Uberização do trabalho e os limites de se trabalhar para um algoritmo

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31 Julho 2019

Caso emblemático da morte de entregador da Rappi neste mês acendeu debates sobre a rotina de entregadores e a flexibilização das relações de trabalho.

A reportagem é de Carla Matsu, publicada por itmidia.com, 27-07-2019.

Entre os carros e ônibus que disputam espaço nas ruas e avenidas congestionadas de São Paulo, entregadores sob duas rodas com bolsas cor neon cortam os veículos para não chegarem atrasados com suas encomendas. Nas calçadas, em frente aos restaurantes, garotos se enfileiram à espera de pedidos de clientes, como nós, que nos acomodamos a resolver todo tipo de necessidade e urgência a um toque de um aplicativo.

A paisagem urbana de grandes cidades do Brasil se acostumou com o fluxo de motoboys e ciclistas de startups de entrega como o UberEats, Rappi e iFood.

Atualmente, segundo dados do Instituto Locomotiva publicados pelo jornal O Estado de S.Paulo, há 4 milhões de pessoas que trabalham para essas plataformas no Brasil. Do lado dos usuários, são mais de 17 milhões que utilizam tais apps regularmente.

A popularidade do serviço impulsiona os negócios. Neste ano, a startup colombiana Rappi se tornou unicórnio, quando o valor de mercado de jovens empresas de tecnologia superam a marca de US$ 1 bilhão. Em um país onde o desemprego chegou a 13,2 milhões, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aplicativos de mobilidade urbana e entrega oferecem um sopro no orçamento ou uma alternativa de renda em um modelo que ficou conhecido como “uberização do trabalho”, em referência ao modelo de negócios escalado pela Uber.

Entretanto, a paisagem urbana cada vez mais pontuada pelo vai-e-vem do neon das sacolas e fatalidades como a morte do entregador Thiago Jesus Dias, de 33 anos, jogaram luz sobre as condições de trabalho as quais esses entregadores assumem. Era uma noite fria do dia 6 de julho quando Thiago chegou ao bairro de Perdizes, zona oeste em São Paulo, para fazer uma entrega pelo Rappi. Ele passava mal. Em seu perfil no Facebook, a advogada Ana Luísa Pinto, que pediu a entrega por meio do app, relatou a agonizante espera de Thiago por um atendimento de urgência que nunca veio.

Ela ainda relata uma série de negligências que teriam sido feitas pelo atendimento da Rappi e até mesmo um motorista do Uber, que se negou a prestar socorro. Thiago morreu na madrugada do dia 7 de julho, com o diagnóstico de um AVC. Na ocasião, por meio de comunicado, a Rappi lamentou a morte de Thiago e informou que trabalhava em um botão de emergência no aplicativo que hoje, segundo a empresa, já está disponível para os entregadores.

Na mesma semana da morte de Thiago, a Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP emitiu nota de solidariedade com sua família e alertou sobre a fragilização das relações de trabalho. "Ao mesmo tempo, alertamos e lamentamos para as graves consequências para o direito à vida causadas por uma conjuntura sociopolítica marcada pelo acelerado desmonte de políticas públicas somada, concomitantemente, à ampla fragilização das relações de trabalho. Ainda que não se possa afirmar que o atendimento adequado preservaria a vida de Thiago, é certo que teria lhe poupado imenso sofrimento e dor", escreveu a entidade em nota.

O nanoempreendedor

Milhões de pessoas mundo afora têm trabalhado sob os comandos de algoritmos. Motoristas e entregadores de aplicativos são regidos por padrões e inteligência artificial que orquestram uma rede formada por clientes que demandam, restaurantes ou lojas que oferecem um produto e, na outra ponta, profissionais autônomos. A inteligência e dados entram para otimizar o fluxo de entregas e logística e a tecnologia sustenta pagamentos, gorjetas e avaliações.

De um lado, as empresas que oferecem tais serviços são uníssonas ao afirmarem que suas soluções são uma alternativa à renda e que operam para dar autonomia ao trabalhador. Nenhuma se responsabiliza pela relação de emprego. Entretanto, a Uber, que é a maior empresa de mobilidade por aplicativo do mercado, é alvo, constantemente, de ações trabalhistas mundo afora.

O advogado Leonardo Carvalho, sócio-coordenador da área de Direito do Trabalho do BVA Advogados, explica que há quatro requisitos para caracterizar uma relação de emprego. São eles: subordinação, habitualidade, pessoalidade e onerosidade.

"A subordinação e a habitualidade acabam não ficando caracterizadas nesta relação por dois motivos. A pessoa escolhe a hora que ela quer trabalhar e para qual app e ainda tem a possibilidade de recusar um determinado pedido. Por conta desses requisitos, a grande parte das decisões conclui que não há caracterização de relação de emprego", explica. "O modelo que eles criaram, hoje, tem prevalecido, na jurisprudência, mais decisões de que não há relação de emprego. Existem algumas decisões que reconhecem o vínculo empregatício, mas são minoria hoje. As decisões que mais prevalecem são de que existe uma autonomia".

Carvalho, entretanto, lembra que as empresas, sustentadas por tecnologias disruptivas, acabaram criando um modelo de negócio onde toda a responsabilidade de gerência fica nas mãos do trabalhador. "O que acabou se transferindo foi a responsabilidade do prestador. O controle do volume de horas que ele vai exercer para essa atividade. Eles, muitas vezes, acabam se dividindo entre vários apps. Como a responsabilidade é transferida, ele acaba tendo que se policiar nas questões de jornada de trabalho, e acaba precarizando uma relação de emprego, que por lei, limita a jornada de trabalho diária. Como ele passa a ser autônomo, ele acaba tendo que controlar isso", ressalta.

Para a pós-doutoranda Ludmila Costhek Abilio, pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp, a chamada "uberização" é uma tendência no mercado de trabalho. "A uberização é eliminar todas as relações que garantem alguma proteção, algum direito e transformar o trabalhador em um nanoempreendedor de si próprio", resume Ludmila.

Na visão da pesquisadora, a morte de Thiago é um caso emblemático do novo modelo de trabalho. "Esse é um caso muito emblemático do problema, como você para de reconhecer qualquer relação do trabalhador, parece que ele está por conta própria. Mas ele está fazendo uma entrega e passa por uma série de regras e mecanismos que o algoritmo e o app controla", ressalta.

Existe autonomia quando o trabalho é controlado por algoritmos?

Segundo levantamento da BBC Brasil, motoboys que fazem jornadas de 12 horas diárias ganham cerca de R$ 4 mil mensais, em média. Já entregadores sobre as bikes conseguem uma média de R$ 2 mil por mês. Entretanto, no caso dos ciclistas, o esforço físico é algo que pode cobrar mais alto. De acordo com reportagem da BBC, ciclistas ouvidos afirmam fazer jornadas de mais de 12 horas diárias, trabalhar muitas vezes sem folgas e até dormir na rua para emendar um horário de pico no outro, sem voltar para casa. A reportagem da BBC Brasil conclui ainda que grande parte dos entregadores pertence às classes mais baixas, mora em bairros periféricos e tem dificuldade para conseguir empregos no mercado formal.

A tecnologia acrescenta a possibilidade de mapear o trabalho de milhares de pessoas e, ao mesmo tempo, cruzar esse mapeamento com a demanda dos consumidores e avaliar produtividade. "Tudo isso acontece junto. O algoritmo é o processamento dessas informações e estabelecer critérios que vão operar essas relações. Mas ninguém sabe como isso funciona, as regras mudam a toda hora. Todos estão sendo programados de acordo com interesses", destaca Ludmila.

Para a socióloga, a relação de autonomia que os aplicativos sustentam não é válida. "Aparece como uma liberdade, você trabalha quando quer, mas você está engajado naquilo para sobreviver, você não tem o menor controle sobre as regras para sua sobrevivência. Eles estão trabalhando por metas. Precisam fazer três mil por final do mês, tantos reais por dia, aí o que preciso para isso não é liberdade. Tem uma autonomia entre aspas. Eu falo mais mais em autogerenciamento para sobrevivência".

Ela lembra, entretanto, que o fenômeno não é algo novo. "É um processo que tem a ver com as desregulações que o Estado promove, tem a ver com inovações tecnológicas e com as configurações nacionais dos mercados de trabalho. É uma relação entre essas coisas. Há décadas existe essa flexibilização e a eliminação de direitos", diz. Ludmila defende ainda que o conceito de uberização ultrapassa a do trabalho e alcança a organização da vida.

"A uberização tem a ver com a precariedade da vida. Você tem que gastar menos em uma cidade onde o transporte não funciona, onde se quer comer, onde se esquece uma chave [diz ela em referência ao Rappi que promete entregar de tudo]. Esses apps economizam as necessidades e as empresas se apropriam disso de uma forma produtiva. O motorista que trabalha 14 horas, 7 dias por semana, isso já existia, mas elas estão organizando essa precariedade e se apropriando dela", critica. Para a pesquisadora, é preciso buscar regulações justas para esses casos.

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