Bartomeu Melià: jesuíta e antropólogo evangelizado pelos guarani (1932-2019)

Bartomeu Melià. Foto: Iglesia en Valladolid

Por: Wagner Fernandes de Azevedo | 08 Dezembro 2019

Na madrugada de 06-12-2019, a Companhia de Jesus no Paraguai informou que Bartomeu Melià Lliteres faleceu devido a uma insuficiência hepática. O Instituto Humanitas Unisinos - IHU faz memória da sua vida mobilizada e refletida entre a inculturação, a pesquisa, a luta e a evangelização.

Melià nasceu em 1932, no município de Porreres, situado na ilha mediterrânea de Mallorca, pertencente à Espanha. A língua materna de Melià é o mallorquín, que ele resumia como um dialeto catalão mais arcaico; porém, foi por outro idioma “não oficial” – naquela época – que ele se tornou um dos maiores linguistas e antropólogos do século XX: o guarani.

Em 1954, completavam-se cinco anos da sua entrada na Companhia de Jesus e, ainda seminarista, foi enviado como missionário ao Paraguai. Em seus primeiros anos no país, realizou estudos do guarani, cujo idioma até hoje 90% da população do país fala, e logo tornou-se professor de guarani para os missionários que chegaram depois dele. Viajou, no final da década de 1950, para concluir os estudos da formação sacerdotal na França; contudo, em 1969, devido a sua tese de doutorado na Universidade de Estrasburgo, iniciou sua imersão na realidade dos guaranis: “eu me questionava sobre algo que não poderia ser respondido na França”, relatou em entrevista à IHU On-Line, concedida em 2010, quando participou como conferencista do XII Simpósio Internacional IHU – A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade. A tese “tratava-se da criação de uma linguagem cristã nas Missões Jesuíticas. Assim, passei a entrar nas aldeias guarani [da floresta]. Fui aceito para participar inclusive dos rituais secretos dos índios, em sua casa de rezas”, explica Melià.


Fragmento do documentário "Diario Guarani" que conta a trajetória de Bartomeu Melià. Edição: Jonathan Camargo

Sua pesquisa trouxe novas concepções do fazer historiográfico conciliando a antropologia à história, reconhecendo que as missões, antes de jesuítas, eram guaranis. Melià reconheceu a complementariedade entre as cosmovisões e espiritualidades dos povos nativos com os jesuítas. Encontrou nessa relação novos sujeitos da História, procurando na própria cultura guaranítica as fontes documentais. Como destaca a professora Maria Cristina Bohn Martins, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História da Unisinos, Melià "inaugurou as abordagens etno-históricas, tornando clara a necessidade do diálogo transdisciplinar [história e antropologia] para qualificar a análise deste tema. Isto também implica - e ele foi o primeiro a indicar isto com toda clareza - a necessidade de compreender que as missões eram, antes que jesuítas ou coloniais, missões de indígenas guaranis".

Essa imersão de Melià nas aldeias guaranis não foi apenas como um filólogo ou antropólogo junto ao seu objeto de pesquisa, mas sim uma experiência recíproca de amizade e luta por reconhecimento. Já como professor de etnologia e cultura guarani na Universidade Católica de Assunção, estabeleceu uma relação de reciprocidade com os diferentes subgrupos guaranis: Mbyá, Avá e Paĩ-Tavyterã. Nessa época o Paraguai já vivia sob a ditadura de Alfredo Stroessner, que promovia, como denunciado por Melià e a Conferência Episcopal Paraguaia em 1974, um “verdadeiro genocídio” contra os Aché-guayakí. “Eu entrei na defesa dos Aché-guayaki, que vinham sofrendo ataques incessantes. A questão virou um problema internacional, chegando aos Estados Unidos (ao congresso norte-americano). Os Estados Unidos cobraram explicações do Stroessner. Dez jesuítas foram expulsos, e eu fui nesta leva”, contou o jesuíta em entrevista publicada pela Revista Mana.

Melià, mesmo exilado, não abandonou a pesquisa e a defesa sobre a história e a cultura guarani. Depois de um tempo em Roma, veio ao Brasil, convidado para lecionar como professor visitante da Universidade de São Paulo - USP, em 1977. Nos anos exilados, ainda passaria pela Universidade de Campinas e seria coordenador da Missão Anchieta, em Mato Grosso, onde trabalhou com índios Kayabi e Nambiquara. Depois trabalhou no Rio Grande do Sul, na cidade de Miraguaí – ao noroeste do estado – com os Kaingangs e lecionou na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos.

Em 3 de fevereiro de 1989, Melià retornaria ao Paraguai, concluindo uma viagem que fora interrompida pelo falecimento de seu pai. O professor conta, em entrevista à Mana, que “no aeroporto, eu fiquei sabendo da queda do Stroessner. Por sorte, o avião no qual viajei foi o único a pousar em Assunção naqueles dias”. A derrocada da ditadura fez com que Melià estabelecesse, desde 1990, moradia definitiva com o povo paraguaio e seus nativos, além dos guaranis, os enawené-nawé. Em entrevista à IHU On-Line, acrescentou que sua vida não era somente pesquisar, mas também “lutar pelos territórios indígenas. Porém não se consegue avançar muito porque o problema de terras está ligado a um novo conceito de propriedade, que entende que apenas quem compra a terra pode ser seu dono”.

Em 2010, Bartomeu Melià recebeu o prêmio Bartolomé de las Casas pela defesa dos povos indígenas; em 2012 foi condecorado pela Câmara dos Deputados do Paraguai com a Orden Nacional del Mérito Comuneros, pela contribuição e defesa dos povos guaranis; e em 2018 recebeu o reconhecimento de Doutor Honoris Causa da Pontifícia Universidade Comillas, de Madri.


Bartomeu Melià em homenagem recebida do Congresso do Paraguai. Foto: Cámara de Diputados de Paraguay

Em sua última entrevista traduzida e publicada no sítio do IHU, concedida à revista colombiana Vida Nueva, em março de 2018, continuou denunciando a violência que por décadas – e séculos – ainda ocorre no país em que optou por viver: “É o capítulo mais triste do Paraguai. Por parte da política oficial, atrevo-me a chamá-lo de genocídio dissimulado. O cultivo da soja, do qual o Paraguai tanto se orgulha, é feito à custa do desmatamento e do desenraizamento da nação guarani. O maior produtor de soja é, de fato, o maior produtor de pobreza e miséria extrema. Muita terra para poucos, e muitos, a maioria, sem terra onde colocar o pé e menos ainda a casa”. 

Abaixo compartilhamos entrevistas com o professor Bartomeu Melià, uma lista de suas obras e o documentário Diario Guarani (Marcelo Martinessi, 2017) que recria como foi a sua experiência com os mbyá-guarani.

Perfil de Bartomeu Melià

“A verdadeira formação que tive se deu entre os índios”, revela o jesuíta espanhol Bartomeu Melià, em entrevista concedida pessoalmente à IHU On-Line. Conferencista do dia 26-10-2010 dentro da programação do XII Simpósio Internacional IHU – A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade, debateu o tema A cosmologia indígena e a religião cristã: encontros e desencontros. Jesuíta desde 1949 e trabalhando com os índios guarani desde 1969, Melià conta um pouco mais sobre sua trajetória e atuação missionária, o período em que viveu no exílio, em Roma, logo após ter sido expulso do Paraguai pelo ditador Alfredo Stroessner, e o retorno à vida nas aldeias.

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Missão jesuítica, uma experiência de contato

Para Bartomeu Melià, as reduções jesuíticas foram uma colônia espanhola sem colonos, ou, nas palavras de Voltaire, um “triunfo da humanidade”.

“A missão é uma experiência de contato”, com a finalidade de contar a “história de Jesus”, resume Bartomeu Melià à IHU On-Line, por e-mail. Há 40 anos, o jesuíta convive com os guarani e dedica-se ao estudo dessa cultura milenar. A partir desta experiência missioneira, ele é categórico ao avaliar as semelhanças e diferenças entre a cosmologia indígena e a religião cristã: “A religião católica ainda está muito dominada pela hierarquia e pelo poder de uns sobre os outros. A diferença própria dos carismas se faz notar, sobretudo, no exercício do poder doutrinal e administrativo, o que leva a grandes desigualdades entre os que têm a mesma fé e a mesma esperança.” Para ele, a religião guarani “é mais igualitária (...) homens e mulheres, podem receber a inspiração divina, e de fato a grande maioria deles a recebe”.

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“A história de um guarani é a história de suas palavras”

Segundo Bartomeu Melià, a palavra representa tudo na vida dos guarani e é por meio dela que eles estabelecem uma educação comunitária, que está a serviço de todos.

O pesquisador Bartomeu Melià convive com os guarani desde 1969 e os define como “grandes caminhadores”. Na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line, ele conta como era a rotina ao lado desse povo. “Passávamos boa parte do dia caminhando por aquelas selvas sem fim. Percorríamos as armadilhas para ver se algum animalzinho havia caído nelas, buscávamos mel, cortávamos alguns palmitos, visitávamos os vizinhos, alguns muito longe, via as mulheres ir à roça buscar mandioca. Pelo caminho, era frequente tocar flauta”.

Segundo Melià, o caminhar é provavelmente um hábito “que rememora a migração” e tal prática também faz parte da vida espiritual dos guarani. “Se caminha também espiritualmente, nos longos rituais. Entre os Pãi ou Kaiwá, por exemplo, o ‘mborahéi puku’, o ‘canto longo’, é uma marcha durante 13 ou mais céus para assim entrar na casa do Nosso Avô no fim. As longas estrofes, no estilo de salmos, eles as comparavam, quando me traduziam seu sentido, às marcas dos quilômetros de uma rodovia”, destaca.

De acordo com Melià, “a terra-sem-males dos guarani seria, nada mais e nada menos, ‘a terra da liberdade de todos os homens’”. E enfatiza: “O caminho à terra-sem-mal não desviaria do paraíso, mas, pelo contrário, faria começar aqui e agora essa utopia, em um caminhar esforçado e livre, sem alienação e sem opressão”.

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“Há um genocídio dissimulado dos povos indígenas”.

A Pontifícia Universidade Comillas reconheceu como Doutor Honoris Causa por seu compromisso com o povo e a cultura guarani Bartomeu Melià, jesuíta de 85 anos que continua dedicando diariamente sua vida pelos povos indígenas do Paraguai, aonde chegou aos 22 anos de idade e a quem dedica esse reconhecimento acadêmico. Uma entrega por sua gente e sua cultura, porque é através dela que foi capaz de se aproximar das pessoas.

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Um golpe tingido de verde. Entrevista com Bartolomeu Melià

“Caso fizer uma pequena introdução, não exagere”. A recomendação de Bartolomeu Melià pode ser interpretada de diferentes maneiras, embora seja complicado não cair no exagero ao escrever sobre a história recente do Paraguai, um país onde há 100 anos o escritor e jornalista Rafael Barrett, autor da crônica O que são os ervais (Editora Cultura e Barbárie, 2012), dizia: “É fácil tirar um governo, mas difícil é mudar os costumes de governar. Fácil é cortar cabeças; difícil é que revivam”.

Há mais de um século, Barrett fez um relato sobre o poder que os latifundiários da erva-mate tinham no país. “O Paraguai é o negreiro de seus filhos”, apontava. Hoje essa estrutura econômica, social e política se entrelaça de maneira quase feudal não mais entre os arbustos da erva-mate, mas entre a soja. “O golpe de Estado é o da Monsanto para garantir um modelo de país atrasado em benefício da soja”, escreve em uma mensagem de correio eletrônico Bartolomeu Melià, do Paraguai, país ao qual este sacerdote jesuíta chegou em 1954, mesmo ano em que Alfredo Stroessner chegou ao poder. Além de sacerdote, Melià, que participou da expedição Paraná Ra’Anga, que saiu de Rosário em março de 2010, é antropólogo e linguista. Grande parte da sua vida passou no Paraguai “profundo” com as comunidades originárias, onde procurou aprender e estudar o guarani.

Melià viveu de perto a destituição de Fernando Lugo, no dia 22 de junho passado. Acompanhou o julgamento político da praça em frente ao Congresso, onde, após assumir o liberal Federico Franco, a polícia lançou gás lacrimogêneo contra os manifestantes que repudiaram a chegada ao poder do ex-companheiro de chapa de Lugo.

Confira a entrevista

 

Documentário Diario Guarani (Marcelo Martinessi, 2017)


Obras

 

Palavras Ditas e Escutadas. Entrevista com Bartomeu Melià. Revista Mana vol.19 no.1. 2013

 

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