra covid-19 entre indígenas e evite “extermínio de etnias”

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10 Julho 2020

O ministro Luis Roberto Barroso, do STF (Supremo Tribunal Federal), determinou nesta quarta (8) que o Estado tome providências contra a pandemia de covid-19 entre a população indígena. A decisão foi uma resposta a um pedido da principal entidade indígena do país, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em conjunto com seis partidos.

A reportagem é de Letícia Mori, publicada por BBC News, 08-07-2020.

Na ação, a Apib afirma que preceitos fundamentais da Constituição estão sendo desrespeitados com as “falhas e omissões” do poder público no no combate à epidemia do novo coronavírus entre os povos indígenas brasileiros. Essas populações têm, segundo a entidade, uma taxa de letalidade pelo vírus de 9,6% — enquanto na população em geral a taxa é de 4%, segundo o Ministério da Saúde.

A Apib afirma que a atuação do poder público diante da epidemia entre os povos indígenas constitui um “verdadeiro genocídio, podendo resultar no extermínio de etnias inteiras” e pediu medidas específicas, como criação de uma barreira sanitária e retirada de invasores de terras indígenas.

Em sua decisão liminar (ou seja, em caráter de urgência), Barroso diz que “todos os pedidos são relevantes e pertinentes” mas que, “infelizmente nem todos podem ser integralmente acolhidos no âmbito precário de uma decisão cautelar”.

O ministro determinou, entre outras medidas, que as comunidades indígenas sejam incluídas no planejamento das ações pelo governo, que seja criada uma sala de situação para responder à pandemia, que sejam tomadas medidas para conter invasões em terras indígenas, criadas barreiras sanitárias para proteger indígenas isolados e que a Sesai (secretaria de saúde indígena, ligada ao Ministério da Saúde) atenda a todos os indígenas, incluindo os que estão em cidades e em terras não demarcadas.

Esta foi primeira vez que uma entidade indígena apresentou diretamente uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental) ao STF, com advogados próprios, indígenas. Esse tipo de ação serve para que a Justiça garanta direitos dos cidadãos quando preceito centrais da Constituição estão sendo desrespeitados.

A Apib pedia que a decisão fosse tomada em caráter de urgência, através de uma liminar, ao relator da ação, o ministro Barroso. Segundo a entidade, não havia tempo para esperar um julgamento – que poderia levar anos – da ação no plenário do STF.

Chamada por Barroso a se manifestar antes da decisão, a Presidência da República, por meio da AGU (Advocacia-Geral da União), deu uma resposta no sábado (4), dizendo que é preciso “autocontenção” do Poder Judiciário, que não teria, argumenta a AGU, “capacidade institucional para substituir a escolha técnico-política do chefe do Poder Executivo” quanto aos cargos e funções de entidades como a Funai (Fundação Nacional do Índio). A AGU diz também que não há omissão do poder público, listando medidas já tomadas no combate à pandemia.

A seguir, entenda as demandas dos povos indígenas e a decisão do ministro Barroso.

Além da ameaça da pandemia, a história dos guarani-kaiowá é marcada por conflitos e mortes nos últimos anos.
Na foto, Eliseu Lopes Guarani-Kaiowá faz protesto em Brasília em 2012. (Foto: Wilson Dias/Agência Brasil)

Protagonismo e jurisprudência

O fato de a Apib ter ido diretamente ao Supremo tem implicações que vão além apenas da ação em questão, explica o professor de direito Daniel Sarmento, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que também assina o documento.

A decisão de Barroso de reconhecer a legitimidade dos indígenas para apresentar a ação gera jurisprudência para que outras entidades, como representantes de mulheres, defensores de direitos LGBT e etc também possam ir à Corte com ações semelhantes.

Isso porque a Constituição de 1988 estabelece uma série de instituições que podem entrar com uma ação do tipo no STF, entre as “entidades de classe”. A jurisprudência do Supremo costumava entender entidades de classe como entidades profissionais, como sindicatos, por exemplo.

Em sua decisão, Barroso diz que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) “possui legitimidade ativa para propor ação direta perante o STF”, ou seja, reconhece que a entidade também é uma entidades de classe, mesmo que não represente um grupo econômico, mas sim setores da população brasileira.

‘Proteger a terra indígena é necessário para proteger a saúde’, diz Eloy. 
Na foto, ponto de garimpo na terra indígena Yanomami. (Foto: Funai)

Há também um simbolismo no pedido, diz o advogado Luiz Eloy Terena, do povo Terena, de Mato Grosso do Sul, um dos advogados indígenas que entraram com a ação em nome da Apib.

“Durante toda a história do Brasil, os indígenas foram considerados como tutelados e incapazes para as práticas dos atos da vida civil. Somente com a Constituição de 1988 é que os povos indígenas tiveram autonomia reconhecida para estar em juízo defendendo seus direitos. A Constituição vai completar 32 anos e é a primeira vez que os povos estão indo direto ao Supremo, tendo em vista a situação com que está sendo tratada a pandemia no Brasil”, diz Eloy.

Entre as entidades que tinham o direito já garantido de entrar com ações do tipo estão os partidos políticos com representação no Congresso. Por garantia, seis partidos políticos foram convidados a participar da processo pela Apib e aceitaram — PSB, PSOL, PcdoB, Rede, PT, PDT assinam a ação em conjunto com a entidade.

“É uma garantia mas serve também para mostrar que os indígenas são apoiados pelas forças políticas, todos os partidos de oposição convidados aceitaram participar”, afirma Sarmento.

Em sua resposta, a AGU não contestava a legitimidade da Apib, mas alegava que há outras formas de garantir direitos sem ser uma ação no STF. Barroso, no entanto, decidiu que o pedido é legítimo e que há necessidade de diálogo entre o Judiciário e o Executivo “em matéria de políticas públicas decorrentes da Constituição”.

“Falhas e omissões”

Os indígenas afirmam que “o Estado brasileiro vem falhando gravemente no seu dever de proteger a saúde dos povos indígenas diante da covid-19, gerando o risco de extermínio de muitos grupos étnicos”, e que a situação diante da pandemia é tão grave que está em curso um “genocídio”.

A entidade cita também diversas outras organizações que alertam para a necessidade de combater o avanço da doença nessa população — o Ministério Público Federal, a ONU e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

E não se trata apenas de um omissão, dizem os indígenas, mas toda uma política de governo que, na visão deles, desrespeita direitos fundamentais desses povos.

Entidade diz que garimpeiros, outros invasores e até mesmo agentes do governo
têm levado novo coronavírus a povos indígenas. (Foto: Ibama)

“É uma omissão sistemática”, diz Luiz Eloy. “A gente tem observado o ritmo acelerado com que os vírus têm entrado nas terras indígenas, contaminado os indígenas, e mesmo assim o governo não apresentou nenhum plano de enfrentamento. Pelo contrário, tem implementado medidas que fragilizam os territórios e as vidas dos povos indígenas.”

Na ação, a Apib diz que “muitas vezes, é o Estado que causa ativamente a disseminação do vírus entre povos indígenas”, citando como exemplo o primeiro caso confirmado de covid-19 entre indígenas brasileiros.

Em 25 de março, uma jovem de 20 anos do povo Kokama, no Amazonas, foi diagnosticada com a doença. Segundo a Apib, “o contágio foi feito por um médico vindo de São Paulo a serviço do Governo Federal pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), que estava infectado com o vírus.”

Placa instalada na comunidade Boa Esperança, na Terra Indígena Balaio. Hábitos culturais e dificuldades no acesso
à assistência em saúde tornam os indígenas especialmente vulneráveis à covid-19. (Foto: DSEI Alto Rio Negro)

Seis pedidos com urgência

Os indígenas pediam que o STF determinasse o cumprimento de seis providências pelo poder público para frear o avanço da pandemia nas populações indígenas – todas elas foram deferidas por Barroso, embora de forma parcial.

Uma das principais decisões é determinação a criação de barreiras sanitárias “para proteção das terras indígenas em que estão localizados povos indígenas isolados e de recente contato.”

O documento da Apib cita 21 terras de povos isolados em diversos Estados e 20 terras de povos de recente contato para os quais a entrada de pessoas de fora pode ser catastrófica.

Barroso determinou um prazo de 10 dias para que a União apresente um plano para evitar a entrada de terceiros em territórios desses povos.

Entidade pede que secretaria de saúde indígena atenda povos em terras não demarcadas.
(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

“O Estado está expondo etnias inteiras e comunidades inteiras ao extermínio. A Funai tem o registro de 114 grupos que vivem em isolamento e no contexto de pandemia eles são mais vulneráveis ainda. Você expõe eles ao genocídio na medida em que você tira proteção territorial que existia sobre esses territórios”, diz Luiz Eloy.

“O afã de contato, principalmente o afã missionário, é muito grande e isso precisa ser contido para evitar contaminação até de outras doenças, embora a de covid-19 seja a mais urgente”, afirma Daniel Sarmento, que coassina o documento com os indígenas.

O Supremo também determinou que o governo tome medida emergencial de “contenção e isolamento” de invasores em terras indígenas.

No pedido, a Apib acusava o Estado de promover invasões a terras indígenas, e pedia a retirada imediata de invasores em sete áreas – escolhidas pelo alto nível de risco e a certeza, diz Sarmento, de que os não-índios ali são invasores, como garimpeiros e madeireiros.

“Nessa linha de incentivo às invasões, além de manifestações frequentes e odiosas do Presidente, deve ser também citada a edição, em plena pandemia, da Instrução Normativa nº 09 da Funai”, diz a ação. Essa portaria da Funai impede a atuação do Estado na criação de restrições para propriedades em terras indígenas em processo de demarcação.

O garimpo tem se aproximado de comunidades isoladas como a Moxihatëtëma,
subgrupo yanomami que vive em isolamento voluntário. (Foto: Funai)

Outros pedidos deferidos pelo Supremo foram o de que se crie uma sala de situação para coordenar a resposta à pandemia com a participação de representantes indígenas e da sociedade, como a Defensoria Pública; e o pedido de que a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) atenda também indígenas que vivem em áreas não demarcadas e nas cidades.

Em resposta à afirmação da entidade de que o plano atual do governo é vago e ineficaz, a Justiça determinou que poder público formule e coloque em prática um “Plano de Enfrentamento da covid-19 para os Povos Indígenas Brasileiros”, com participação de indígenas e representantes da sociedade civil. O governo tem 30 dias para apresentar um plano, que deve seguir uma série determinações do STF, como ter o apoio técnico da Fiocruz.

O Supremo aprovou os pedidos com uma liminar, ou seja, em caráter de urgência, já que julgamentos de ações do tipo podem se alongar por anos no STF.

“Se demorar muito perde todo o sentido, porque as medidas são necessárias agora”, diz Sarmento.

O que diz o governo

A AGU (Advocacia-Geral da União) informou que enviou a manifestação do governo em relação à ação no sábado ao STF, antes da decisão.

Na resposta, a instituição argumentava que há outros caminhos jurídicos que poderiam ser seguidos em vez da ADPF e que não havia requisitos para que fosse feito um pedido de urgência (de medida cautelar).

O atual presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier (foto), é ligado à bancada do agronegócio no Congresso.
(Foto: Mario Vilela/Funai)

A AGU dizia ainda que, quanto à mudanças em os cargos e funções de entidades como a Funai e a Sesai, é preciso “autocontenção” do Poder Judiciário, que não teria, argumentava, “capacidade institucional para substituir a escolha técnico-política do chefe do Poder Executivo”.

A resposta também afirmava que “não se revela acertada a afirmação de que o Governo Federal estaria sendo omisso no tocante às medidas necessárias para evitar a exposição de populações indígenas à covid-19”. A AGU citava algumas medidas tomadas pela Funai, como a determinação de contato entre agentes da Funai seja “restrito ao essencial” e “suspensão de novas autorizações de entrada nas terras indígenas”, com exceção de “serviços essenciais” e a “disponibilização de um canal de atendimento” para demandas específicas relacionada ao coronavírus.

A decisão do Supremo, no entanto, obriga o poder público a tomar a medidas pedidas pelos indígenas em resposta à pandemia nos prazos estipulados, até que o STF possa decidir sobre eventuais contestações do governo na volta do recesso.

 

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