Os invisíveis de Manaus

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16 Agosto 2019

Silêncios, extensões de água prateada, faixas de terra cobertas por uma vegetação densa e escura. Do barco descascado embalado pelas ondas preguiçosas do Rio Negro, Manaus à distância aparece uma enorme aldeia flutuante à mercê do sobe-desce da água.

A reportagem é de Stefania Falasca, jornalista, que trabalha na Conferência Episcopal Italiana – CEI, e no jornal italiano Avvenire. O artigo nos foi enviado pela jornalista. A tradução é de Luisa Rabolini.

Olhando mais à frente, três quilômetros e meio de alta engenharia que custaram mais de um bilhão de reais emergem dos arranha-céus e se jogam como um arco sobre o rio para depois se lançarem no meio da floresta tropical. Você olha para a ponte absurda e percebe que está bem ao lado do colossal símbolo que é a base de todas as contradições da Amazônia: o símbolo daquele "paradigma tecnocrático" que impõe a irrupção do poder econômico contra os ecossistemas naturais em detrimento do bem comum. Você vai tendo mais certeza disso enquanto, ao se aproximar da ribanceira, vê surgirem uma atrás das outra as sedes das empresas de telecomunicações, Nokia, Samsung, Sagem, várias plantas de refino de petróleo da Petrobras, empresas químicas e indústrias da Honda e Suzuki para a produção de veículos motorizados.

Porque Manaus é a outra cara da Amazônia: a metrópole-turbinada, uma ilha de dois milhões e meio de habitantes que continua a crescer a uma velocidade vertiginosa e não pode ser alcançada por terra, sendo cercada por extensões fluviais no meio da floresta equatorial.

Mas por onde você passa aí estão as fábricas das grandes multinacionais, que vieram produzir aqui, num ritmo frenético, porque foram atraídas pelas vantagens da zona franca, criada pelos generais da ditadura nos anos 1970, quando, mesmo naquela época, os que estavam no poder faziam com os negócios o bom e  mau tempo nesta parte vital do mundo. E o velho Porto de lenha, com sua selva de vendedores de peixe suados que limpam pirarucus de quarenta quilos e quitandeiros curvos sob enormes cachos de bananas, é o cartão de visita desta cidade que ferve de umidade poluída, que uma vez lá dentro mostra os seus contrastes impressionantes.

Dos suntuosos arranha-céus aos barracos, sem soluções de continuidade, sofrendo com a violência e com o triunvirato das pragas urbanas crônicas que são o trânsito caótico, o planejamento inexistente, a pobreza extrema. Aquela desajeitada das intermináveis ​​favelas, que vêm ao teu encontro assim que sai da rua principal do centro, a Avenida Eduardo Ribeiro, construída sobre o cemitério dos manaós, a agora extinta etnia originária. E assim hoje a capital do Estado do Amazonas - a antiga dama colonial do comércio sangrento da borracha, que no século passado fez dela uma das cidades mais ricas do mundo - com suas atuais favelas servindo-lhe de coroa, que a assediam e agigantam, é principalmente o emblema do modelo de um desenvolvimento votado àquele falso deus que exige sacrifícios humanos, produzindo descartes e invisibilidade. Em particular, aqueles dos mais vulneráveis: os povos indígenas.

"Sol Nascente", entre êxodo e exclusão

Uma estrada de terra vermelha cheia de buracos e lixo é a fronteira. Emergiu do asfalto para depois se jogar em uma vala de barracas dilapidadas. Passa em frente a uma placa de metal com a escrita "Comercio 3 irmãos picolé" atrás de uma menina que olha para fora da escuridão de uma janela descascada. E é preciso descer ainda mais para chegar ao aglomerado subnormal, como chamam a favela, e descer novamente na lama daquela insuperável pobreza, lambida por uma riqueza que compra homens, mulheres e crianças. Porque Sol Nascente está no fundo deste fundo. E agora também é o habitat de 46 famílias indígenas de 11 diferentes etnias emigradas do interior do estado. Forçados a deixar suas terras natais junto com a onda dos 36.000 migrantes que todos os anos se dirigem à capital em busca de melhores condições de vida.

Da sombra de um galpão de amianto, com o cocar de cacique de seu povo Desano, Domingo Sávio Vieria Carvalho convida a entrar. Ele tem 45 anos e vem de São Gabriel da Cachoeira, município a mais de oitocentos quilômetros a nordeste de Manaus, no Alto Rio Negro. Ele está aqui com sua esposa Uauclina e sua filha Dhyerllem, de 22 anos, que está segurando seu bebê, também com a cara pintada com desenhos tradicionais. "São os sinais da nossa dignidade", diz Domingo, abrindo caminho através de grandes folhas de palmeira cortadas e chapéus de palha postos para segurá-las nas tábuas de madeira da nova cabana.

Do outro lado, a vista se abre sobre a favela que se inclina em direção ao igarapé. "Aquele é o bairro de Francisca Mendes, além daquele morro - diz Domingo - há o bairro de Nova Cidade". É a zona norte de Manaus, onde outras 11 favelas iguais a esta se espalham, e é a área onde, junto com a do leste, concentram-se as 50 maiores áreas da capital classificadas pelo IBGE, como aglomerados subnormais. E onde se sobrevive reciclando lixo, ganhando o lugar no top ten das maiores favelas do Brasil.

Domingo conta como teve que deixar sua terra natal para vir para cá e diz que a saúde e a possibilidade de educação levam a maioria das populações nativas a vir para a capital. Ao seu lado, Verônica Campos Margues diz que queria estudar, tem 22 anos e tem o olhar orgulhoso da etnia guerreira Mura. "Nós existimos - quero dizer ao mundo que estamos vivos e que queremos ser respeitados como pessoas e como povo", diz Dhyerllem, enquanto o filho nos braços puxa o colar com a boca.

O padre Paulo Tadeu Barausse, jesuíta coordenador do Sares, o Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental, junto com outro padre e seminarista, acompanha essa comunidade marginalizada desde 2008. Domingo e sua família - que é composta por outras trinta pessoas - são católicos, frequentaram a escola dos salesianos de sua aldeia de origem. É domingo e pediram ao padre que dissesse a missa sob o seu galpão. Todos os outros também vêm, oferecendo no final o que eles generosamente prepararam. No final, Domingo fala ao sacerdote sobre os problemas nas favelas relacionados à violência do tráfico de drogas. Enquanto retorna dessa ordem precária, que pode ruir a qualquer momento da mesma forma que um barraco depois de uma enchente, o padre Paulo conta que, há poucos dias, em Nova Cidade, o cacique do grupo étnico Mura, conhecido como "Onça preta", foi assassinado por uma disputa entre as facções criminosas da Família do Norte e Primeiro Comando da Capital para tomar conta de uma terra em que os indígenas se instalaram e que o cacique da comunidade Mura foi liquidado porque havia se desentendido com um dos chefes. Manaus é o lar de um dos poderosos cartéis do narcotráfico, o Primeiro comando do Norte. Os líderes continuam a ditar a lei até mesmo das prisões e semear o terror, disseminando corpos decapitados nas periferias. A capital está em terceiro lugar pela violência nas grandes cidades brasileiras. E não apenas pelo tráfico de drogas.

"A violência atinge particularmente as mulheres, especialmente as indígenas", diz Clarice Arbella, da etnia tukana e coordenadora da Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro, contando as histórias de muitas que agora encontram oportunidades de se sustentar com atividades artesanais na associação. "No estado do Amazonas, devido à migração forçada, à exclusão, à discriminação racial, à impunidade, as mulheres e as meninas indígenas são as mais vulneráveis ​​ao tráfico e à violência sexual", diz Roselei Bertoldo Grito, religiosa da Imaculada Conceição de Maria e coordenadora do Rede Um Grito Pela Vida, que tem como objetivo enfrentar, com ações de conscientização, informação e mobilização, o fenômeno desse crime de proporções enormes aqui, mas totalmente silenciado.

Ao lado do arcebispado, na avenida central Joaquim Nabuco, Marcivana Sateré Mawé se encontra em uma reunião com a Caritas diocesana. Ela é referência para a Coordenação dos Povos Indígenas (Copime), a primeira organização no Brasil a cuidar dos indígenas no contexto urbano. "Na Amazônia, se concentra o maior número dos 170 grupos étnicos indígenas no Brasil, 53 línguas são faladas - explica Marcivana - O êxodo dos povos indígenas para Manaus começou na década de 1970. Enquanto a zona franca tomava forma na cidade, o distrito industrial – ela relata – aeronaves militares sobrevoavam a área ao norte de Manaus, trezentos quilômetros para dentro da floresta, preparando o terreno para a chegada das minas de estanho, ainda hoje em atividade. Eles jogavam um pó branco e todos morriam, contam alguns indígenas Waimiri-atroari, e depois explosivos, epidemias provocadas. O genocídio custou milhares de mortes. Nos últimos cinco anos - afirma - o êxodo das aldeias de todo o estado, intensificou-se.

Hoje, 52% da população indígena do Estado do Amazonas está na capital: 45 mil, segundo dados fornecidos pelo Dsei-Manaus, o distrito indígena de saúde de Manaus. A maioria vem da região do Alto Rio Negro. Hoje existem quatro grandes áreas de ocupações indígenas na cidade, chamadas “invasões”, "ocupações desordenadas" ou "Nações indígenas". Estão concentradas na área leste central. A maior delas é de cerca de 4 mil famílias, o Parque das Tribos, próximo ao aeroporto. Para a líder indígena, não há representação nos órgãos municipais e estaduais que ofereçam a atenção necessária aos povos indígenas que vivem na capital. "Temos, sim, no papel, a legislação brasileira para os povos indígenas – afirma ela - mas é voltada para quem mora na floresta, não para quem mora na cidade, porque aqui não somos reconhecidos indígenas como eles. Somos invisíveis”.

Resistir para existir: o protesto nas ruas

Chove aos cântaros e as ruas da capital se transformaram em córregos. Enquanto isso, na Praça São Sebastião, no centro de Manaus, vários grupos étnicos do Estado do Amazonas se reuniram para o Dia da Consciência Indígena. Eles querem tornar pública a campanha de resistência dos povos indígenas à nova política adotada pelo governo federal de Jair Bolsonaro. "Resistir para existir" é o grito de protesto. Estão aqui com suas coloridas roupas tradicionais e faixas: "Nem mais uma gota de sangue". A manifestação organizada pela Coordenação dos povos indígenas de Manaus e arredores, representa 60 comunidades de 46 etnias diferentes, e conta com o apoio de outras organizações de diversas regiões do estado, incluindo a Coordenação de Organizações Indígenas dos Povos Amazônicos (Coipam) e a Coordenação de Organizações Indígenas da Amazônia brasileira (Coiab).

Para a coordenadora da Rede de Mulheres Indígenas do Estado do Amazonas, Makira-Êta, Rosemere Teles Arapasso, o governo federal está colocando a sociedade contra os povos indígenas. Para ela, resistir à nova política do governo federal é um desafio: "Diante dos governos democráticos que passaram, nos últimos anos já tivemos dificuldades com as políticas públicas, mas agora - diz ela - o futuro se apresenta mais difícil e o risco é o de um retrocesso também em termos de segurança de direitos". Rosemere enfatiza como as organizações indígenas discutiram e participaram da elaboração de várias políticas para o desenvolvimento das comunidades em que vivem.

Ela cita o exemplo da região de onde vem, o Alto Rio Negro, onde foram elaborados planos para a gestão de terras indígenas, e critica a falta de vontade de conhecimento demonstrada pelo atual governo em relação à sua realidade. O coordenador da Coipam, Zenilton Mura, teme mudanças nas políticas de educação e saúde que poderiam prejudicar gravemente os vários etnias, lembrando que as comunidades têm direito à educação diferenciada, graças a uma política que foi estruturada desde 1990: "Como podemos – ele pergunta - falar sobre nossa cultura, nossos costumes, educação ambiental, se não temos a permanência e aplicação de uma instrução diferenciada?” Depois, há também a questão da assistência à saúde, diferenciada para os povos indígenas, que possuem um Secretariado em nível nacional e Distritos especiais de saúde indígena, que devem prestar assistência nas comunidades.

"Nossa preocupação é que a Secretaria Especial de Saúde Indígena, ligada ao Ministério da Saúde desde 2010, seja destinada à competência dos municípios - explica o líder indígena - temos dificuldades, mas existem polos básicos, estruturas. E se for mudado, isso também pode terminar”. Para Ricardo Nogueira, professor de geografia política da Universidade Federal do Amazonas, hoje fica claro que não é mais o estado que antecipa as solicitações que o próprio governo deveria fornecer, mas as grandes empresas. Assim este governo - ele afirma - está agora batendo diretamente contra todos os direitos conquistados".

O ponto mais polêmico - e mais alarmante - é o da questão vital e nevrálgica de seus territórios: a transferência da alocação e demarcação de terras indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai), já integrante do Ministério da Justiça, para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Alimentos, que a torna sujeita agora aos interesses da política agroalimentar. Os povos indígenas já contestaram as afirmações feitas pelo governo para revisar os processos de atribuição das terras indígenas já demarcadas. No protesto participam agora também as organizações estatais como a União dos Povos Indígenas orientis Solimões e Afluentes (Unipi-Msa), que reúne cerca de 25 mil indígenas que vivem em 230 aldeias nas regiões delimitadas pelos quatro grandes rios Solimões, Japurá, Jutaí e Juruá, e falam 14 idiomas diferentes.

O coordenador da Unipi-Msa, André da Cruz, da etnia kambaba, expressa toda sua preocupação com a possibilidade de suspensão das demarcações de novas terras indígenas, conforme adiantado por Bolsonaro. "Em nossa região há mais de 50 terras que ainda precisam ser demarcadas. Há alguns já com providências e outras sem disposições. Além de não ter respeitado nossa terra - afirma - não somos respeitados por essa política. Queremos que nossa terra seja respeitada e que nossa cultura seja forte. Precisamos que o governo brasileiro respeite nossa terra e respeite nossa cultura". Kumu pajé Justino, do Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, apresenta sua potestade e de seu povo com o ritual Kapiwayia, com danças ao ritmo da música e batendo os pés com força no chão.

Também Marcivana Sateré-Mawé, líder do Copime, rejeita o documento assinado pelo presidente brasileiro no início de sua gestão que, além de transferir para um ministério identificado com o agronegócio a questão das terras indígenas, tirou da Funai as responsabilidades relativas à demarcação e regularização de suas terras. O protesto aqui em Manaus - diz Marcivana - é importante para dar visibilidade a todas as populações presentes no Estado e em sua capital. "Somos 45 mil indígenas que vivem em Manaus - ressalta - falamos 20 idiomas diferentes, não apenas português. O não reconhecimento dessa presença nega os direitos dos povos indígenas na cidade. E infelizmente na mente das pessoas ainda é muito forte a figura do índio do século XVI: ‘o selvagem’, ‘o primitivo’. As pessoas não conseguem conceber que o índio hoje possa ir para a faculdade, que o índio seja um médico, um advogado, um professor. O índio sabe o que quer. Queremos ser nós mesmos e manter nossa cultura viva para as gerações futuras”.

As raízes da identidade

Durante um encontro em Sares, o jesuíta Vanildo Pereira, do Conselho indígena missionário, fala claramente: "Os indígenas existem e aparecem publicamente para a sociedade quando protestam e, sobretudo, na persistência do preconceito, porque a imposição de um modelo cultural ocidental inculcou certo desprezo pelos povos originários do território amazônico, chamando-os de ‘selvagens’. Os indígenas, portanto, têm a ver com a imagem que fazemos deles, com os preconceitos, com a exclusão e a discriminação. E isso se reflete em todos os campos, da saúde à educação".

"É importante ressaltar que não podemos falar em ‘indígenas’ em sentido genérico - ressalta Gersem Baniwa, antropólogo, professor adjunto da Universidade Federal do Amazonas - porque essa noção é simplesmente uma categoria social artificial criada pelos conquistadores europeus, segundo suas visões de interesses e conveniências". De fato, cada povo indígena se identifica com suas próprias denominações, como aquelas nomeadas pelos brancos "índios kulina" do rio Juruá, por exemplo, que se autoidentificam como "madja". "A ideia de identidade indígena generalizada - explica - é profundamente colonialista e colonizadora, cuja finalidade contribui para o desaparecimento dos povos indígenas, porque é uma forma de negação de sua própria existência na medida em que homogeneíza e generaliza sua identidade".

Segundo Gersem Baniwa, os preconceitos escondem, portanto, o projeto político de dominação que considera os povos indígenas um obstáculo ao desenvolvimento econômico, cultural e civil do país. E, portanto, um índio que impede o progresso não pode senão ser removido a qualquer custo e por qualquer meio. "A atual visão exótica do governo dos povos indígenas - afirma ele - esconde esse projeto de extermínio e de extinção. Ao longo da história da colonização - explica Baniwa - dois meios foram usados ​​para essa tentativa de remoção e extinção. O primeiro é a eliminação física, através de massacres, epidemias induzidas, guerras, punições, escravidão. O segundo é a homologação cultural, quando um índio deixa sua língua, sua cultura, seus conhecimentos e modos de vida e se torna um indivíduo genérico, sem identidade e cultura, perde seus direitos e seus antigos territórios ficam assim livres para o projeto de ocupação e exploração".

Assim, a eliminação física ou a eliminação através da destruição de sua cultura obtém o mesmo resultado: a extinção indígena e o fim das terras indígenas para que o "altar do progresso" possa passar sobre seus corpos e seus cemitérios. Esta foi a história do Brasil indígena. “E hoje - continua - estamos novamente vivendo esse mesmo drama com intensidade. O governo diz que os índios devem deixar suas reservas para se tornarem verdadeiros cidadãos brasileiros. E o caminho dessa falsa ideia de integração inevitavelmente leva à sua negação. Por esta razão, hoje, a velha e enganosa dicotomia de ‘índio puro’ e ‘índio civilizado ou integrado’ é novamente defendida e difundida na mídia". De acordo com essa visão, o índio, em suma, seria apenas alguém isolado do mundo branco, que não fala português, não tem educação ou não estuda, não paga, não usa tecnologias como celulares, computadores e se quiser apropriar-se disso, não será mais índio e uma vez não-índio, perderá seus direitos.

"Essencialmente um racismo neocolonial, congelado no espaço. E é esse racismo, que não permite a possibilidade de melhorar as condições de vida - apropriando-se do conhecimento e das tecnologias de outros povos e culturas, sob pena de perder seus direitos - que deve ser enfrentado pela sociedade - afirma finalmente o professor de antropologia. Escolas, igrejas, organizações sociais e pessoas esclarecidas devem cultivar a consideração da identidade e das culturas dos povos indígenas como sendo equivalente à de outras sociedades humanas em sua luta por um mundo melhor. Para que os povos indígenas, assim como todos os povos do mundo, possam transformar e melhorar suas vidas, sem perder suas culturas e identidades".

O caminho para o futuro, portanto, não só dos povos indígenas, passa por aqui. E o contexto urbano de Manaus é uma encruzilhada. Uma realidade que certamente não pode deixar de questionar a presença secular da Igreja com suas inúmeras missões, recursos de redenção e esperança, sem medo de embarcar em novos caminhos.

Por outra floresta na cidade

Sob a onda de calor, em plena Avenida Epaminondas, ergue-se o colégio salesiano do século XIX. Justino Sarmento Rezende é um sacerdote salesiano indígena da etnia Tuyuka, é secretário provincial na província de São Domingos Sávio em Manaus e até agora é o único indígena do Conselho para a preparação do Sínodo sobre a Amazônia. "Nossa identidade está passando por grandes transformações - diz ele - os povos pan-amazônicos em geral têm uma longa história de contato com sociedades não indígenas. Nas comunidades tradicionais hoje entram muitas realidades, sem pedir permissão, de maneira sutil e agressiva ao mesmo tempo, e são introduzidas pelos próprios indígenas. De dentro de nossas culturas vivemos e experimentamos profundas transformações, agora mais aceleradas, porque as culturas são dinâmicas, em contínuo processo de transformação. Mas eu não deixei de ser índio mesmo seguindo a formação salesiana. Aliás - continua ele - nunca deixei de ser o que sou: meu sangue estava em jogo, minha vida, no sentido de integrar minha realidade cultural a ser sacerdote, indígena. Caminho em que fui acompanhado. E acho que hoje devemos acompanhar e ser interlocutores onde quer que estejamos”.

A Congregação Salesiana tem mais de cem anos de presença na Amazônia. Tem escolas, paróquias, missões, serviços sociais e educacionais para crianças e jovens. E como todas as outras realidades eclesiais é chamada hoje aqui, na capital do Estado, a se confrontar com essa complexa realidade social e suas necessidades urgentes: um compromisso ao lado dos indígenas para a delimitação de suas terras, uma pastoral indígena no contexto urbano, promover a difusão de sua cultura nas línguas locais, cuidar da formação de vocações e ministérios indígenas e, em particular, dedicar-se à grave situação da juventude. "Mas uma Igreja de rosto indígena e amazônico depende, acima de tudo, do que temos em nossos corações", diz Reginaldo Lima Cordeiro, da etnia Arapaso, também sacerdote salesiano e atualmente delegado da pastoral juvenil em Manaus, onde muitos jovens indígenas emigram, juntando-se a uma multidão de outros, vulneráveis ​​em sua identidade e dignidade.

A leste da área central, do outro lado do Rio Puraquequara, também a ocupação no segundo Distrito Industrial chegou nos últimos anos. Outro aglomerado subnormal, outra favela. Um garoto indiano de cabelos tingidos de vermelho tem tatuado no braço o nome de Zaulo em letras grandes. Fala pouco. Ele só diz que gosta de jogar futebol como zagueiro e às vezes tem dificuldade em se concentrar. Ele não se lembra do nome de sua aldeia de origem. "Eu não consigo imaginar voltar para lá. ‘O que tem no mato?’", ele pergunta. Mais longe, à beira do rio, outros meninos indígenas visivelmente drogados zanzam de um lado ao outro. O grupo de adolescentes atrai a atenção do cacique Sebastião. Um garoto índio corre na sua frente com aquele veneno em seus dedos. "Na nossa aldeia não havia esta fera", diz Sebastião. "Aqui, esse menino está sendo devorado. Vá deste canto para outro. Não há lugar algum para ele".

Após a enésima chuva torrencial, as estradas se transformaram novamente em rios. Sinais de trânsito indicam a BR-174. É a transamazônica que leva a Boa Vista? "Justo", responde Celso. Ao norte de Manaus, o asfalto entra direto no denso vapor da floresta e Celso viaja de carro por quarenta quilômetros. Descemos na placa de uma escola agrícola, em frente a um bando de garotos ocupados com uma pequena preguiça encharcada pela tempestade. As lições para os pequenos acabaram, agora começam as dos mais velhos. Sob a cobertura, uma vez que a chuva passou, um vaivém de garotos se prepara para ir ao campo. Duzentos hectares de lavouras e criação com técnicas que respeitam o complexo ecossistema amazônico. Uma escola ecológica integral para cento e vinte garotos que vivem aqui durante todo o tempo de seus estudos e das quais vinte e cinco são de diferentes etnias indígenas.

"Eles vêm das aldeias do rio Negro e dos afluentes do Amazonas, a alguns dias de barco daqui", diz Darlete enquanto acompanha seu movimento com o olhar. Celso Batista e Darlete de Oliveira dirigem a escola agrícola Maria Rainha dos Apóstolos há trinta anos, desde que os missionários do PIME, que a haviam fundado, a deixaram no Centro de Solidariedade São José da paróquia de que faziam parte. Eles são casados ​​há 36 anos, têm quatro filhos e esses garotos são sua família. Ao longo dos anos, criaram 1500. Celso e Darlete não precisam falar. Essas crianças falam por elas. Esta plantação variegada surgiu de seus braços de pai e mãe. Fala o rosto de Claudiney Sabino de origem Bará, que agradece à mãe por trazê-lo aqui e depois o de Jeferson, de Emidson, e de Alzimar da Silva Gomes de Barcelos, índio Barè que tem um olhar orgulhoso e quer ir universidades. Ele tem vinte anos, como Joilton de Freiras da Silva, que também decidiu se matricular na universidade. Joilton é sateré-mawé, um grupo étnico que vive ao longo dos afluentes do rio Amazonas, ao sul de Parintins, a quatrocentos quilômetros de distância. Nasceu em uma pequena aldeia ao longo do Rio Andirá. Quando conta sua história, ele se ilumina falando sobre sua terra e escola na floresta frequentada pelas crianças. E onde ele quer voltar, depois que seus estudos terminarem, para ajudar seu povo. Este é reverso de outra invisibilidade. Aquela dos brotos da floresta de outra humanidade que cresce também em Manaus, sem fazer barulho. Mas que está destinada a regenerar-se com raízes profundas. 

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Os invisíveis de Manaus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU