“Tornei-me feminista graças à ficção científica”. Entrevista com Donna Haraway

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21 Fevereiro 2020

Um pequeno bangalô é o último refúgio de Donna Haraway (Denver, 75 anos), professora emérita de história da consciência e estudos feministas da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, que compartilha esse domicílio, localizado em uma rua interior, com os dois cães e suas duas galinhas.

Bióloga, antropóloga e filósofa, Haraway alcançou uma importante reputação acadêmica com Manifesto Ciborgue (1984), um ensaio em que já apontava a superação de gêneros. Profundamente influenciada pela ficção científica, sua obra refletiu sobre aspectos como a tecnociência, a primatologia, os estudos pós-coloniais e a noção de Chthuluceno, um termo emprestado do monstro cósmico criado por H.P. Lovecraft.

Haraway, considerada uma das ensaístas mais influentes e visionários do presente, publica Seguir con el problema (Consonni), onde reflete sobre a necessidade de abraçar o debate, não renunciar e tampouco buscar a solução definitiva das coisas. Uma conversa em sua sala supõe uma ocasião para analisar o feminismo dos últimos anos, que não emergiu da sociologia acadêmica, mas, sim, das redes sociais, dos depoimentos pessoais e do mundo do espetáculo.

A entrevista é de Pablo Ximénez de Sandoval, publicada por El País, 19-02-2020. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Quanto de real tem a mudança do movimento Me Too? Que importância tem?

Solidarizo-me plenamente com o movimento Me Too. Está renovando o feminismo em muitos sentidos. Até pouco tempo atrás, ser chamada de feminista era uma espécie de insulto. Mas resistimos, insistimos em nos chamar de feministas e rechaçamos que se convertesse em um insulto. O Me Too foi um divisor de águas que tem muitas dimensões, está sendo conduzido com muita força por mulheres jovens e, particularmente, mulheres de cor. As mulheres dão nome a seus agressores, contam suas experiências e persistem no difícil processo legal, mesmo quando isso tem um custo.

Para mim, as questões judiciais são muito importantes e muito difíceis. O Me Too tem sido uma cura de humildade. Nós nos tornamos mais resistentes. Devemos toda a nossa atenção àquelas que se arriscaram ao denunciar. Uma parte do que tem que acontecer é que haja consequências para os agressores. Precisam pagar as consequências dentro de processos armados cuidadosamente, com investigações formais que protejam os direitos de todas as partes. Dizer que isso não é fácil é restringir muito! É polêmico, contraditório e difícil. Especialmente em sistemas de hierarquia, onde o poder estrutural não protege adequadamente as vítimas.

Sua geração o viu chegar? Está conectado com o feminismo de 30 anos atrás ou é um fenômeno em si?

Não, não o vi chegar. E não só eu. Mas tínhamos que ter antecipado a necessidade de um movimento renovado e uma revolta social. Não é novo. É mais feroz, tem energia mais forte. As raízes estão em movimentos que surgiram há mais de 30 anos. O Me Too deve ser entendido dentro de histórias intrincadas de abuso e resistência que têm a ver com raça, sexualidade, classe, idade e região. Quando era jovem, me tornei feminista nas manifestações da organização Take Back the Night [organização contra a violência sexual], nos anos 1970, e na chamada segunda onda do feminismo.

O 'Me Too' é uma feroz continuação de uma luta longa e inacabada. Por exemplo, agora penso no movimento do grupo chileno que está expandindo pelo mundo a coreografia de “O estuprador é você”. E, ao mesmo tempo, é simultâneo com os movimentos de pessoas transgênero e LGBTQIA... não me entendo com as siglas que não possuem vogais suficientes [brinca; mais tarde, demonstrará que sabe o que cada letra corresponde].

Sim, agora, de repente, é importante saber os pronomes pelos quais as pessoas querem ser chamadas, uma reivindicação do coletivo trans que está se disseminando.

Nisso, por um lado, cabe me dizer: “Me dá um respiro”. Mas, em geral, levo isso muito a sério. Uma parte de mim ri de pôr tanta seriedade em que todos coloquemos na assinatura de e-mail nossos pronomes de preferência. Mas se você está em um ambiente que leva muito a sério a correção política, como o meu, já existem muitas pessoas que o têm na assinatura. Por outro lado, eu entendo. Escrevi cartas de recomendação para estudantes que estavam em processo de transição de gênero e passamos muito tempo pensando sobre quais pronomes usar que não os prejudiquem profissionalmente e, ao mesmo tempo, reflitam sua identidade. Os pronomes são importantes para o respeito. Para reafirmar que isso não é o mesmo que aquilo. Você pode pensar que é trivial, mas não é. Esse pronome parece pequeno, mas incomoda muito as pessoas. Esse é um bom indício de que, na realidade, importa.

O que o significa o título que escolheu para o seu livro ‘Seguir con el problema’?

Continuar dentro. Permanecer ligado a ele. Evitar a tendência ao cinismo, ao desespero e a dizer: “Merda, não consigo solucioná-lo”. A tendência a deixá-lo e se esquivar de construir uma vida com os outros que merecia ter um futuro. É continuar com o outro, ficar com o outro para que possamos crescer.

É também seguir discutindo...

Discutir é parte disso. Você não pode se retirar. Isso não pode fazer. E é muito difícil.... Para evitar nos render, precisamos uns dos outros. Nas condições em que vivemos, mesmo os mais privilegiados, a rendição está ao virar da esquina.

No livro, adverte contra a rendição, mas também contra “a cômica fé na tecnologia” para resolver problemas.

Voltemos à ideia de permanecer no problema. Não há solução, é preciso permanecer nele. Assim é o jogo da vida na Terra. A ideia de que existe uma solução, uma forma de sair do problema por um salto, é teológica, muito cristã. Encontre a solução no céu. A ideia de que problemas e os desfrutes da vida têm uma solução é horrível. E se olharmos para os dilemas urgentes em que estamos, pensar que podemos resolvê-los traz uma imagem equivocada. Uns com os outros, temos que encontrar maneiras de curar em parte, inventar coisas novas, consertar os danos, construir e reconstruir para avançar, não para solucioná-lo. O que é útil para o debate é a aspiração de viver bem uns com os outros. Eu gosto de literatura utópica. Como aspiração, concordo. Mas acredito que vivemos em uma sociedade profundamente cristã, na qual há uma aspiração por uma estranha ideia de salvação. E isso é destrutivo...

Qual é a influência da ficção científica em seu pensamento?

Muito profunda. Uso ficção científica o tempo todo. Sou influenciada por autores importantes, aqueles que não são importantes e alguns que não são publicados. E foi uma parte importante do motivo pelo qual me tornei feminista... Tornei-me feminista com a ficção científica. Eu cheguei tarde, como uma jovem feminista nos anos 1970, quando houve uma revolução no gênero com mulheres escritoras que começaram a fazer livros como Women on the edge of time (Marge Piercy). A ficção científica é um gênero especulativo, de mundos possíveis. Acredito que o relato é muito importante em qualquer movimento social. E as escritoras feministas de ficção científica estão entre as escritoras mais importantes da história do feminismo moderno.

Você se referiu aos problemas atuais. Embora já estejamos há três anos neste ambiente político nos Estados Unidos, não resisto em pedir sua opinião sobre o que está acontecendo.

Não o suporto. [Donald Trump] me parece um doente malvado e repugnante. Também acho que é um gênio político. Tem o sentido dos tempos, sabe trabalhar para um público. Sabe criar um espaço, sabe apelar para o subconsciente. O que não tenho certeza é se ele sabe disso, se tudo é explícito e deliberado... É um gênio manipulando grupos.

Faltou uma narrativa que o parasse?

Ou ter a coragem de acreditar na narrativa... Apoiei Hillary Clinton, mas não há dúvida de que Bernie Sanders tinha uma visão de uma sociedade diferente e a articula de uma maneira muito poderosa. Animou muitas pessoas, especialmente jovens, tantos como Trump. Mas o aparato do Partido Democrata não quis correr riscos. Trump, sim, conseguiu com o Partido Republicano. Não acho que a sua narrativa seja tão poderosa e que não sabemos como combatê-la. Acredito que seu controle sobre as alavancas do poder ocupou um imenso espaço social nos últimos três anos. Mas não acredito que estamos perdendo histórias. Acho que temos boas narrativas...

Você diz que “o bom pensamento surge quando ficamos sem palavras”. Esse é um desses momentos em que estamos sem palavras?

O pensamento ocorre quando as coisas que funcionavam deixam de funcionar. Em momentos de decomposição, a possibilidade de outra coisa se torna mais urgente e fácil de imaginar. E as pessoas assumem riscos e propõem possibilidades. Em crises, quando as coisas se rompem, as coisas vão mudar. E podem piorar, drasticamente piorar.

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